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O vanguardismo político e cultural de Gramsci e Mariátegui

20 de dezembro de 2022

O sociólogo marxista Christian Noakes discute as contribuições de Gramsci e Mariátegui para a difusão da cultura popular subalterna.

O sociólogo marxista Christian Noakes discute as contribuições de Antonio Gramsci e José Carlos Mariátegui para o desenvolvimento e difusão da cultura popular subalterna. Para o autor, “Mariátegui e Gramsci representam a convicção vanguardista de que as massas são capazes tanto de compreender ideias complexas ou avançadas quanto de desenvolver sua própria cultura orgânica divorciada do poder”.

Publicado originalmente na Monthly Review em 20.12.2022. Tradução de Theófilo Rodrigues.

Dentro da tradição heterogênea do marxismo há duas concepções de cultura popular diametralmente opostas: a elitista e a vanguardista. A primeira está longe de ser exclusiva do marxismo, e pode-se argumentar que tais posições são antitéticas aos sentimentos populares do pensamento revolucionário de Karl Marx. Tal orientação representa uma tendência intelectual dominante de forma mais geral, em que a cultura popular das massas é considerada desprovida de valor positivo e categoricamente distinta da chamada alta cultura. (1) Dentro do marxismo, esse elitismo tende a assumir que a classe dominante tem um monopólio absoluto sobre a produção de cultura popular. Essa posição talvez seja mais bem representada por Theodor Adorno, que descarta categoricamente a cultura popular como insidiosa e degradada. Em sua análise da música popular, ele chega a distinguir entre música popular e música “séria”. (2) Tais posições ignoram a agência popular e a necessidade de combater a ideologia capitalista em um nível social, e não individual.

Em contraste, os vanguardistas consideram a cultura popular como um veículo fundamental para a educação de massa e a propagação de uma visão de mundo particular, em conjunto com uma ordem socioeconômica correspondente e subjacente. Os proponentes não descartam a cultura popular abertamente ou a concebem como inerentemente “ruim” ou “baixa”, mas, em vez disso, perguntam: cultura popular para qual classe e para quais fins? A práxis vanguardista trata a cultura popular como “um terreno de contestação”. Outra característica distintiva do vanguardismo é a crença na capacidade intelectual da população. Vanguardismo não é simplesmente ser o mais avançado. Também implica a capacidade de liderar ou dar direção às massas. No campo intelectual da cultura, isso implica uma tomada de consciência.

Gramsci

Em resposta à crítica de que as ideias apresentadas nas publicações socialistas eram muito complexas para a classe trabalhadora, Antonio Gramsci observou o seguinte:

“Os semanários socialistas adaptam-se ao nível médio dos estratos regionais a que se dirigem. No entanto, o tom dos artigos e da propaganda deve estar sempre um pouco acima desse nível médio, para que haja um estímulo ao progresso intelectual, para que pelo menos um número de trabalhadores possa emergir do borrão genérico da reflexão de panfletos e consolidar seu espírito em uma percepção crítica mais elevada da história e do mundo em que vivem e lutam”. (4)

Gramsci, portanto, rejeita os extremos tanto do anti-intelectualismo infantilizante (isto é, tailismo) quanto do elitismo isolado. Isso é ilustrativo de como os vanguardistas podem encontrar as pessoas “onde elas estão”, por assim dizer, e depois trabalhar para movê-las para níveis mais elevados de consciência de classe.

Gramsci e o menos conhecido comunista peruano José Carlos Mariátegui – que é frequentemente comparado a Gramsci – não eram apenas teóricos do vanguardismo. Eles o praticaram ativamente e, de fato, lideraram esse aspecto da luta de classes na Itália e no Peru, respectivamente. Ambos trataram as questões culturais e políticas como profundamente interligadas e buscaram promover a cultura popular politicamente e intelectualmente desenvolvida para a classe trabalhadora e os povos oprimidos, a fim de se opor à cultura burguesa popular dominante. Sua práxis revolucionária materializou-se em publicações como L’Ordine Nuovo, de Gramsci, e Amauta, de Mariátegui.

Gramsci olhou com admiração para os avanços da União Soviética em tornar as artes acessíveis à classe trabalhadora e a proliferação de instituições culturais revolucionárias como o Proletkult. O fervor revolucionário na União Soviética e a crescente militância dos trabalhadores italianos inspiraram Gramsci a criar uma instituição para o desenvolvimento e propagação da cultura proletária na Itália. Desse desejo surgiu o jornal L’Ordine Nuovo: resenha semanal de cultura socialista, que Gramsci fundou em 1919 com um grupo de intelectuais e revolucionários que mais tarde se tornaria um grupo central do Partido Comunista da Itália. Em suas páginas, os leitores encontravam obras de prosa política ao lado do teatro e da crítica literária. O jornal também apresentou muitos artistas e intelectuais comunistas do exterior, como Anatoly Lunacharsky, Maxim Gorky, Henri Barbusse e Romain Rolland. Refletindo sobre o ímpeto inicial da publicação, Gramsci disse:

“O único sentimento que nos unia… estava associado ao nosso vago anseio por uma cultura vagamente proletária”. (5)

A edição de 21 de junho de 1919 marcou uma mudança significativa na publicação dessa fase inicial um tanto eclética para um órgão de um programa político concreto. Ordine Nuovo tornou-se não apenas uma publicação, mas um grupo central representando uma espécie de tendência ou facção dentro da política socialista italiana – com uma influência particularmente forte nas lutas trabalhistas em Turim. Central para essa solidificação de propósito político foi o movimento do conselho de fábrica, que Ordine Nuovo alimentou com seu programa para transformar as comissões internas das fábricas de Turim em sovietes ou conselhos italianos. Ao empoderar diretamente os trabalhadores para administrarem eles mesmos a produção, Gramsci afirmou que os conselhos preparariam a classe trabalhadora da Itália para tomar o poder e fornecer-lhes a competência para construir e manter uma sociedade socialista. O grupo Ordine Nuovo colocou suas energias para promover uma cultura, por meio dos conselhos, na qual os trabalhadores se veriam como produtores dentro de um sistema cooperativo de produção mais amplo, ao invés de assalariados atomizados. (6)

Essa cultura foi organicamente fomentada por meio de diálogo direto com os próprios trabalhadores. Com ar de satisfação, Gramsci comentou que “Para nós e para nossos seguidores, Ordine Nuovo tornou-se ‘o jornal dos conselhos de fábrica’. os artigos não eram uma arquitetura fria e intelectual, mas eram o resultado de nossas discussões com os melhores trabalhadores. Eles articularam os verdadeiros sentimentos, vontade e paixão da classe trabalhadora.” (7)

A pedido dos trabalhadores, Gramsci e outros membros da Ordine Nuovo falaram regularmente nas reuniões do conselho. Em setembro de 1920, o potencial revolucionário dos conselhos atingiu um ponto alto quando os trabalhadores ocuparam as fábricas e assumiram o controle direto da produção. Nessa época, a publicação cessou e Gramsci e os outros membros juntaram-se aos trabalhadores nas fábricas “para resolver questões práticas [de administrar uma fábrica] com base em comum acordo e colaboração”. (8)

Embora a linha editorial do jornal se tornasse mais definida e motivada por objetivos políticos concretos, ela ainda se concentrava em fomentar uma cultura popular orgânica da classe trabalhadora, que tratava como parte integrante da construção do socialismo. Isso incluiu a criação da Escola de Cultura e Propaganda Socialista, que atendeu tanto operários quanto estudantes universitários. Entre os palestrantes estavam Gramsci e os outros membros da Ordine Nuovo, além de vários professores universitários. (9)

Tais esforços foram vitais na preparação intelectual e ideológica para o estabelecimento de um estado socialista italiano, momento em que “[o] carreirismo burguês será quebrada e haverá uma poesia, um romance, um teatro, um código moral, uma linguagem, uma pintura e uma música peculiares à civilização proletária.” (10)

Enquanto a Itália logo veria os horrores do fascismo – ao invés do estabelecimento desta civilização proletária e, portanto, o pleno desenvolvimento de uma cultura proletária nacional – a cultura militante da classe trabalhadora fomentada por Gramsci e Ordine Nuovo nunca poderia ser totalmente extinta pelo regime de Mussolini. A política cultural de Gramsci também teria uma influência duradoura além da Itália.

Mariátegui

Tais influências são aparentes nas obras de José Carlos Mariátegui, que esteve na Itália na época da fundação de seu Partido Comunista e se identificou mais intimamente com o grupo Ordine Nuovo. Depois de retornar ao Peru, Mariátegui colocou suas recém-descobertas convicções marxistas em uma variedade de empreendimentos, incluindo a produção do jornal Amauta, que foi fortemente influenciado por Gramsci. (11)

Publicado de 1926 a 1930, este jornal inovador e visualmente estimulante foi o principal veículo de Mariátegui para unir as vanguardas culturais e políticas da época. (12) Em sua introdução à edição inaugural, Mariátegui afirma: “O objetivo deste jornal é articular, iluminar, e compreender os problemas do Peru do ponto de vista teórico e científico. Mas sempre consideraremos o Peru de uma perspectiva internacional. Estudaremos todos os grandes movimentos de renovação política, filosófica, artística, literária e científica. Tudo o que é humano é nosso.” (13)

Ao longo dessas linhas simultâneas de investigação sobre a sociedade peruana e o internacionalismo, Amauta reuniu os principais artistas, intelectuais e revolucionários do Peru, América Latina e Europa. Além de apresentar muitas das obras mais duradouras de Mariátegui, apresentou outras figuras importantes do Peru, como a ativista feminista e poetisa Magda Portal e os principais artistas indigenistas José Sabogal e Camilo Blas. Indo além das fronteiras do Peru, a revista também contou com contribuições de Diego Rivera, Pablo Neruda, Henri Barbusse, Romain Rolland e Georg Grosz. Da mesma forma, seu público leitor também era internacional. Além de estar disponível em grande parte da América Latina, também foi distribuída em Nova York, Madri, Paris e Melbourne, na Austrália. (14)

Mariátegui estava no centro do movimento vanguardista no Peru. Esse movimento jovem e criativo se preocupava com a criação de um “novo Peru”, que romperia com as tradições oligárquicas predominantes herdadas da Espanha. (15) Embora diversos em foco e orientação, os vanguardistas buscavam criar novas formas sociais, políticas e culturais. Segundo Mariátegui,

“Uma corrente de renovação, cada vez mais vigorosa e bem definida, já se faz sentir há algum tempo no Peru. Os partidários desta renovação são chamados de vanguardistas, socialistas, revolucionários, etc…. Algumas discrepâncias formais, algumas diferenças psicológicas, existem entre eles. Mas além do que os diferencia, todos esses espíritos contribuem para o que os agrupa e os une: sua vontade de criar um novo Peru em um novo mundo… O movimento intelectual e espiritual está se tornando orgânico. Com o aparecimento de Amauta, entra em fase de definição”. (16)

Por sua vez, Amauta promoveu o anti-imperialismo, a igualdade de gênero e o internacionalismo como princípios centrais de sua visão nacional.

Um novo Peru teria que resolver a “questão indígena” – a questão mais premente para Mariátegui. Para ajudar nessa empreitada, o jornal expôs a natureza semifeudal/semicolonial da economia do Peru, que se baseava na subjugação socioeconômica da população indígena do país e agia como um fórum nacional e uma rede para a organização de camponeses indígenas isolados regionalmente. (17)

Cada edição também promoveu um plurinacionalismo que incluiu os povos Quechua e Amari na identidade e no corpo político peruano. Em total contraste com a burguesia nacional, que via a Espanha como a fonte da identidade peruana, a revista promovia uma identidade e uma cultura nacional centrada na população indígena do país, como refletia a maior parte de seu conteúdo. Isso incluía artigos analisando relações racializadas de produção, arte centrada no índio e até mesmo o próprio nome da revista, Amauta, sendo “sábio” em quíchua e um título dado a professores no Império Inca. Como afirma Mariátegui na introdução do número 17 (setembro de 1928), “Pegamos uma palavra inca para criá-la de novo. Para que o Peru índio, a América indígena sintam que esta revista é deles.” (18)

Antes excluídos e infantilizados, os povos indígenas ocupavam um lugar central nas páginas de Amauta e na cultura nacional que ela fomentava.

Amauta visava polarizar os intelectuais do Peru e colocar os leitores sob a bandeira do marxismo-leninismo. (19) Seu conteúdo foi particularmente importante na organização e orientação das populações rurais e indígenas do país. (20) Também ajudou a estabelecer o indigenismo como a escola de arte dominante no Peru, fomentando assim uma cultura nacional em oposição à cultura colonial herdada da Espanha. (21) Como o jornal latino-americano mais popular de sua época, foi fundamental na propagação de um marxismo indígena e camponês que viria a caracterizar os movimentos socialistas em toda a América Latina América.

Marxismo e cultura popular subalterna

As obras de Mariátegui e Gramsci foram fundamentais para o desenvolvimento e difusão da cultura popular subalterna. Por meio do diálogo e da colaboração, Amauta e L’Ordine Nuovo viriam a ser os principais veículos na educação das massas em linhas explicitamente revolucionárias. Em contraste tanto com o antiintelectualismo quanto com o elitismo, os projetos culturais de Mariátegui e Gramsci representam a convicção vanguardista de que as massas são capazes tanto de compreender ideias complexas ou avançadas quanto de desenvolver sua própria cultura orgânica divorciada do poder.

Notas:

  1.  Peter McLaren, “Popular Culture and Pedagogy,” in Rage and Hope: Interviews with Peter McLaren on War, Imperialism, and Critical Pedagogy (New York: Peter Lang, 2006) 213.
  2.  Theodor Adorno, “On Popular Music,” in Cultural Theory and Popular Culture: A Reader, ed. John Storey (Athens, GA: University of Georgia, 2006).
  3.  McLaren, Rage and Hope, 214.
  4.  Antonio Gramsci, Selections from Cultural Writings, ed. David Forgas and Geoffrey Nowell-Smith (Chicago: Haymarket, 2012), 33.
  5.  Quoted in Giuseppe Fiori, Antonio Gramsci: Life of a Revolutionary (New York: Schocken 1973), 118.
  6.  John M. Cammett, Antonio Gramsci and the Origins of Italian Communism (Redwood City, CA: Stanford University Press, 1967), 95.
  7.  Quoted in Antonio A. Santucci, Antonio Gramsci (New York: Monthly Review Press, 2010), 68.
  8.  Fiori, Antonio Gramsci: Life of a Revolutionary, 139.
  9.  Cammett, Antonio Gramsci and the Origins of Italian Communism, 81.
  10.  Gramsci. Selections from Cultural Writings, 50—51.
  11.  Marc Becker, Mariátegui and Latin American Marxist Theory (Athens, OH: Ohio University Press, 1993).
  12.  David O. Wise, “Mariátegui’s ‘Amauta’ (1926—1930), A Source of Peruvian Cultural History,” Revista Interamericana de Bibliografia 29, no. 3—4 (1979): 299.
  13.  José Carlos Mariátegu, “Introducing Amauta,” in “The Heroic and Creative Meaning of Socialism”: Selected Essays of José Carlos Mariátegui, 75—76.
  14.  Wise, “Mariátegui’s ‘Amauta’ (1926—1930),” 293.
  15.  Kildo Adevair dos Santos, Dalila Andrade Oliveira, and Danilo Romeu Streck, “The Journal Amauta (1926—1930): Study of a Latin American Educational Tribune,” Brazilian Journal of History of Education 21, no. 1 (2021).
  16.  Mariátegu, “Introducing Amauta,” 74—75.
  17.  Mike Gonzalez, In the Red Corner: The Marxism of José Carlos Mariátegui (Chicago: Haymarket, 2019).
  18.  José Carlos Mariátegui, “Anniversary and Balance Sheet,” in José Carlos Mariátegui: An Anthology, ed. Harry E. Vanden and Marc Becker (New York: Monthly Review Press, 2011), 128.
  19.  Wise, “Mariátegui’s ‘Amauta’ (1926—1930)”; Jesús Chavarría, José Carlos Mariátegui and the Rise of Modern Peru, 1890—1930(Albuquerque: University of New Mexico Press, 1979).
  20.  Harry E. Vanden, National Marxism in Latin America: José Carlos Mariátegui’s Thought and Politics (Boulder, CO: Lynne Rienner, 1986).
  21.  Wise, “Mariátegui’s ‘Amauta’ (1926—1930),” 295.