Fábio Palácio: Lula e a revolução cultural
Artigo de Fábio Palácio publicado originalmente na Revista Cult
Artigo de Fábio Palácio publicado originalmente na Revista Cult, em 16.02.2023
Após o processo fraudulento e a prisão injusta que sofreu, o presidente Lula anda externando instigantes percepções. Na primeira reunião ministerial do novo governo, realizada no dia 6 de janeiro, ele se dirigiu à ministra da Cultura, Margareth Menezes, para afirmar que o país precisa de uma “revolução cultural”. O termo é forte, tanto por seu significado intrínseco quanto pelas experiências históricas às quais se associa. Mas não deve surpreender que o presidente assim tenha se expressado ao tratar das tarefas do governo na área cultural.
Após a citação presidencial, viu-se uma chuva de memes na internet com referências ao líder chinês Mao Tsé-Tung. Mas a verdade é que a ideia não é criação genuína do maoismo e nem remete só aos polêmicos desenvolvimentos que teve na China.
O termo “revolução cultural” foi empregado pela primeira vez em “Sobre a cooperação”, um dos últimos escritos de Lênin, datado de janeiro de 1923. No artigo, ele trata da cooperativização dos camponeses russos e afirma que ela exigirá uma profunda mudança de mentalidades. “Essa cooperativização completa é impossível sem toda uma revolução cultural”, afiançava Lênin. Para o líder bolchevique, a cultura crescia de importância na agenda política. Ela se tornava, mesmo, o “centro de gravidade” do trabalho transformador. Isso é dito textualmente em excerto capaz de surpreender os “materialistas” mais empedernidos:
[…] Vemo-nos obrigados a reconhecer a mudança radical de todo o nosso ponto de vista sobre o socialismo. Essa mudança radical consiste em que anteriormente colocávamos e devíamos colocar o centro de gravidade na luta política, na revolução, na conquista do poder etc. Mas agora o centro de gravidade desloca-se e transfere-se para o trabalho pacífico de organização “cultural”. Estou tentado a dizer que para nós o centro de gravidade se transferirá para a ação cultural, se não fossem as relações internacionais, se não fosse termos de lutar pela nossa posição à escala internacional. Mas se deixarmos isto de lado e nos limitarmos às relações econômicas internas, na realidade o centro de gravidade do trabalho reduz-se agora à ação cultural.
Lênin se refere, então, a um profundo mas paciente revolvimento das velhas instituições culturais e educacionais. Nessa perspectiva, a ideologia da classe trabalhadora não poderia triunfar sobre as velhas visões de mundo feudais nem sobre o contemporâneo egoísmo burguês sem esse revoltear constante de estruturas ideológicas antigas e consolidadas.
Um aspecto tem sido pouco notado nessa aparição pioneira do termo “revolução cultural”. Lênin percebe que a resolução de um problema de natureza econômica — a cooperativização dos camponeses — passava pelo equacionamento de tarefas culturais. Elas estariam profundamente entrelaçadas às questões produtivas. O que Lênin percebe, mais do que isso, é a dimensão material da cultura. Podemos mesmo afirmar: o que mais tarde se convencionaria chamar de materialismo cultural, termo associado à obra do pensador galês Raymond Williams, já estava em alguma medida presente nas percepções seminais de Lênin. Elas seriam desenvolvidas posteriormente por autores como Gramsci e a própria geração britânica que se formou em torno de Williams e do historiador Edward Thompson.
Ao falar desse entrelaçamento entre tarefas econômicas e culturais, impossível é não pensar no debate que temos hoje diante de nós, relativo ao nível da taxa de juros e à independência do BC. Trata-se de um debate ideológico desde a saída. A discussão chega a assumir dimensão epistemológica, porquanto os porta-vozes do mercado adotam o ilusionismo de postular a determinação da taxa de juros como questão puramente técnica, objeto do mais puro “cálculo”, que não comportaria interferências “políticas”.
É como se calcular a taxa de juros fosse o mesmo que calcular a força do impacto de uma pedra jogada por alguém do alto de um prédio de dez andares. Ora, são coisas submetidas a distintos regimes de argumentação e prova. Mesmo porque a economia não é uma “física social” — para usar as palavras de Augusto Comte. Ela foi, é e sempre será uma ciência social, infensa à pura matematização — embora seja este o sonho renitente daqueles que almejam transformá-la numa espécie de ciência exata pura, com as costas viradas para a história e a tradição humanística.
De todo modo, esse caso mostra que, na atualidade, as tarefas capazes de deslindar uma nova fase da vida nacional são, em larga medida, de ordem cultural e ideológica. É preciso disputar consciências, desarmar as armadilhas do discurso dominante — e aquela que se coloca no debate sobre os juros está longe de ser a única.
Reconhecer a importância das ideias — e da luta de ideias — é perceber que o moderno materialismo de Marx não se confunde com o ingênuo materialismo burguês anterior, marcado por um empirismo vulgar que via a consciência como mero eflúvio secundário da matéria. Como sentenciava Raymond Williams, a separação e a abstração da consciência como mero “reflexo” resultam em uma idealização da própria consciência.
De fato, é impossível negar que, em certas vertentes reducionistas e economicistas, uma série de processos ideológicos, todos eles materiais, foram idealizados como produtos de segundo estágio. Isso contribuiu para obscurecer a percepção de seu lugar na vida social. Na contramão dessa tendência, é necessário ressaltar que a consciência e seus produtos são parte inseparável do processo social material.
O termo práxis, enfatizado na obra gramsciana, vai ao encontro dessas preocupações. O conceito embute uma forma de expressar a indissociabilidade da ação histórica em seus múltiplos aspectos, teóricos e práticos, e tem ainda o mérito de ressaltar o caráter prático da consciência.
Em outras palavras, afirmar a materialidade da cultura não é apenas reconhecer que as ideias provêm da realidade material. É reconhecer que elas são constitutivas, funcionam como vetores que dão forma concreta a essa mesma realidade, concepção bem enquadrada no conceito de formação econômico-social. Nesse sentido, o filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton lembra, em seu livro Ideologia, que o fator distintivo do gênero humano é “o fato de que ele se move em um mundo de significados; e esses significados são constitutivos de suas atividades, e não secundários a elas. As ideias são internas a nossas práticas sociais, e não meros produtos destas”.
Nos dias de hoje, a ideia reducionista que concebe a cultura como dotada de relações de segunda ordem em relação à política e à economia não contribui para uma compreensão adequada do que se passa em um mundo no qual se torna cada vez mais inviável separar as questões culturais das ditas econômicas e políticas.
Nesse terreno, compreensões inadequadas levam, frequentemente, ao espontaneísmo na luta ideológica. Quem não entende a materialidade das ideias, quem as coloca em um domínio apartado — regredindo à perspectiva romântica que opõe “cultura” e “civilização” — também não irá perceber que as ideias são fruto de meios materiais de produção e de iniciativas deliberadas. Ideias não brotam espontaneamente.
Não basta resolver os problemas ditos “materiais” — emprego, salário, transporte, alimentação e moradia — para que ideias avançadas brotem por si mesmas. Vimos, na história recente de nosso país, que as coisas não se passam dessa forma. O florescimento de certas ideias requer meios e planejamento próprios. A negligência nessa área pode ser fatal, como vimos de 2013 para cá.
No ciclo de governos progressistas que perdurou de 2003 a 2016, importantes carências foram solucionadas. Mas não havia o mesmo investimento na necessária conscientização sobre o que estava sendo feito. Isso abriu terreno para que a direita mais reacionária, investindo com força nos novos meios digitais, oferecesse sua própria interpretação, despolitizando as conquistas, colocando-as como fruto do mérito e da iniciativa individual, e não de um projeto político deliberado.
Ao que tudo indica, a referência de Lula à “revolução cultural” foi a forma que o presidente encontrou para expressar essas percepções. E aqui voltamos ao ponto de partida: o que significa exatamente a tal “revolução cultural”?
O que Lênin propugnou foi um novo sistema de criação, distribuição, troca e assimilação de ideias e valores. A fim de alcançar o novo sistema, diversas tarefas se colocavam na ordem do dia, entre elas a edificação de um novo sistema de educação pública; a reorientação do trabalho da burocracia e dos intelectuais; a promoção do progresso científico, artístico e literário; a construção de um novo estilo de vida, pautado por valores humanistas e por uma ética socialista.
Essas tarefas podem ser sintetizadas em dois objetivos básicos: o combate às trevas do obscurantismo, da ignorância e do analfabetismo, e a criação da nova vida e do “homem novo”, isto é, a formação de seres humanos movidos a elevadas aspirações sociais e morais. No final das contas, o principal objetivo da revolução cultural é o estabelecimento de novas relações sociais.
Essas relações de novo tipo não são uma utopia distante: elas surgem no seio da própria sociedade atual, na forma de pressões e tendências contra-hegemônicas que, contudo, só podem se desenvolver plenamente com a conquista de um poder político voltado à realização dessas mesmas tendências. Isso nos remete à questão do Estado.
Na visão de Gramsci, é tarefa do Estado aprimorar os indivíduos do ponto de vista civilizacional. O marxista italiano afirmava que, numa perspectiva contemporânea de revolução cultural, a questão é como fazer isso de forma não coercitiva, ou seja, transformando em liberdade aquilo que, do ponto de vista histórico, só tem sido possível através da coerção.
Para Gramsci, a resposta se encontra na ampliação das noções correntes do direito. A esfera jurídica precisa se fundir, cada vez mais, ao modo de vida, ou seja, à dimensão cultural. Afirma Gramsci nos Cadernos do cárcere:
Como cada indivíduo singular conseguirá incorporar-se ao homem coletivo e como sucederá a pressão educativa sobre os indivíduos obtendo-se deles o consenso e a colaboração, fazendo tornar-se “liberdade” a necessidade e a coerção? Questão do “direito”, cujo conceito deverá ser estendido, passando a abranger também aquelas atividades hoje compreendidas sob a fórmula de “indiferente jurídico”, as quais são de domínio da sociedade civil que opera sem “sanções” e sem “obrigações” taxativas, mas nem por isso deixam de exercitar uma pressão coletiva e obtêm resultados objetivos de elaboração nos costumes, nos modos de pensar e de operar, na moralidade etc.
Na visão de Gramsci, todo Estado tende a criar ou manter um tipo determinado de cidadão e de civilização, e o faz por meio do combate a certos costumes e atitudes e também através do estímulo a outros. O Estado deve ser concebido, portanto, como “educador”, na medida em que busca criar um novo tipo de civilização. Dessa forma, o italiano vê as esferas política e jurídica, ao lado da escola e de outras instituições culturais, como instrumentos para a formação da nova civilização e do “homem novo” — questão chave para uma antropologia marxista.
É por isso que cada ação no domínio do Estado deve ser sempre pensada de modo a conter um componente educativo. Não deixa de ser o que vimos recentemente no caso da missão de salvamento do povo Yanomami: ela trouxe consigo um elemento de denúncia talvez mais didático e instrutivo do que mil aulas de direitos humanos.
Os últimos anos da vida política nacional convidam a uma série de reflexões. Delas depende, em grande medida, o enfrentamento bem-sucedido dos desafios que se descortinam. Algumas perguntas precisam ser encaradas: por que a hegemonia progressista do ciclo 2003-2016, que parecia tão sólida, pôde ser tão rapidamente desconstruída, no espaço de poucos anos? E como fazer para reconstruir essa hegemonia em bases mais robustas e consistentes?
Não há respostas fáceis para essas perguntas de grande complexidade. Mas a menção de Lula à revolução cultural deixa pistas. Elas passam por nos debruçarmos sobre o papel das ideias na elaboração da vida material, na construção da materialidade econômica e política.
Fábio Palácio é doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP) e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Este artigo contém trechos de palestra proferida no último dia 11 de fevereiro no Seminário de Estudos Avançados da Fundação Maurício Grabois.