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Caio Prado Júnior: a trajetória multifacetada de um grande intelectual brasileiro

26 de fevereiro de 2023

Tiago Nery apresenta a obra de Caio Prado Jr

Por Tiago Nery*

No último dia 11 de fevereiro, completaram-se 116 anos do nascimento de Caio Prado Júnior. Nascido em 1907, em uma família ligada à alta aristocracia cafeeira paulista, Caio Prado tornou-se um dos mais importantes intérpretes do Brasil, que utilizou de maneira original o materialismo histórico para compreender a história e a realidade brasileira.

            Caio Prado fez parte daquela geração de 1930 que tentou explicar o Brasil como uma totalidade dotada de sentido. Obras como Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, Evolução política do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, revolucionaram os estudos históricos. Ao longo dos seus 83 anos de vida, além da sua destacada atividade intelectual, Caio Prado foi membro do Partido Comunista do Brasil (PCB), deputado estadual e editor. Entre suas obras mais conhecidas, destacam-se Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e A revolução brasileira (1966).

Anos de formação e relação com o PCB

            Desde cedo, Caio Prado demonstrou predileção pelas coisas brasileiras, o que desencadearia seu desejo de interpretar a realidade do Brasil antes mesmo de qualquer contato com o marxismo. Entre 1924 e 1928, formou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. No final desta década, ingressou no Partido Democrático, agremiação que encarnava os ímpetos mudancistas da dissidência oligárquica paulista.

            Caio Prado apoiou a Revolução de 1930, mas desiludiu-se rapidamente, rompendo com o Partido Democrático e Vargas. Suas inquietações não cabiam no leito estreito da política oligárquica e mesmo no da sua dissidência. Em 1931, filiou-se ao PCB. No ano seguinte, recusou-se a apoiar a Revolução Constitucionalista, por entender que a mesma contrariava os poucos avanços trazidos pela Revolução de 1930. Com a fundação da USP, em 1934, Caio Prado matriculou-se em Geografia e História na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras. Ainda neste ano, contribuiu para a fundação da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB). Seu interesse por geografia seria imprescindível para sua posterior obra como historiador.

            Em 1935, ingressou na Aliança Nacional Libertadora (ANL), sendo vice-presidente da organização em São Paulo. Preso entre 1935 e 1937, saiu da cadeia para o exílio na França, onde atuou em manifestações de solidariedade à Espanha republicana e no auxílio aos refugiados da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Além de ligar-se ao Partido Comunista Francês (PCF), assistiu a aulas na Sorbonne, frequentando assiduamente sua biblioteca.

            Da primeira geração de comunistas, Caio Prado foi um dos poucos que se manteve fiel ao Partido, produzindo uma obra original. Sempre que suas práticas políticas chegaram próximo da ruptura, refugiou-se na disciplina partidária. A opção pelo comunismo fez com que Caio Prado sacrificasse sua vida pessoal em nome dos ideais. Ele expôs a si mesmo e à sua família à execração pública, foi constantemente vigiado pelos órgãos de segurança, sofreu prisões arbitrárias em três ocasiões (1935, 1948, 1970), e viu-se obrigado a se exilar nos anos 1930 e durante a ditadura militar.

Atuação parlamentar

            Em 1945, o PCB foi legalizado. Nas eleições de janeiro de 1947, Caio Prado apresentou-se como candidato a deputado estadual, recebendo o apoio de importantes intelectuais, como Monteiro Lobato. Politicamente, sua atuação parlamentar foi um mergulho na discussão cotidiana dos problemas concretos da população. Como deputado, mobilizou amplamente seu saber econômico, histórico e jurídico a favor da democracia econômica e do progresso social.

            Na Assembleia Legislativa, integrou a Comissão Especial de Constituição, apresentando estudos sérios e embasados sobre a questão tributária. Entre suas propostas, destacaram-se a defesa da progressividade tributária e a criação de uma fundação para o apoio à pesquisa científica. A criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), em 1960, viria a coroar seu esforço. Em janeiro de 1948, teve seu mandato cassado e foi preso por três meses.

Atuação como editor e a contribuição da Revista Brasiliense ao debate intelectual

            Em 1943, Caio Prado fundou a editora Brasiliense, um empreendimento que teve como sócio, além do seu pai, Leandro Dupré (Maria José Dupré, autora de Éramos seis, de 1943), Hermes Lima e Monteiro Lobato. Em 1955, criou a Revista Brasiliense, que se tornaria a mais importante publicação da esquerda brasileira por quase uma década. O periódico buscou criar um espaço político de discussão para as ideias de esquerda, dialogando com a intelectualidade progressista da imprensa, dos partidos e da universidade. A última edição, número 52, foi apreendida e destruída pela polícia quando estava na Gráfica Urupês, logo após o golpe de 1964. A gráfica, que pertencia a Caio Prado, seria incendiada em 1966.

            Caio Prado apoiou desde jovens pesquisadores e militantes políticos, como Carlos Nelson Coutinho e Clóvis Moura, até renomados estudiosos acadêmicos, nacionais e estrangeiros. Ele nunca se recusou a ajudar quem o procurasse. No entanto, sua opção de vida o privou de trabalhos acadêmicos formais. Em 1954, candidatou-se à cátedra de economia política da Faculdade de Direito da USP. Apesar de aprovado, não obteve a cadeira de professor por razões políticas, mas apenas o título de livre-docente. Em 1968, animado por Sérgio Buarque, Caio Prado escreveu História e desenvolvimento, tese feita para concorrer à cátedra de História do Brasil da USP. O concurso, entretanto, foi cancelado por motivos políticos.

Um marxismo original para entender o Brasil e a América Latina

            Em 1970, aos 63 anos, Caio Prado foi acusado de “incitação subversiva” pela ditadura militar e condenado a 4 anos e meio de prisão. Em certo momento da instrução do processo, o oficial que o interrogava chegou a lhe perguntar: “o senhor é o homem que inventou esse tal de marxismo no Brasil, não é?”.

            Se Caio Prado não inventou o marxismo no Brasil, ele, entretanto, a partir do método descoberto por Marx, inaugurou por aqui a construção do que poderíamos chamar de “economia política do Brasil”. Segundo Leda Paulani (2021), Caio Prado foi um grande historiador porque trazia na base da sua análise a economia política. Como observa Luiz Bernardo Pericás (2016), Caio Prado foi o primeiro a utilizar de forma sofisticada, com êxito e em um trabalho de fôlego, o materialismo histórico no Brasil.

            Caio Prado Júnior faz parte da linha cronológica e cultural do desenvolvimento do marxismo nas Américas, ao lado do peruano José Carlos Mariátegui. Trata-se de uma tradição que tentou elaborar um arcabouço teórico e interpretativo compatível com a realidade do continente, ao mesmo tempo em que dava igual ênfase a uma ativa militância política, com o objetivo de mudar o contexto social em que atuava. Depois de Formação do Brasil contemporâneo, outros livros destacariam a ligação do Brasil e da América Latina com o resto do mundo. Esse tipo de análise seria desenvolvida posteriormente pela CEPAL, por Celso Furtado e pela Teoria da Dependência.

Formação do Brasil contemporâneo (1942)

            Formação do Brasil contemporâneo foi um marco na historiografia porque descobriu o sentido de nossa colonização: o país foi estruturado para atender às necessidades externas, e não seu mercado interno, as necessidades de seu povo. Na obra, Caio Prado adaptou de maneira original o método marxista à realidade brasileira, reconstruindo a totalidade da experiência colonial. Segundo Caio Prado (2011, p. 15), “todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo”.

            A colônia foi um empreendimento voltado para a produção, em grandes unidades trabalhadas pelo braço escravo, de bens demandados pelo mercado externo. Em sua análise, Caio Prado articulou o empreendimento colonial com a inserção do Brasil no sistema capitalista internacional em formação. A ocupação e o povoamento do território que constituiria o Brasil foi apenas um episódio dos objetivos mercantis que impulsionaram o projeto colonizador e expansionista europeu. No seu conjunto, a colonização dos trópicos tomou o aspecto de uma vasta empresa comercial.

            Se formos à essência de nossa formação, veremos que fomos constituídos para fornecer açúcar, minerais, tabaco, café e outros gêneros para o comércio europeu. Foi com tal objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Segundo Caio Prado Júnior, é esse o verdadeiro sentido da colonização tropical, que explicará os elementos fundamentais da formação econômica, social e política do Brasil.

A revolução brasileira (1966)

         A revolução brasileira é ao mesmo tempo uma análise das razões que levaram à derrota da esquerda e ao golpe de 1964, e um acerto de contas com o PCB, sobretudo à concepção de história predominante no Partido. As teses contidas nesta obra sobre o caráter capitalista do Brasil negava as explicações dualistas da época, que opunham um Brasil feudal e do latifúndio ao Brasil capitalista e da burguesia nacional.

            Para Caio Prado, a teoria da revolução brasileira deveria ser expressão da conjuntura econômica, social e política do momento, e não de especulações abstratas inspiradas em modelos apriorísticos fora e acima dos fatos concretos da nossa realidade. A teoria marxista da revolução brasileira foi formulada, em seus traços gerais, na década de 1920. Trata-se de uma concepção oriunda do Programa da Internacional Comunista (IC) adotado pelo VI Congresso, em 1928, que enquadrou, em um mesmo esquema, os países asiáticos (coloniais e semicoloniais) e latino-americanos (dependentes). As teses da IC propugnavam uma revolução agrária (eliminação dos “restos feudais”) e anti-imperialista. Essas teses, consideradas equivocadas por Caio Prado, se tornaram paradigmas da direção e dos teóricos do PCB.

            Segundo Caio Prado Júnior, o Brasil nunca foi feudal ou semifeudal. Portanto, o conceito de latifúndio feudal/semifeudal seria inteiramente descabido. A grande propriedade rural brasileira se constituiu na base da exploração comercial em larga escala (engenho, fazenda) e no trabalho escravo (indígena e negro). A massa trabalhadora sempre foi concebida como simples força de trabalho a serviço do negócio da grande exploração agrária voltada para o mercado internacional.

            Para Caio Prado, os setores agrário e industrial ligavam-se intimamente e se amparavam mutuamente em muitas circunstâncias. Apesar de a burguesia brasileira ter setores com interesses divergentes, formava, no essencial, uma classe coesa e homogênea que não se encontrava cindida internamente por contradições e oposições irredutíveis. Os “traços escravistas”, longe de constituírem obstáculos ao desenvolvimento, tinham sido altamente favoráveis ao progresso, pois contribuíam para a compressão da remuneração do trabalho, favorecendo assim a acumulação capitalista. As pistas da articulação entre os setores atrasados e modernos, que seriam desenvolvidas posteriormente por Francisco de Oliveira (Crítica à razão dualista) e Florestan Fernandes (A revolução burguesa no Brasil), já estavam presentes na obra caiopradiana.

            Por fim, Lincoln Secco (2007) observa que Caio Prado sempre insistiu na natureza processual da revolução (o que o aproximaria de uma concepção gramsciana). Trata-se de uma concepção que ele julgava adequada a um país conservador em sua essência, avesso a mudanças e marcado por um ferrenho anticomunismo.

Legado/Atualidade

            Caio Prado Júnior foi responsável pela elaboração de um pensamento crítico original, vigoroso e atual. Sua obra estabelece uma espécie de síntese entre economia, história, geografia e sociologia. Sua trajetória, como intelectual e homem de ação, aponta para os nexos entre teoria e prática, conhecimento e transformação da realidade.

            Como marxista, Caio Prado Júnior sempre manteve uma postura crítica e independente em relação às teorias e às práticas “oficiais”. Desde a década de 1930 até o final de sua vida, defendeu a luta pela “revolução brasileira” (que levaria, em última instância, ao socialismo), ainda que, certamente, apontasse para as especificidades do seu caráter.

            Por fim, a obra caiopradiana continua atual porque os problemas do Brasil por ela analisados continuam, em grande parte, presentes. O moderno agronegócio, a persistente concentração fundiária e a insegurança alimentar representam ecos da grande exploração colonial. Além disso, a inquietação de Caio Prado com nossa inserção internacional continua atual diante da reprimarização da estrutura produtiva e dos desafios que temos de enfrentar para levar a cabo um projeto de desenvolvimento capaz de combinar coesão social com reposicionamento do Brasil no sistema internacional.

Bibliografia

PAULANI, L. A economia política do Brasil e seu mestre soberano. In. PRADO JÚNIOR, C. História e desenvolvimento: a contribuição da historiografia para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2021.

PERICÁS, L. B. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016.

PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

______. A revolução brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SECCO, L. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo, 2008.

*Tiago Nery é doutor em ciência política pelo IESP/UERJ, assessor internacional do INI-FIOCRUZ e pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial (LABMUNDO). E-mail: [email protected]