Diego Pautasso: O Brasil diante da rivalidade sino-americana
Lula se encontra não apenas diante do imperativo da reconstrução nacional, mas de retomar o protagonismo internacional do Brasil
Lula se encontra não apenas diante do imperativo da reconstrução nacional, mas de retomar o protagonismo internacional do Brasil
Por Diego Pautasso, no Opera Mundi em 13.02.23
O presidente Lula se encontra não apenas diante do imperativo da reconstrução nacional, mas de retomar o protagonismo internacional do Brasil. Esse desafio se torna particularmente complexo tendo em vista a transição sistêmica e a crescente competição sino-americana.
No dia 10 de fevereiro, o presidente Lula visitou Joe Biden, chefe de Estado dos EUA. Na delegação brasileira, além do petista, foram a Washington os ministros Mauro Vieira (Relações Exteriores), Fernando Haddad (Fazenda), Marina Silva (Meio Ambiente), Anielle Franco (Igualdade Racial), o assessor especial, embaixador Celso Amorim, o secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento Econômico e Comércio, Márcio Elias Rosa, e o senador Jaques Wagner.
Antes do encontro com o presidente Biden, Lula concedeu entrevista exclusiva a Christiane Amanpour, da rede CNN. Nela, abordou temas diversos, tais como os ataques à democracia no Brasil, o papel dos militares na política, os processos contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, a guerra na Ucrânia, a polarização política e a força da extrema direita, bem como temáticas ambientais.
A questão democrática certamente foi um ponto que aproximou os dois presidentes. Os episódios golpistas do 8 de janeiro em Brasília e os paralelos com o processo que culminou com a invasão do Capitólio em Washington, em 2021, revelaram a necessidade recíproca de isolar a extrema direita. Lula, apesar do grande apoio nos círculos internacionais de poder, precisa fortalecer sua legitimidade interna, dado que boa parte do empresariado e das classes médias são fortemente anti-lulistas, e ter força para enfrentar a oposição bolsonarista no Parlamento.
Contudo, há divergências nessa agenda democrática. Biden organizou uma Cúpula pela Democracia, em dezembro de 2021, dirigindo seu discurso contra países não-alinhados, notadamente China, Rússia, Irã e Venezuela. Já Lula, apesar do interesse na frente democrática voltada contra a ascensão da extrema direita, segue seu pragmatismo e o princípio de não intervenção em assuntos domésticos. Não apenas isso, Lula demonstrou não aderir à linha de tentar isolar Venezuela e Cuba e ainda se opõe às sanções norte-americanas como forma de lidar com estes países.
Além da democracia, o encontro trouxe ainda outros temas para a agenda bilateral, tais como as questões ambientais, em especial a questão climática; de investimentos produtivos, sobretudo em energia limpa; e de direitos humanos, em particular no combate à pobreza e ao racismo. Na declaração conjunta, entre outros indicativos, “se comprometeram a revitalizar o Plano de Ação Conjunta Brasil-EUA para a Eliminação da Discriminação Racial e Étnica”; “reconhecem o papel de liderança que o Brasil e os EUA podem desempenhar por meio da cooperação bilateral e multilateral, inclusive sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e o Acordo de Paris”; e decidiram discutir “o combate ao desmatamento e à degradação, o fortalecimento da bioeconomia, da implantação de energia limpa, das ações de adaptação e a promoção de práticas agrícolas de baixo carbono”.
O presidente Lula disse ainda que seu homólogo se dispôs a participar do Fundo Amazônia com valor estimado em US$ 50 milhões. O fundo, criado há 15 anos para financiar ações de redução de emissões provenientes da degradação florestal e do desmatamento na Amazônia, conta com doações internacionais e já recebeu recursos da Noruega e Alemanha. Lula deixou claro, porém, ao falar com a imprensa na frente da Casa Branca, residência oficial do governo norte-americano, que não quer “transformar a Amazônia em um santuário da humanidade” nem abrir mão da soberania brasileira sobre a região.
Lula disse ainda que o Brasil se auto marginalizou nos últimos quatro anos, pois Bolsonaro “não gostava de manter relações com nenhum país” e “menosprezava relações internacionais”. Segundo Lula, Bolsonaro é uma cópia fiel [de Donald Trump]. Não gosta de sindicatos, não gosta de trabalhador, não gosta de mulheres, não gosta de negros, não gosta de conversar com empresários, não gosta de falar com a imprensa”. Ao término da fala de Lula, Biden sorriu e disse ser muito familiar – em alusão ao modo de fazer política de seu antecessor.
O pragmatismo e experiência de Lula juntos não permitiram que Biden pautasse a reunião. O atual presidente norte-americano pressionou para que o Brasil tomasse partido ao lado de Volodymyr Zelensky na guerra na Ucrânia. Contudo, o presidente Lula já havia negado o envolvimento no conflito na reunião com o presidente francês, Emmanuel Macron, e com o chanceler alemão, Olaf Scholz, na semana passada, em visita recente a Brasília.
Lula não apenas rejeitou em ambos os casos, como seu intento de criar um grupo de países para buscar a paz. O presidente brasileiro deixou claro em coletiva à imprensa que não vai aderir a uma nova Guerra Fria – e inclusive já marcou visita à China.
Lula também se encontrou com os deputados democratas Pramila Jayapal (Washington), Alexandria Ocasio-Cortez (Nova York) e Sheila Jackson Lee (Nova York) na Blair House e, ainda, o senador Sanders, do Partido Democrata. Sanders e Lula destacaram o imperativo de fortalecer as bases da democracia, com destaque para os riscos da desinformação. Tanto Trump quanto Bolsonaro basearam suas atuações políticas na disseminação de fake news e no enfraquecimento das instituições estatais.
O que se observa claramente é que os EUA estão disputando a posição internacional do Brasil agora com o novo governo Lula. É sabido que a influência brasileira é expressiva em toda a região sul-americana e que a atual diplomacia brasileira deve convergir com os movimentos internacionais voltados ao fortalecimento da ordem multipolar. Para Lula, não se tratava de obter grandes conquistas dos EUA – que estes parecem sem condições de ofertar, como ficou claro. O objetivo é estabelecer um bom canal de diálogo e evitar que os EUA se transformem num empecilho à movimentação global da diplomacia brasileira.
O Brasil e as relações triangulares
Os EUA foram, durante o século XX, o principal parceiro comercial do Brasil. Essa posição foi suplantada pela China em 2009 e, desde então, a participação no comércio exterior tem mudado significativamente. Em 2022, Washington representou cerca de 14% do comércio exterior brasileiro, enquanto Pequim ficou próximo a 27% – ou seja, quase o dobro da participação norte-americana. Obviamente, esse redirecionamento do fluxo comercial, mas também de investimentos e acordos de cooperação, refletem profundas mudanças sistêmicas e influenciam a inserção internacional do Brasil.
Em 2022, o comércio bilateral entre Brasil e EUA alcançou US$ 88,7 bilhões. Neste ano, o Brasil importou US$ 51,3 bilhões e exportou US$ 37,4 bilhões para os Estados Unidos, com déficit de US$ 13,9 bilhões. Apesar do déficit comercial, a pauta de exportação tem um maior valor agregado, em comparação com as exportações para a China, como veremos.
Diferentemente dos EUA, a China tem proporcionado superávit sistemáticos para o Brasil – apenas nos últimos seis anos, o mercado chinês nos rendeu cerca de US$ 180 bilhões de saldo comercial. Aliás, desde 2002, antes de Lula assumir, o fluxo comercial passou de US$ 4,4 bilhões para quase US$ 68 bilhões quando a presidente Dilma Rousseff foi derrubada do cargo, em 2016. E apesar da diplomacia errática de Bolsonaro, em 2022 o comércio totalizou US$ 150 bilhões – responsável por US$ 28,9 bilhões de superávit ou quase metade do total de US$ 61 bilhões.
No Brasil, a vinculação histórica com os EUA e seus aliados produziu uma socialização e mentalidades vinculadas às ideologias e estilo de vida norte-americana. As forças políticas e sociais pró-EUA no Brasil são compostas principalmente por partidos de direita, empresariado, grande mídia e setores de média e altas classes sociais, sobretudo os segmentos mais cosmopolitas comungam de uma maior afinidade com este campo ocidental. Recentemente, sob o governo Bolsonaro e o fortalecimento da extrema direita.
Com a eleição do governo Lula, o Brasil deve fazer um giro na sua política externa, voltando a dar ênfases à cooperação Sul-Sul e aos Brics. Por se tratar de uma coalizão governamental muito heterogênea, há grupos políticos e perspectivas muito diferentes. Na verdade, o Brasil da atualidade vive uma contradição latente. De um lado, nossa socialização faz com que as inclinações culturais e ideológicas sejam voltadas aos EUA. De outro, o mercado exterior e os ganhos econômicos são cada vez mais dependentes da China. Numa frase: a elite brasileira sonha com Miami mas tem seu bolso vinculado a Xangai. Talvez o setor mais ilustrativo seja o próprio agronegócio, cuja dependência do mercado chinês é enorme, mas com total alinhamento com o ex-presidente Bolsonaro.
Diante desse quadro, tudo indica que Lula vai buscar extrair as melhores possibilidades diante da transição sistêmica e da crescente multipolarização. Uma política externa que barganhe as melhores condições de inserção internacional e sirva para alavancar o desenvolvimento nacional. Ou seja, o que sabemos é que Lula não fará nenhum tipo de alinhamento automático, conforme a própria tradição do Itamaraty – rompida por Bolsonaro ao se alinhar com Trump.
Em suma, Lula sabe que os EUA não têm as mesmas condições da outrora potência hegemônica do pós-guerra. O recente encontro não produziu sequer uma sinalização de grandes investimentos ou acordos de cooperação importantes. A diplomacia brasileira deverá dar prioridade à cooperação Sul-Sul, sobretudo ao processo de integração sul-americana, o que inclui retomar e impulsionar a Celac e a Unasul.
A China, como potência ascendente, desponta como um campo de possibilidades e oportunidades maior para o Brasil, embora nossas exportações estejam concentradas para o país asiático em produtos primários, sobretudo soja, petróleo e minério de ferro. Esse é apenas uma dimensão de uma problemática desindustrialização brasileira que remonta à década de 1980. Aliás, entre 1995 e 2020, saímos da 25ª posição no ranking da complexidade econômica para a 60ª – enquanto a China passou da 46ª para 17ª. Ou seja, não somos dependentes da China, mas das commodities.
Desde o final do governo Dilma, a partir de 2014, a situação econômica do Brasil se degenerou aceleradamente. Segundo dados da segundo cálculos do centro de pesquisas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Brasil fechou a década de 2011 a 2020 como a pior para a economia em 120 anos, com crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) de apenas 0,3% – incluindo três anos em queda, 2020 -4,3%, 2016 -3,3% e 2015 -3,5%. Em 2021 e 2022, num contexto de pandemia, cuja gestão foi desastrosa no Brasil, a situação socioeconômica se tornou ainda mais problemática, tornando a insegurança alimentar extremamente grave.
Enfim, trata-se de uma quadra histórica disruptiva de transição sistêmica. A China é um país chave para a consecução de uma ordem multipolar oposta à neoliberal e unilateral promovida por Washington. A China também pode se tornar uma variável chave para alavancar nossa industrialização, desde que os investimentos e acordos de cooperação sejam condicionados por transferências tecnológicas e joint ventures. Cabe, pois, ao Brasil realizar uma leitura acurada das oportunidades e desafios para impulsionar o desenvolvimento nacional e ocupar um lugar no sistema internacional compatível com sua estatura.
(*) Diego Pautasso é doutor (2010) e mestre (2006) em ciência política e graduado (2003) em geografia pela UFRGS. É professor colaborador do Centro de Estudos da América Latina e Caribe da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sudoeste (Sichuan/China). Autor dos livros “Imperialismo – ainda faz sentido na Era da Globalização?”; “China e Rússia no Pós-Guerra Fria”; e co-autor de “Teoria das Relações Internacionais: contribuições marxistas”.