Jorge Bermudez: A guerra das vacinas e o papel da América Latina
Depois de lucrar US$ 31,4 bi com imunizantes em 2022, Pfizer planeja elevar preço de cada dose para mais de US$ 110.
Depois de lucrar US$ 31,4 bi com imunizantes em 2022, Pfizer planeja elevar preço de cada dose para mais de US$ 110. Cresce, pelo mundo, a resistência à saúde-mercadoria. Sul Global tem chance de traçar estratégias comuns para futuro diferente.
Artigo de Jorge Bermudez publicado no Outras Palavras em 08.02.2023.
Em homenagem ao aniversário da morte de Mahatma Gandhi, as Nações Unidas decretaram o dia 3 de fevereiro como Dia Universal da Não-Violência, lembrando a frase memorável de Gandhi: “Não há caminho para a Paz; a Paz é o caminho”. No mesmo dia se comemora o Dia Universal das Doenças Tropicais Negligenciadas, um grupo de doenças relacionadas à pobreza, que atingem populações pobres em países pobres e portanto não despertam o interesse da indústria farmacêutica para a pesquisa e desenvolvimento de tecnologias para sua prevenção, tratamento e proteção. Não haveria nada em comum nessas suas afirmações, não fosse o abismo, o verdadeiro “apartheid” que vivenciamos com o acesso a medicamentos, tecnologias e vacinas na pandemia e as manobras atuais que aprofundam cada vez mais esse abismo e a exclusão global das nossas populações a tecnologias em saúde.
Cada vez mais e com maior força, precisamos retomar a missão que o Secretário-geral das Nações Unidas proferiu ao designar o Painel de Alto Nível em acesso a medicamentos em 2016: propor medidas para equacionar as denominadas incoerências entre os objetivos da Saúde Pública; as leis e regulações de direitos humanos; e a propriedade intelectual e regras do comércio, no contexto do acesso a tecnologias de saúde.
Há pouco, mas sem surpresas, tivemos acesso a notícias que nos mostram esse “apartheid” entre o Norte Global e o Sul Global. De acordo com declarações recentes, a Pfizer acaba de anunciar que obteve receita de 100 bilhões de dólares e lucro de 31,4 bilhões de dólares em 2022. Para eles, uma bagatela e para nossos países do Sul Global, a diferença entre a vida ou a morte. Não é por acaso a luta que se trava nos EUA. O Senador Bernie Sanders, previsto para chefiar o Comitê de Saúde do Senado, reclama, indignado, que Pfizer e Moderna querem quadruplicar seus preços, colocando suas vacinas a preços entre 110 e 130 dólares por dose, alegando que com o declínio da pandemia, se trata de estimular o setor privado.Com a esperada decretação do fim da pandemia, o governo norte americano deixará de comprar vacinas, transferindo esta responsabilidade para os seguros privados de saúde. Essa transferência da provisão de vacinas para o setor privado se encontra estimada para ocorrer ainda nos primeiros meses de 2023, assim que se esgotarem os estoques governamentais.
Entretanto, temos oportunidades para avançar em nossa região e em nossos países. Em artigo recente, Carina Vance, ex-Ministra da Saúde Pública do Equador e ex-Diretora Executiva do Instituto Sul-americano de Governo em Saúde (ISAGS/ Unasul) nos coloca que a América Latina pode mudar os rumos de um novo modelo de saúde pública. Inicialmente, levanta uma série de erros do passado na pandemia, entre os quais destaca o fracasso das negociações de Bolívia com Canadá para a importação de vacinas, Uganda pagando preços mais altos do que países da Europa para vacinas da AstraZeneca, a obstaculização do “waiver” proposto na OMC por Índia e África do Sul, as falhas nas entregas de vacinas pela iniciativa COVAX e seu subfinanciamento pelos países do Norte, comprometendo as iniciativas multilaterais.
Apontando quatro níveis que têm que ser abordados nas estratégias comuns, destaca a transparência, o conhecimento, a indústria e a governança. Inicialmente, ela propõe negociação e aquisição conjunta de elenco de medicamentos, estratégia que no passado já mostrou sua efetividade; um Banco de Preços e a consolidação de nossa capacidade coletiva de produção e de regulação. Adicionalmente, torna-se necessário expandir nossa capacidade de produção nacional e regional. Finalmente, também é proposta uma coordenação internacional voltando a atuação como bloco de países.
Nesse contexto tão relevante para as iniciativas de Saúde Global, não restam dúvidas do papel de liderança e de integrar o espírito coletivo, que nosso Brasil do Futuro, que já começou, vai voltar a ocupar na Região e no mundo. Com o Presidente Lula, as equipes sob o comando das nossas ministras da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Inovação estarão caminhando lado-a-lado na reconstrução de um Brasil mais solidário, desenvolvendo e incorporando tecnologias para compor nossa soberania sanitária.
Na guerra das vacinas, mas não restrita à mesma, temos que dar um basta nos monopólios e na precificação que a indústria nos impõe. Custo e preço não podem estar dissociados e vamos estimular a competição, fortalecer o Complexo Econômico e Industrial da Saúde, investir novamente em pesquisa e desenvolvimento, expandir nossa capacidade produtiva e implementar políticas que assegurem o acesso, privilegiando nossas populações negligenciadas e vulneráveis.
JORGE BERMUDEZ
Médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)