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Felipe Maia: Um rastro de destruição

12 de janeiro de 2023

Felipe Maia, professor da UFJF, discute formas de superar o golpismo.

Felipe Maia, professor da UFJF, discute formas de superar o golpismo. Publicado originalmente no Ateliê de Humanidades em 09.01.23.

Poucas imagens definem com mais nitidez a obra da extrema-direita e do tal “bolsonarismo” do que as que foram registradas no dia 8 de janeiro nas sedes dos três poderes republicanos em Brasília. A destruição dos edifícios, da mobília, das obras de arte, todas de artistas brasileiros, é a forma por meio da qual se materializa a destruição das instituições, essas entidades incorpóreas que necessitam de corpos, edifícios e objetos para se fazerem presentes. A fúria destrutiva se volta para o que foi a obra de um esforço comum, o que representa uma história comum, tais como os quadros de Di Cavalcanti, a arquitetura de Niemeyer, ou mesmo um exemplar da Constituição de 1988. Isso faz do ato golpista uma afronta não só à democracia, consagrada no resultado eleitoral, mas também à própria República, noção usualmente ausente do imaginário corrente. Anti-democrática e anti-republicana, a destruição continuada é o motivo condutor da extrema-direita, sob as formas diversas da manipulação da linguagem, da deterioração das políticas públicas, da revisão ou da desobediência legislativa ou, como se viu, na inédita invasão dos poderes republicanos.

Não se deve compreender o que se passou como se fosse um raio em céu azul ou como se fosse um acidente, um experimento que saiu do controle. Não se trata de manifestação espontânea, nem de aprendizes de feiticeiros. Ao contrário, o domingo golpista é o resultado de uma escalada cuidadosamente preparada ao longo dos últimos anos e deve ser visto na sequência de um conjunto de atos golpistas que recrudesceram com as convocações do ex-presidente Bolsonaro desde março de 2021, sempre em torno da invocação de poderes extraordinários para a presidência e da desobediência ao poder Judiciário, em especial ao Supremo Tribunal Federal, que é instância última de interpretação da Constituição. Tiveram sequência em motociatas e nos dois últimos feriados de sete de setembro. Muitos deles foram custeados com dinheiro público e contaram com a presença do ex-presidente, dos ministros militares e de lideranças diversas da extrema-direita. Após o resultado eleitoral, bloquearam estradas, muitas vezes, com muita violência. E montaram acampamentos de vigília por um golpe militar em frente a quartéis do Exército. Sem essa trajetória não haveria o domingo golpista.

Ele também não aconteceria, ao menos não na forma que tomou, se as forças de segurança tivessem defendido os prédios da República. A pergunta aqui não pode ser outra senão: por que não o fizeram? Como foi possível que o presidente Lula estivesse visitando vítimas de chuvas na cidade de Araraquara quando um tal golpe era desferido em Brasília? Como foi possível que o ministro da Defesa, nomeado por Lula, não tenha tomado nenhuma iniciativa para defender os prédios? A conivência do governador do Distrito Federal e de sua secretaria de Segurança Pública já está mostrada, mas ela é parte e talvez nem seja a principal de uma rede de responsabilidades mais ampla. Tudo indica que os principais conspiradores continuam ausentes das manchetes de jornais.

A facilidade com que perpetraram a destruição torna difícil tranquilizar o espírito com a reação institucional. Ela existiu, os golpistas foram retirados, muitos estão sendo presos e indicados. O governador foi afastado e o governo federal assumiu o controle das forças de segurança do Distrito Federal. Medidas duras e necessárias. Elas abrem uma oportunidade para que as instituições organizem um combate permanente contra o movimento golpista, vigiando e punindo as pessoas que participam e que o financiam. A competência com que forem organizados monitoramento e os processos criminais será decisiva para derrotar o golpismo. Todavia, ela é reação ex-post a eventos que “normalmente” jamais poderiam ter ocorrido.

Sua ocorrência revela um problema maior, que decorre da politização das Forças Armadas e do entrelaçamento dos comandos militares com a extrema-direita golpista. É sabida a presença de familiares de oficiais nos acampamentos e nos movimentos golpistas. Houve no domingo registro da participação de oficiais na ativa na invasão das sedes. Quem pode acreditar que os comandantes não soubessem o que se preparava? Nas últimas semanas, o ministro da Defesa, José Múcio, dava declarações conciliatórias, afirmando que Jair Bolsonaro era um democrata, que as manifestações eram pacíficas, que ele próprio tinha familiares nos acampamentos golpistas e que eles se desfariam naturalmente, tratando o público com o tipo de paternalismo e infantilização característico da intransparência e impróprio para uma República democrática. As trocas de comando antecipadas para o mês de dezembro, antes da posse de Lula, já sinalizavam uma recusa da cúpula das Forças Armadas em reconhecer explicitamente a legitimidade do presidente eleito. Este conjunto torna difícil compreender de modo diverso o “colapso” dos serviços de inteligência e das forças de segurança no domingo golpista.

Há portanto um problema político que não se resolverá apenas com a organização da repressão ao golpismo e que se torna decisivo. Há um rol de perguntas a serem respondidas: Qual a extensão da responsabilidade dos atuais comandos militares? Como será possível despolitizar as forças armadas? Como reestabelecê-las nos parâmetros estritos de suas funções, com profissionalismo e respeito aos poderes republicanos e democráticos? São questões delicadas que vão exigir bastante dos governantes e o olhar atento da cidadania, das quais depende o futuro não só deste governo, mas do ordenamento posto pela Constituição de 1988. A história brasileira, que é usualmente conciliatória com os crimes e malfeitos dos mais poderosos e acomodatícia com as disfuncionalidades institucionais, não parece ser a melhor bússola para o presente. A reversão da tendência em curso deve exigir reformas mais profundas na organização das forças de segurança pública e militares que, se perseguidas com firmeza e no sentido democrático, podem abrir o caminho para superar a crise em curso. Para isso deve concorrer também um trabalho de reelaboração da linguagem e dos termos do debate político, concernente com o pluralismo e com o processamento democrático das diferenças. Nada disso se resolve rápido, mas apontam o sentido das ações políticas e a dimensão da tarefa.

Felipe Maia é Professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora. É doutor em Sociologia pelo IESP – UERJ (2014), com pós-doutorado no CPDOC-FGV (2015). É coordenador do projeto de pesquisa “Crises e críticas: intelectuais, teoria e processos sociais” e do Grupo de Estudos em Teoria Social (UFJF) e integração a coordenação do Grupo de Pesquisa do CNPQ “Metamorfoses da sociologia”. Organizador do livro Uma democracia (in)acabada (2019), publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial.