O arcabouço político-ideológico do arcabouço fiscal
Osvaldo Bertolino apresenta a disputa ideológica que cerca o novo arcabouço fiscal apresentado por Fernando Haddad
A intensa divulgação do chamado “arcabouço fiscal”, um conjunto de regras elaborado
pela equipe liderada pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad, revela o poder da
camisa de força imposta pelo parasitismo financeiro às contas públicas. Mostra que, na
prática, existem dois comandos no Estado: o Poder Executivo e seus pares no Judiciário
e no Legislativo – ancorados na Constituição – e o mundo das finanças, que capturou o
Banco Central com a tal “independência”, um poder essencialmente autoritário, sem
controle democrático.
A ideia de “independência” do Banco Central tem a ver com a criação de um orçamento
público à parte – inclusive com a inconstitucional emenda à Constituição do teto dos
gastos públicos –, já chamado de “superávit primário” e suas derivações, como “ajuste
fiscal” e “reponsabilidade fiscal”, sobre o qual não cabe discussão. É a gestão de uma
parte considerável do dinheiro público que se transforma em rentismo e alimenta os
derivativos que giram a roleta do cassino financeiro, multiplicando ganhos de forma
parasitária, inclusive os de origem pública, como dividendos da Petrobras.
A lista é longa, mas já é possível ter ideia do que é essa pululante adjetivação “fiscal”, a
essência do projeto neoliberal. Agora, com o “arcabouço” – que, em linhas gerais,
significa afrouxar um pouco o garrote da emenda do teto, aliviando o parasitismo para
dar margem a políticas públicas – a essência é a mesma. Mas representa um alívio,
considerando que o mantra da “responsabilidade fiscal” difundido em regime de
monopólio pela mídia e seus representados saiu avariado pela iniciativa do presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva, de falar poucas e boas sobre a escandalosa taxa de
juros que sustenta essa ciranda.
Os neoliberais defendem suas posições impondo a velha polêmica sobre o dilema
inflação-desenvolvimento. Em seu primeiro mandato, quando foi eleito em 2002, à sua
maneira Lula já havia falado desse falso dilema. O assunto foi a elevação mundial do
preço dos alimentos, segundo ele uma “inflação boa” porque convocava os países a
produzir mais e atender à demanda mundial. Lula disse também que a alta dos alimentos
não precisava ser necessariamente combatida com a alta dos juros. Sua ideia era de que
o consumo popular funciona como estopim econômico de transformações sociais.
Há verdade nisso. As travas brasileiras em relação ao consumo estão no fato de que ele
sempre foi privilégio de poucos. Faz parte da estrutura social brasileira. Com o projeto
neoliberal, essa questão se agravou. Uma das alegações para a adoção de regras
neoliberais radicais, nos anos 1990, baseadas na elevação da taxa de juros, era de que a
inflação em alta impedia uma ação social mais vigorosa. Repetia-se a calamitosa tese do
bolo, defendida por Delfim Netto, ministro da Fazenda na ditadura militar, de fazer a
economia crescer para depois distribuir seus frutos.
O projeto neoliberal calibrou e potencializou aquela teoria dos economistas que
assumiram o controle depois do golpe militar de 1964, que chegaram dizendo que o
dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto
Campos, ícone brasileiro deste pensamento, tal dilema era um “idílio” – ou produto de
fantasia; devaneio, utopia.
E foi assim que o país chegou à crise dos anos 1980 e à guinada “ortodoxa”, quando o
país ingressou na “era neoliberal”. Deram as costas à premissa de que fórmulas
matemáticas não substituem o desenvolvimento de um povo que habita uma região
repleta de riquezas naturais. A política econômica de um país não pode ser determinada
por conceitos monetários que atendem a interesses exclusivos do rentismo parasitário.
Ignoraram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A
suposição da existência deste diagnóstico é a questão fundamental dos neoliberais – que
tratam política econômica e sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex-presidente
do Banco Central na “era FHC”, Gustavo Franco, certa vez repetiu Roberto Campos ao
afirmar que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele,
não era mais tema científico, mas emocional e religioso.
A aplicação do projeto neoliberal desmentiu as profecias de seus teóricos arrogantes.
Incorreram na soberba do galo que, como no conto, pensa que o sol nasce porque ele
canta. Ou seja: segundo a teoria neoliberal, a gestão da economia só pode dar resultados
positivos se estiver submetida às suas elucubrações. Repetem, acriticamente, o que
diziam os teóricos dos governos neoliberais de Margareth Thatcher (Inglaterra) e
Ronald Reagan (Estados Unidos), quando teve início a pregação fundamentalista de que
as “forças de mercado” substituiriam com sucesso a “vontade dos governos”.
A essa ideia somou-se uma outra: a de que os países menos desenvolvidos deveriam
afrouxar os controles para a circulação de capitais em suas fronteiras. A América Latina
foi o laboratório dessas ideias, com os trágicos resultados da década de 1990. A região
foi escolhida para implantar o contraponto ao pensamento progressista latinoamericano, que há tempos discutia os obstáculos impostos à sua industrialização.
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) foi a referência maior
nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora de Raúl Prebisch sobre os vínculos
desiguais entre as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior
coordenação entre os países da América Latina para superar óbices como a deterioração
continuada dos termos de nosso intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos.
No Brasil, as ideias desenvolvimentistas dotaram o país de um extenso programa de
substituição de importações, modernizou seu parque industrial. A reversão dessa
tendência, iniciada na ditadura militar e levada a cabo na “era neoliberal”, se deu com
um assédio institucionalizado de setores privilegiados aos recursos e patrimônio
públicos. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público se vê
refém do privado.
Quando era assessor econômico de Lula na campanha eleitoral de 2002, Guido Mantega
disse que o Brasil precisava de um estadista para enfrentar as demandas decorrentes de
sua vulnerabilidade externa, dando ao país recursos para arbitrar sua política econômica
e monetária. Com altos e baixos, Lula e a ex-presidenta Dilma Rousseff enfrentaram
essa questão. O presidente chegou a criticar a “ortodoxia” do Banco Central sob o
comando de Henrique Meirelles quando o país se viu diante de um súbito movimento
especulativo do capital financeiro internacional.
O saldo mais importante do debate sobre o “arcabouço fiscal” é o papel do Estado, que
pode estimular e condicionar o desenvolvimento econômico. Esse é um campo fértil de
análises e debates. Nos Brasil dos neoliberais, sob o pretexto de que a economia
mundial tomou formas mais complexas, surgiram teses supostamente amparadas em
estudos “científicos” que são verdadeiras metafísicas econômicas, contendo uma falsa e
vaga representação do mundo real.
É um vício que faz das teorias conservadoras verdades absolutas, um comportamento
intelectual que enclausura seus “especialistas” em torres de marfim. A transformação de
suas verdades em algo “científico” se dá, no melhor dos casos, em apresentar o evidente
em termos complicados, geralmente por meio do uso de instrumentos teóricos de análise
absorvidos exclusivamente do mundo financeiro.