Caio Bugiato: O fantasma da aliança sino-russa assombra o Ocidente
Artigo do professor Caio Bugiato
A ofensiva ocidental liderada pelos Estados Unidos via expansão da OTAN até as fronteiras de países não-alinhados à Washington não fustiga apenas os russos. A visita da então presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, em 2022 à ilha de Taiwan foi vista como provocação por Pequim, que considera a ilha uma província rebelde. Em 2023, o presidente dos EUA Joe Biden anunciou, recentemente, em uma base naval na Califórnia, ao lado dos primeiros ministros britânico e australiano, a aceleração do envio de submarinos nucleares a Austrália. O envio faz parte da parceria de defesa (pacto Aukus) entre os três países, sob alegações de conter planos chineses de domínio naval no Indo-Pacífico e de retomada de Taiwan. Vale mencionar ainda a tentativa de reviver a aliança anti-China, criada em 2007, Diálogo de Segurança Quadrilateral, ou Quad, fórum formado por Estados Unidos, Índia, Japão e Austrália. Entre estas e outas medidas da política externa estadunidense, as tensões no pacífico apontam para um processo de ucranização de Taiwan: dadas as relações atribuladas da ilha com a potência rival dos EUA, o planejamento de Washington é transformá-la em fantoche do ocidente para desestabilizar e demolir a ascensão chinesa.
Em meio à guerra na Ucrânia, a China tem demonstrado uma posição de neutralidade sobre o conflito, a despeito das parcerias com a Rússia desde antes da guerra. Contudo, um dos grandes pontos de concordância entre o governo Putin e o governo Xi Jinping é o incomodo com a ofensiva mundial estadunidense, em vários aspectos. Os chineses acompanham de perto o conflito na Ucrânia entre a OTAN e a Rússia. Estão cientes das escaladas da guerra, com os estrondosos auxílios econômicos e militares dos ocidentais ao governo Zelensky, sobretudo com o recente acordo de envio de tanques de guerra. Consideram, inclusive, que a derrota russa é a manutenção da ordem mundial atual, em que a autonomia dos Estados é acossada pelo imperialismo estadunidense.
Pois bem, Xi Jinping visitou Moscou entre 20 e 22 de março a convite do governo Putin para debater cooperação estratégica entre os dois países. A China é a terceira maior potência militar do mundo – e detentora de armas nucleares –, atrás de Estados Unidos e Rússia. É importante lembrar que o Estado Chinês não se configura apenas como contendedor da supremacia estadunidense, ele propõe uma alternativa ao capitalismo: o socialismo com características chinesas. No 19º Congresso Nacional do Partido Comunista em 2017 o governo chinês anunciou uma posição mais preponderante na política internacional: a promoção modernização socialista até 2035 e até 2049, data dos cem anos da Revolução Chinesa, almeja celebrar um status de país “poderoso, próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e belo”. Esta nova aproximação entre russos e chineses já era motivo de preocupação dos ocidentais, que a discutiram nas recentes conferências de segurança da OTAN.
No encontro sino-russo houve entendimentos com o intuito expandir a parceria econômica e fortalecer a cooperação militar, diante das ameaças de sanções dos EUA caso a China forneça armas à Rússia. Em perspectiva comum de contrabalançar os Estados Unidos e seus aliados ocidentais, Xi e Putin assinaram um total 14 declarações, protocolos, memorandos e acordos, além de proferirem discursos alinhados aos documentos. Em geral, estabeleceram compromissos sobre cooperações bilaterais, como para aumentar o comércio, que cresceu 30% em 2022 e gira em torno de US$ 200 bilhões, dos quais dois terços foram feitos em yuans e rublos, afastando a hegemonia do dólar. Estabeleceram também compromissos em expandir a cooperação agrícola a fim garantir a segurança alimentar, desenvolver logística e infraestrutura e aumentar a cooperação no intercâmbio de energia, minerais, metais e produtos químicos, além de cooperação nas áreas de tecnologia, tecnologia da informação e inteligência artificial. Um dos projetos trata de um segundo gasoduto da Rússia para China, a ser construído na Sibéria e operar através da Mongólia, incrementando as exportações do gás natural russo. Igualmente, os governos concordaram com um programa de cooperação de longo prazo em energia atômica. Ademais, comprometeram-se com uma cooperação midiática para compartilhar informações e produzir documentários sobre os países. Um protocolo instituiu um mecanismo para reuniões presidenciais regulares.
Do ponto de vista militar, a cúpula concordou em desenvolver intercâmbio e cooperação militar, aumentar a confiança mútua entre suas forças armadas e realizar regularmente exercícios conjuntos e patrulhas marítimas e aéreas. Segundo Xi, a China fez uma escolha estratégica de acordo com seus próprios interesses fundamentais e nas tendências predominantes no mundo, indicando que os dois Estados compartilham o compromisso com um mundo multipolar. Apesar da parceria militar, os governos se opuseram a uma aliança do tipo político-militar e criticaram o pacto Aukus e a expansão militar da Otan. Sobre a guerra na Ucrânia, Putin elogiou a proposta de paz feita pelos chineses no mês passado e enfatizou que seus elementos podem ser considerados como base para um acordo quando o Ocidente e Kiev estiverem prontos. Mas apontou que Kiev não está em condições para discutir a paz, pois seus fiadores ocidentais não querem qualquer cessar-fogo na Ucrânia, querem a destruição da Rússia com esta guerra.
Especificamente, chama atenção o documento que indica uma nova era multipolar, a Declaração Conjunta da República Popular da China e da Federação Russa sobre o Aprofundamento da Parceria de Coordenação Estratégica Abrangente para a Nova Era. Vale a pena reproduzir um trecho:
As duas partes salientaram que consolidar e aprofundar a Parceria Estratégica Global de coordenação China-Rússia para uma nova era é uma escolha estratégica feita por ambas as partes com base nas suas respectivas condições nacionais, que está de acordo com os interesses fundamentais dos dois países e dos seus povos, de acordo com a tendência de desenvolvimento dos tempos, e não está sujeita a influência externa. As partes o farão:
- Guiadas pelo consenso alcançado pelos dois chefes de Estado, asseguraram que as relações bilaterais avançarão sempre na direção certa.
- Devemos dar um apoio firme um ao outro na salvaguarda dos nossos respectivos interesses fundamentais, sobretudo em questões de soberania, integridade territorial, segurança e desenvolvimento.
- Apoiar o princípio do benefício mútuo, continuar a aprofundar e expandir a cooperação prática no processo de modernização, alcançar um desenvolvimento e prosperidade comuns e beneficiar os povos chinês e russo.
- Promover a compreensão mútua e a amizade entre os dois povos e consolidar continuamente na base social e na opinião pública a amizade entre os dois países durante gerações.
- Promover a multipolarização do mundo, a globalização econômica e a democratização das relações internacionais e promover o desenvolvimento da governança global numa direção mais justa e razoável.
Os dois lados salientaram que os países têm histórias, culturas e condições nacionais diferentes, e cada um tem o direito de escolher independentemente o seu caminho de desenvolvimento. Não há “democracia” que seja superior aos outros. Ambos os lados se opõem à imposição de valores nacionais aos outros, opõem-se ao uso da ideologia para traçar linhas, opõem-se à narrativa hipócrita da chamada “democracia contra o autoritarismo”, e opõem-se ao uso da democracia e da liberdade como pretexto e instrumento político para exercer pressão sobre outros países e sobre a política.
Claramente a multipolaridade está em oposição unipolaridade liderada pelos Estados Unido. Manifestam seus descontentamentos com a ordem internacional ao falar sobre democratização das relações internacionais e sobre governação global. Obviamente entendem que as Nações Unidas precisam de reformas, assim como instituições internacionais como o Banco Mundial, o FMI, a OMC e a OMS. Opõem-se à imposição de “liberdade” e “democracia” pelo imperialismo ocidental.
Como desfecho do encontro, Xi convidou o presidente Putin a visitar Pequim ainda em 2023, no 3º Fórum do Cinturão e Rota para Cooperação Internacional. Falando com repórteres, o presidente chinês disse ao russo que mudanças estão acontecendo agora que não acontecem há 100 anos e ambos estão movendo essas mudanças juntos.
Caio Bugiato. Professor de Ciência Política e Relações Internacionais da UFRRJ e do programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da UFABC.
- Este artigo é o desenvolvimento da nota que escrevi para o Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da UFABC, intitulada A China e a guerra na Ucrânia.