Teoria do “direito à preguiça” é usada pela esquerda na França contra reforma da Previdência
A França é palco de um intenso debate sobre a reforma da Previdência que o presidente Emmanuel Macron quer aprovar a todo custo.
Protesto contra a Reforma da Previdência em Paris, em 7 de março de 2023. Foto: Alain Jocard/AFP
Por Daniella Franco, no RFI.
A França é palco de um intenso debate sobre a reforma da Previdência que o presidente Emmanuel Macron quer aprovar a todo custo. Entre as muitas polêmicas em torno do projeto de lei, que está sendo discutido no Senado neste momento, veio à tona o argumento do “direito à preguiça”, que coloca a esquerda e o governo em pé de guerra.
A ideia foi evocada pela deputada ecologista Sandrine Rousseau. Quando o projeto da reforma da Previdência começou a ser debatido pela Assembleia, em 6 de fevereiro, a parlamentar evocou o “direito à preguiça”, incitanto uma nova polêmica.
“Nós temos um corpo, um só, uma vida, uma só, nós temos um planeta, um só”, declarou ela no púlpito da Assembleia. “Sim ao direito à preguiça, sim ao direito à aposentadoria aos 60 anos!”, completou, antes de encerrar sua fala.
Interrogada pela imprensa francesa após a midiática alocução, a deputada explicou que sua declaração não deveria ser levada ao pé da letra. Rousseau diz ter recorrido ao termo porque se sente “revoltada” com os pedidos frequentes do governo para que os trabalhadores façam mais esforços. “A aposentadoria não é um luxo, mas um direito do trabalhador”, ressaltou a deputada.
A afirmação de Sandrine Rousseau é uma resposta também a membros do governo que, há semanas, tentam relacionar a oposição à reforma à imposição de uma “cultura da preguiça”. O ministro francês do Interior, Gérald Darmanin, declarou em uma entrevista recente ao jornal Le Parisien que a esquerda defende “uma sociedade sem trabalho e sem esforço”.
Ele também alegou que os deputados progressistas da Assembleia, que fazem parte da coalizão Nupes, impõem uma filosofia de “negação do trabalho”, enquanto a maioria governista milita em prol dos “valores do esforço, do mérito e da emancipação”.
“Direito à preguiça”, uma ideia do século 19
Apesar de estar no centro da midiática batalha sobre a reforma da Previdência, o “direito à preguiça” é uma ideia que data do século 19, um conceito criado pelo economista e político francês Paul Lafargue. Em um manifesto social publicado em 1880, ele desenvolve a teoria ao tratar do valor do trabalho na vida das pessoas.
Vanguardista, Lafargue denuncia a imposição por parte dos ricos da ideia de que as classes desfavorecidas têm de amar o trabalho, alienando e privando os pobres de se desenvolverem intelectualmente. Ao descrever as condições dos operários europeus no século 19, ele denuncia as jornadas de mais de 12 horas e observa que, quanto mais eles trabalham, mais empobrecem.
Lafargue também aponta que, durante a Revolução Industrial, o progresso técnico resultou em uma produção maior de bens, levando as classes abastadas a consumir de forma exagerada. Mas o economista defende que, se a sociedade se organizar e parar de comprar excessivamente, é possível ter jornadas de trabalho de três horas por dia para que o resto do tempo seja consagrado ao desenvolvimento intelectual, aos lazeres e ao descanso.
Diminuição da jornada de trabalho
Quase 150 anos após a publicaçao de “Direito à Preguiça”, de Paul Lafargue, muitos países vêm apostando, ainda que de forma experimental, em projetos para a diminuição da carga horária dos empregados. Portugal, que é um dos países com as maiores jornadas de trabalho entre as nações que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), começará a testar a semana de quatro dias a partir do segundo semestre deste ano.
Paralelamente, diversos estudos mostram que a redução do tempo de trabalho não é benéfico apenas para o trabalhador, mas para as empresas também. Um desses estudos foi divulgado no final do ano passado, realizado por pesquisadores das universidades de Boston, Dublin e Cambridge, dentro de um projeto piloto, com a participação de cerca de 30 empresas. A pesquisa constatou que a semana de quatro dias trouxe, além de mais satisfação, uma melhor saúde e menos ociosidade dos funcionários, um aumento dos lucros ao empregador.
Na França, algumas iniciativas são adotadas por certas empresas para diminuir a carga de trabalho, mas poucas respeitam as 35 horas semanais previstas por lei. E embora o governo queira aumentar a idade mínima para a aposentadoria de 62 para 64 anos, boa parte dos franceses para de trabalhar antes dos 60 anos. De acordo com o último relatório, de 2021, do Conselho de Orientação da Previdência da França, apenas 26% dos cidadãos seguem em atividade aos 62 anos.
Ainda assim, o governo se mostra extremamente inflexível sobre a questão. A primeira-ministra Elisabeth Borne declarou em diversas ocasiões que não haverá qualquer negociação sobre a idade mínima para a aposentadoria.
A atitude irrita a classe trabalhadora: pesquisas mostram que, em média, 70% dos franceses são contra o projeto de reforma da Previdência. Desde o início deste ano, cinco dias de greve e protestos levaram milhões de pessoas às ruas contra os planos do governo Macron.
As centrais sindicais também prometem não ceder. A próxima greve geral está marcada para 7 de março. Diversos setores, como o de transportes públicos, de refinarias e da educação, já anunciaram que participarão da mobilização. Trabalhadores do setor ferroviário planejam realizar uma paralisação ainda mais longa, de talvez até dez dias.