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O que é âncora fiscal, afinal?

21 de março de 2023

Artigo de Antônio Augusto de Queiroz no Conjur.

Por Antônio Augusto de Queiroz no Conjur.

Conceitualmente, âncora fiscal seria uma referência fiscal, uma garantia de estabilidade, sobre a qual se baseiam as demais expectativas. Na prática, porém, a expressão tem sido empregada para especificar mecanismos de controle do gasto, sob o fundamento de que os recursos do Estado são escassos ou limitados e que as despesas precisam ser sustentáveis. Isso garantiria ao governo parâmetros para nortear as decisões sobre gasto público endividamento e tributação.

Em outras palavras, a âncora fiscal teria por finalidade estabelecer parâmetros ou limites à expansão do gasto, evitando aumento excessivo da despesa no curto prazo para não comprometer as futuras gerações, que seriam obrigadas a pagar, sem qualquer usufruto, dívida deixada por benefícios concedidos à atual geração.

Assim, sob o fundamento de evitar a expansão do gasto, a própria Constituição de 1988 fixou uma “âncora” nos termos do art. 37 do Ato das Disposições Transitórias: até a promulgação da lei complementar referida no art. 169, fixando limite para a despesa com pessoal, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não poderiam despender com pessoal mais do que 65% do valor das respectivas receitas correntes.

As Leis Complementares nº 82, de 1995, e 96, de 1999, regulamentaram essa limitação. Mas, desde o ano 2000, com a lei de responsabilidade fiscal do governo FHC, se adota no Brasil algum tipo de âncora mais abrangente, como o teto de gasto do governo Temer, fixado na EC 95/2016, que condiciona o atendimento de demandas da sociedade, independentemente da qualidade, finalidade ou destinação da despesa, ou como a trava da expansão da dívida no governo Bolsonaro (EC 109/2021), que determina o acionamento de um gatilho automático suspendendo a criação ou expansão de política pública que aumente o gasto permanente sempre que a relação entre despesa primária obrigatória e despesa primária geral chegar a 95%.

Embora existam pelo menos três parâmetros – controle do gasto, contenção da expansão da dívida ou a melhoria na capacidade de arrecadação – os governos neoliberais sempre fazem a opção pela proibição de gastar, muitas vezes colocando em risco a própria sobrevivência de pessoas vulneráveis ou dependentes da assitência do Estado, como ocorreu no governo Bolsonaro com as comunidades indígenas Yanomami em Roraima.

Imagine se o Congresso não tivesse tomado a providência, inicialmente contra a vontade do governo anterior, de aprovar Emendas à Constituição para flexibilizar o teto de gasto durante a pandemia de Covid 19. O que teria acontecido com os mais pobres, que sobreviveram graças ao auxílio emergencial, com os estados e municípios, que perderam receitas com lockdown, com os trabalhadores, que tiveram suas jornadas reduzidas ou o trabalho suspenso, e com os empregadores, sem a ajudar governamental?

É claro que o equilíbrio das contas públicas deve ser um objetivo estrutural da administração pública, mas há situações em que gastar além da receita se impõe por questões humanitárias, como foi o caso da pandemia e dos Yanomamis já relatados. Políticas anticíclicas, para debelar crises, engessando a ação do Estado, também podem ser impedidas por esse tipo de regra. Na verdade, os que defendem o corte de gasto a qualquer custo, mesmo que implique sofrimento aos mais necessitados, estão a serviço dos interesses de credores e do mercado financeiro, na medida em que não admitem que o corte também alcance o pagamento dos serviços das dívidas interna e externa.

O argumento em favor de ajuste fiscal com foco no corte de gastos é sempre o da defesa de um ambiente econômico previsível e estável, como condição para gerar confiança e atrair investimentos privados. Mas nos dois primeiros governos de Lula não houve âncora fiscal focada no corte de gastos e mesmo assim o país teve superávit primário, acumulou reservas e atingiu o grau de investimento.

Aliás, é bom lembrar que “âncora” é um instrumento usado na navegação para, exatamente, impedir o navio de se movimentar. Uma “âncora” que paralise o Brasil não somente é contrária ao interesse da sociedade, como do próprio governo.

Essas reflexões sobre a âncora fiscal vêm a propósito de inquietações do mercado quanto à política macroeconômica do governo Lula, baseada no temor de que possam ocorrer ações perdulárias do ponto de vista fiscal, esquecendo o histórico das gestões anteriores do atual presidente, bem como o fato de que o governo possui em sua equipe econômica pelo menos dois integrantes com perfil liberal e fiscalista: o vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, e a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, além de Fernando Haddad, um ministro da Fazenda cauteloso, e de Roberto Campos Neto, um presidente do Banco Central assumidamente neoliberal.

Fruto de um grande acordo, a PEC da Transição, aprovada na forma da EC 126/2022 estabeleceu no seu art. 6º que o presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, inclusive quanto à regra estabelecida no inciso III do caput do art. 167 da Constituição Federal. E após a sanção dessa Lei Complementar, ficam revogados os arts. 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114 do Ato das Disposições Constitucionais, que fixaram a “ancora fiscal” dos governos Temer e Bolsonaro.

A preocupação do mercado, nessa perspectiva, é infundada porque, mesmo o governo tendo decidido rever o teto de gasto, não será um “liberou geral” para a gastança, e nada indica que a lei complementar a ser aprovada terá esse efeito.

A tendência é que o governo assuma uma postura de equilíbrio, propondo uma âncora fiscal vinculada à melhoria da capacidade de arrecadação e à contenção da evolução da dívida pública, inclusive com zeragem déficit público, porém sem amarrar o Estado em relação às despesas com os mais necessitados e com a necessidade de investimentos que produzam retorno econômico e social para o país. Ou seja, prevê limite para a despesa fixa e flexibilidade para investimento e social. Nada de gatilho automático de suspensão de gasto social e de investimento necessários, exceto o destinado ao pagamento dos juros e do principal da dívida. Esse tipo de âncora não interessa ao povo nem ao país.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Ex-diretor de Documentação do Diap, é autor do livro Por Dentro do Governo: como funciona a máquina pública” e sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”. 

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