A construção da nova ordem mundial e a coordenação pública do desenvolvimento
Apresentação do economista Diogo Santos no Fórum Econômico de Moscou.
O texto abaixo foi apresentado pelo economista e membro do Núcleo de Economia Política e Desenvolvimento da Escola Nacional João Amazonas do PCdoB, Diogo Santos, no Fórum Econômico de Moscou, como representante brasileiro da mesa de debate intitulada “BRICS+: novas oportunidades para o desenvolvimento das economias do mundo”.
A sétima edição do Fórum Econômico de Moscou (MEF) ocorreu nos dias 04 e 05 de abril na Rússia. O Fórum reuniu intelectuais, associações empresariais, líderes industriais e parlamentares. O lema do evento era “Novo Mundo. Nova Indústria” e contou com a presença de mais de 600 pessoas, incluindo representantes de 30 países. Com cerca de 20 mesas de debate, a programação focava em temas envolvendo as várias dimensões dos desafios para a modernização econômica da Rússia e dos países subdesenvolvidos, a partir de uma perspectiva crítica ao modelo liberal. Também atravessou todo o evento a discussão sobre a atual transição geopolítica mundial, seus desafios e suas implicações para o desenvolvimento dos países.
De modo geral, os debatedores convergiam majoritariamente quanto à necessidade de realizar uma nova industrialização com foco nos setores de alta tecnologia, na reformulação de instituições para impulsionar o desenvolvimento e na superioridade na estratégia chinesa de se utilizar os instrumentos de mercado subordinando-os aos objetivos de desenvolvimento do Estado. Posições menos consensuais se verificava sobre se o mundo já se encontra sob uma ordem multipolar ou ainda não.
Leia abaixo a íntegra da apresentação de Diogo Santos no Fórum Econômico de Moscou.
_____________________________________________________________________________
A construção da nova ordem mundial e a coordenação pública do desenvolvimento
A atual transição geopolítica mundial abre o espaço para formação de uma nova ordem não baseada em atender somente os interesses de um único país hegemônico como foi durante as hegemonias do Reino Unido e dos EUA. Pela primeira vez desde o fim da URSS, visualizamos nossos caminhos para o desenvolvimento social e econômico dos países não ricos.
Os desafios contemporâneos não cabem mais em um sistema de poder global feito para beneficiar uma minoria de países ricos. Mais que isso, este sistema tornou-se um grave problema dado sua incapacidade de coordenar internacionalmente as medidas concretas necessárias para enfrentar problemas como a transição energética e garantir segurança alimentar a todos os países, especialmente os mais pobres.
Partindo deste espírito, traço as considerações a seguir.
Condições a serem superadas: regime macroeconômico liberal, desindustrialização e subfinanciamento
A globalização dirigida desde os anos 1980 pelos mercados financeiros de EUA e Inglaterra e pelas grandes corporações de um pequeno conjunto de países ricos fracassou como caminho de desenvolvimento econômico para o conjunto dos demais países. Além disso, a evidência mais contundente de desenvolvimento econômico nas décadas recentes, a República Popular da China, aponta na direção oposta das medidas propostas pelo chamado consenso de Washington.
Se durante o período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e final dos anos 1970, os países chamados subdesenvolvidos encontraram, a duras penas, espaço econômico e geopolítico para impulsionar sua modernização industrial e elevar o padrão de vida de suas populações, esse espaço se fechou a partir dos anos 1980 e 1990.
Gostaria de destacar três características da etapa de globalização neoliberal que julgo merecer nossa atenção para pensarmos as novas oportunidades de desenvolvimento trazidas pela constituição dos BRICS.
O primeiro ponto é o regime macroeconômico a que um grande número de países foi submetido de modo a se adequarem ao novo padrão de acumulação das grandes empresas transnacionais e dos centros financeiros globais. Os governos dos países subdesenvolvidos tiveram suas mãos atadas em grande medida. A política macroeconômica se tornou uma questão de como uniformizar as regras do jogo econômico de cada país para que os capitais estrangeiros encontrassem o ambiente mais propicio para realizar a exploração em escala global.
A política fiscal foi submetida ao um duro controle por meio de regras que impõem limites muitos estreitos para a decisão dos governos e por meio da pressão política e ideológica dos grandes agentes financeiros, que alcançam ganhos expressivos comprando títulos dos governos, e possuem mecanismos para impor uma permanente vigilância para garantir que sua riqueza financeira esteja segura.
A política monetária foi por sua vez foi colocada em uma caixa muito apertada. Foi adotado amplamente a partir de final dos anos 1990, o regime de metas de inflação, como manual de política monetária. Ocorre que atualmente está documentado que o regime de metas de inflação não possui uma sustentação teórica aceitável e seus resultados não são superiores quando comparados aos países que não o adota.
Se por um lado, há pouca sustentação teórica e empírica para a adoção generalizada pelos bancos centrais desta regra de política monetária, por outro lado, ela foi bastante útil para manter o controle privado e estrangeiro dos grandes grupos financeiros sobre o ritmo de crescimento dos países subdesenvolvidos. O caso do Brasil é emblemático, pois este país quase sempre possui uma das maiores taxas de juros real do mundo, como está ocorrendo neste exato momento.
A política cambial associada a esta política monetária cumpriu um exclusivo objetivo: tornar o mais fácil possível o movimento de entrada e saída dos recursos dos grandes grupos financeiros privados estrangeiros sempre que julgarem que determinado país é lucrativo ou não. Como consequência os países que liberalizaram suas contas de capitais tornaram-se mais submetidos ao clico financeiro global. Em particular, a desvalorização abrupta de suas moedas transmitia-se para os preços internos, elevando as pressões inflacionarias. Como resposta, os bancos centrais necessariamente elevavam as taxas de juros para conter a desvalorização cambial, porém ao custo de encarecer as fontes de financiamento do desenvolvimento.
E assim chegamos a uma segunda característica dos países subdesenvolvidos e que tem encontrado uma nova e muito bem-vinda resposta a partir do BRICS+. Trata-se do grave problema de subfinanciamento destes países ao longo de décadas.
Em geral, o setor bancário destes países possui uma baixa disposição de realizar operações de financiamento de longo prazo, que é um fator crucial para o desenvolvimento econômico. Alguns países passaram também por um processo de desnacionalizam de seu setor bancário, como o México, o que não contribuiu para a ampliação das fontes de financiamento das empresas nacionais. Em outros países, como o Brasil, há um setor bancário nacional consolidado, porém com operações fortemente concentradas no crédito de curto prazo.
Os mercados de capitais também não se tornaram uma fonte expressiva de financiamento do desenvolvimento, seja pela volatilidade desses mercados, seja pela sua preferência por grandes e consolidadas empresas. O financiamento de longo prazo nos países subdesenvolvidos continua fortemente dependente dos bancos públicos, onde eles ainda existem.
A falta de fonte adequadas de financiamento para as empresas dos países subdesenvolvidos aprofunda a diferença entre as empresas locais e as transnacionais dos países ricos, estas sim com acesso ao financiamento nos mercados financeiros de suas matrizes. Por conta essa assimetria de acesso a financiamento (e também tecnologia), as estruturas industriais e de serviços modernos dos países subdesenvolvidos são marcadas pela grande dependência da entrada das transnacionais. Além disso, em momentos de crise, as empresas nacionais tornam-se alvo de compra das transnacionais, gerando assim, a cada crise, uma nova rodada de desnacionalização da estrutura produtiva destes países.
A terceira característica que gostaria de chamar atenção surge como uma consequência das duas anteriores, que é a regressão industrial presenciada em muitos países subdesenvolvidos. Esse é um fenômeno bastante presente na América Latina ainda que apresente intensidades diferentes entre os países. O valor da transformação industrial destes países vem diminuindo, bem como a participação destes países nas exportações mundiais de bens industrializados. A fragilidade da indústria destes países tem gerado também o fenômeno de perda de participação de mercado de exportações de bens industriais dentro da própria região.
A desindustrialização destes países não é somente um problema setorial ou estritamente econômico. Ele gera um problema de estagnação tecnológica, piora no mercado de trabalho em termos da geração de empregos de qualidade e salários melhores, atrasa o desenvolvimento do setor de Serviços modernos e também transborda para a política gerando uma sociedade mais polarizada socioeconomicamente e assim diminui a coesão entre o povo.
A coordenação pública do desenvolvimento para superar estes limites
Penso que estas três características dos países subdesenvolvidos são problemas chaves que uma nova ordem econômica internacional certamente precisa enfrentar de modo a superar o fracasso da globalização neoliberal.
Penso que a direção a ser perseguida pode ser sintetiza na expressão “coordenação púbica do desenvolvimento”.
Uma área em que esta coordenação pública é crucial é no sistema de financiamento do desenvolvimento. Exceto pelos casos particulares da industrialização da Inglaterra e dos EUA, a coordenação pública do sistema de crédito esteve entre as peças chaves da industrialização de países como Alemanha, França, Rússia, Coreia do Sul, Japão, Brasil, Índia e China.
A coordenação pública do sistema de crédito é uma alavanca chave para o desenvolvimento dos países, pois ela enfrenta os três problemas principais tratados anteriormente: a) enfrenta diretamente o problema de subfinanciamento dos países emergentes; b) permite elaborar uma estratégia de nova industrialização; e c) permite contornar parcialmente o regime macroeconômico neoliberal.
Por que a coordenação pública do sistema de crédito é fundamental para enfrentar o subfinanciamento? Porque nos países subdesenvolvidos, os bancos privados não se arriscam a financiar projetos de investimentos que não lhes dê grande segurança de lucro futuro. Deste modo, somente as grandes empresas já consolidadas encontram financiamento no setor financeiro privado. E, em geral, estas empresas estão nos setores exportadores de commodities. Assim, as empresas nacionais dos setores industriais e de serviços modernos, que ainda não se tornaram suficientemente grandes, encontram limites bem mais graves de acesso a financiamento. E sem o acesso ao financiamento adequado não conseguem se expandir.
Esses limites são ainda mais evidentes quando se observa o baixo envolvimento do setor financeiro privado em atividades de inovação tecnológica. Além disso, o sistema de crédito é inerentemente marcado por relações de poder e concorrência entre setor financeiro privado, setor financeiro público e empresas não financeiras. Em países em que o poder do sistema financeiro privado é muito grande, dificilmente se terá um sistema de crédito que impulsione o desenvolvimento. O mecanismo espontâneo do mercado não é capaz de direcionar o fluxo de crédito para realizar a transformação produtiva e tecnológica que os países subdesenvolvidos necessitam. Portanto, a coordenação pública do sistema de financeiro é uma condição necessária para esses países superarem o atraso produtivo.
Por isso, é tão importante a criação dos novos bancos de desenvolvimento no âmbito do BRICS+. Essas instituições possuem um papel chave a desempenhar na construção de uma nova etapa histórica de desenvolvimento compartilhado entre os países não ricos. O controle do sistema financeiro internacional nas últimas décadas foi uma das principais armas do imperialismo norte-americano para manter o controle da ordem global e impedir o surgimento de processos de desenvolvimento nacional que incomodassem os negócios de suas empresas transnacionais. Portanto, criar novos canais de financiamento de longo prazo em condições adequadas às necessidades dos países emergentes é muito importante para furar o bloqueio imposto pelo domínio imperialista do sistema financeiro.
Considero que os novos bancos de desenvolvimento precisam buscar constantemente ampliar suas capacidades para auxiliar os países emergentes em: a) identificar os melhores caminhos para a elevação da intensidade tecnológica de suas economias, isto é, quais setores e tecnologias devem ser priorizados; b) elaborar projetos de investimento que necessitam de grande capacidade técnica; c) propor políticas para que os projetos de investimento contribuam para desenvolver novos setores econômicos internos a estes países. Também é preciso avaliar a possibilidade de criação de novos bancos regionais de desenvolvimento, como no caso da América Latina.
O novo sistema internacional de financiamento do desenvolvimento também pode contribuir para realizar a modernização produtiva e tecnológica dos países, enfrentando o problema da desindustrialização. Observe por exemplo que o aumento do comércio entre os países emergentes, é fundamental para abrir novas fontes de crescimento econômico. Porém, não é suficiente para levar estes países a um novo patamar tecnológico e industrial e, portanto, de dotá-los de capacidade de prover melhores serviços públicos e enfrentar a elevada desigualdade socioeconômica que marca a história destes países. Isto ocorre porque sem alterar-se as condições que reproduzem o subdesenvolvimento destes países, a ampliação do comércio por si só não conseguirá alterar os fluxos de renda e riqueza típicos do subdesenvolvimento.
Por exemplo, os países exportadores de alimentos, matérias-primas e energia, tem muito a ganhar com a abertura de novos mercados no sul global, entretanto é preciso direcionar este impulso comercial novo para o desenvolvimento de setores com maior intensidade tecnológica, internalizando setores produtores de insumos, máquinas e equipamentos. E também buscar controlar mais etapas da cadeia de produção e comercialização, como a colocação destas mercadorias no comércio internacional, muitas vezes dominadas por grandes empresas de trading dos países ricos.
É nesta direção que a necessidade de nova industrialização tem uma oportunidade de ser enfrentada aproveitando-se dos setores exportadores de commodities e transformando-os em um complexo industrial mais amplo e mais integrado com as economias destes país, para assim difundir seu impulso de crescimento para os demais setores. A abertura de novas rotas de comércio e o acesso a financiamento por meio dos novos bancos de desenvolvimento são uma grande oportunidade para realizar a modernização produtiva destes países, mas é preciso pensar especificamente neste objetivo, desenhando políticas próprias para atingi-lo.
Em termos da política macroeconômica, o surgimento dos novos bancos de desenvolvimento, permite abrir uma fenda na caixa de ferro das políticas neoliberais a que muitos países estão submetidos, não só pelas imposições do sistema financeiro internacional, coordenado pelo imperialismo norte-americano, mas também pelos grandes agentes financeiros privados internos.
Contudo, é chegada a hora de ir além e propor o fim do arranjo macroeconômico da ordem neoliberal das últimas décadas. Ele demonstrou-se completamente incompatível com as necessidades de desenvolvimento da grande maioria dos países do mundo. A busca de um novo paradigma de regime macroeconômico precisa estar entre os desafios dos países com maior peso político e econômico do BRICS+. Não se trata de substituir o modelo neoliberal por outro igualmente rígido, mas pela proposição de arranjos mais sintonizados com os problemas sociais e econômicos de cada país. Em especial, um novo paradigma deve considerar a importância do investimento público, reconhecer as diferentes causas da inflação e, portanto, os diferentes instrumentos para combatê-la, e integrar o Banco Central aos objetivos de desenvolvimento, em especial seu papel em coordenar a alocação do crédito privado. Sem a constituição de nova institucionalidade macroeconômica, os ganhos trazidos pela construção da nova ordem global serão menores e demorarão mais a ocorrer.
Quem sabe assim estejamos ajudando a construir o tempo em que, como Polanyi disse, “a experiência utópica de um mercado autorregulado não seja mais do que uma lembrança do passado”.
Muito obrigado.
Diogo Santos é economista e doutorando em Economia pela UFMG. Pesquisa sobre economia brasileira contemporânea com foco em financiamento do desenvolvimento, financeirização e economia política da política monetária. É economista do Instituto de Pesquisas Econômicas, Administrativas e Contábeis de Minas Gerais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Twitter: @diogosantosmg