Lições civilizatórias, históricas e teóricas da Guerrilha do Araguaia
Osvaldo Bertolino apresenta a Guerrilha organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para combater a ditadura militar
Por Osvaldo Bertolino
Cinquenta e um anos depois do início dos combates no Araguaia, completados neste 12 de abril de 2023, a Guerrilha organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para combater a ditadura militar segue presente na memória nacional. Livros, filmes, estudos acadêmicos, artigos e reportagens procuram interpretar aquele acontecimento. Contudo, sua dimensão exige pesquisas aprofundadas, contextualizações e compreensão teórica.
João Amazonas e Maurício Grabois, os principais dirigentes da Guerrilha, deixaram dois preciosos trabalhos, escritos em plena selva do Sul do Pará, que balizam o significado da Guerrilha: a história dos cinquenta anos do Partido e o texto intitulado A atualidade do pensamento de Lênin. Ao refazer a história dos comunistas brasileiros, eles situaram o sentido daquele movimento de resistência, planejado já no início da ditadura de 1964.
A ideia da luta armada criou raízes desde que os golpes de Estado começaram a se suceder, na década de 1950. Um pouco antes, nos anos 1940, manobras golpistas cassaram o registro eleitoral e os mandatos parlamentares dos comunistas no Brasil e no Chile. Na Guatemala, um moderado processo de transformação social, iniciado em 1944, evoluiu até o golpe apoiado pelos Estados Unidos que derrubou o governo progressista do presidente Jacobo Arbenz, em 1954.
Estava desencadeada a era dos golpes na América Latina, impulsionada pelo anticomunismo fundado na Doutrina Truman, formulada sobre as cinzas da Segunda Guerra Mundial, a imperialista Guerra Fria. Nas palavras do presidente estadunidense Harry Truman – que assumiu em 12 de abril de 1945, após a morte de Franklin Roosevelt –, “o mundo livre” deveria se defender da “ameaça comunista”.
Uma escalada de guerra foi desencadeada, sobretudo após a Revolução Chinesa, de 1949. O Partido Comunista do Brasil (então com a sigla PCB) diagnosticou que o imperialismo norte-americano, como dirigente da reação mundial, reagia ao revés na China e ao processo de transformação na Europa Oriental, com a ascensão ao poder dos aliados da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) após a Segunda Guerra Mundial.
Para contornar essas barreiras, o regime de Washington voltava-se para a dominação dos povos fracos e desorganizados. Os países da América Latina, governados por representantes de latifundiários e de grandes exploradores, eram particularmente sensíveis à agressividade dos Estados Unidos. No Brasil, a situação exigia dos comunistas, dos democratas e patriotas, coragem e audácia.
Em maio de 1949, um Informe político do PCB afirmou que a política expansionista, agressiva e guerreira do imperialismo norte-americano no mundo, e na América Latina particularmente, considerada por Washington como sua retaguarda e seu “quintal” de domínio privativo, assumia no Brasil formas cada vez mais abertas e violentas. Outro documento histórico, o Manifesto de Agosto, propôs, em 1950, a formação da Frente Democrática de Libertação Nacional (FDLN) para enfrentar as ameaças de nova guerra imperialista.
Na definição de Renato Rabelo, ex-presidente do PCdoB e presidente da Fundação Maurício Grabois, o Manifesto de Agosto definiu algumas conclusões estratégicas e apontou o caminho revolucionário. O IV Congresso do Partido, de 1954, aprovou o primeiro Programa, elaborado no contexto do combate ao imperialismo norte-americano, que realizava ampla preparação de guerra com o monopólio das armas nucleares e invadira a Coreia, no âmbito do cerco militar à União Soviética. No Brasil, o Programa definiu como questão central o combate à “militarização intensiva” da economia e da vida política. O país poderia tornar-se importante aliado militar do imperialismo estadunidense.
A questão tornou-se um dos pomos da discórdia desencadeada com o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), realizado em fevereiro de 1956. No debate das Teses do V Congresso do PCB, em 29 de abril de 1960, Maurício Grabois escreveu, no artigo com o sugestivo título Duas concepções, duas orientações políticas, que o caminho pacífico ou não das transformações revolucionárias dependia das circunstâncias, não de vontades.
O diagnóstico mostrou-se inteiramente correto quando o PCdoB analisou o golpe, já em agosto de 1964, no documento O golpe de 1964 e seus ensinamentos. “Sub-repticiamente, a máquina do golpe foi sendo montada no Exército. A Escola Superior de Guerra (criada em 1949) transformou-se em antro de conjura”, fundada por inspiração do Pentágono. “Desde a sua criação, essa Escola vem elaborando, com a ajuda de técnicos norte-americanos e de reacionários brasileiros, todo um programa de administração do país calcado nas ideias dos monopolistas dos Estados Unidos”, diz o texto, retratando a realidade daquele tempo.
O PCdoB chegou à conclusão de que para discutir profundamente a forma de enfrentar a ditadura era necessário convocar uma Conferência – a VI, realizada em julho de 1966 em São Paulo. A linha política aprovada, contida no documento União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista, apontou a guerrilha como uma das principais formas de luta contra a ditadura. “A ideia de que é indispensável empunhar armas para libertar o país do atraso e da opressão vem ganhando força”, diz o documento. “A luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular”, definiu.
O estudo das experiências revolucionárias do pós-Segunda Guerra Mundial na China, no Vietnã e em Cuba confluiu para o documento Guerra popular – caminho da luta armada no Brasil, aprovado no começo de 1969. A luta armada começava a sair do papel e a ser preparada efetivamente. Três grupos de dirigentes haviam percorrido o país em busca dos melhores locais para a implantação de núcleos de preparação da guerra popular. Um dirigido por Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, outro por Maurício Grabois e João Amazonas, e um terceiro por Carlos Nicolau Danielli.
Grabois e Amazonas foram para a região do Araguaia, no Sul do Pará, o local mais apropriado para proteger os que estavam na mira do terrorismo de Estado, sobretudo após o Ato Institucional número 5 – AI-5 –, de 1968, quando o habeas corpus foi abolido. Quem fosse preso, dificilmente escaparia da tortura e da morte. Considerado o golpe dentro golpe, o AI-5 dava razão à decisão da VI Conferência do PCdoB. A preparação da guerra popular decorria da demanda por um enfrentamento efetivo ao regime e respondia ao anseio dos setores mais avançados da sociedade por um combate frontal à ditadura.
Com Grabois e Amazonas estavam militantes do PCdoB como Osvaldo Orlando da Costa – o Osvaldão – e Elza Monnerat. O início dos ataques aos guerrilheiros, em abril de 1972, se deu quando outros pontos passavam por desmobilizações, uma fase em que nem as preliminares iniciais da guerra popular estavam dadas. A repressão havia fechado o cerco sobre a resistência, com o objetivo de liquidar todas as organizações que atuavam na clandestinidade.
A logística de São Paulo, sob o comando de Carlos Nicolau Danielli, o secretário de Organização do PCdoB – a base material da Guerrilha –, caiu nas mãos da repressão na virada de 1972 para 1973. Danielli foi cruelmente assassinado no DOI-Codi paulista em 31 de dezembro de 1972 pelo facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra, pessoalmente. A Comissão de Organização também foi dizimada, com os assassinatos de Lincoln Oest, de Luiz Guilhardini e do jovem Lincoln Bicalho Roque, dirigente da União da Juventude Patriótica (UJP), fundamental na ligação com a Comissão de Organização.
Ao avaliar os documentos Cinquenta anos de luta e A atualidade do pensamento de Lênin, Amazonas referiu-se a eles como importantes fontes para a compreensão da Guerrilha. “O Maurício tinha uma grande capacidade, era um grande jornalista, que conhecia muito bem a história”, disse. “Eu valorizo isso porque o Maurício, para mim, de todos nós, é o que mais entendia da história do Partido naquela ocasião. De maneira que é um texto em que o Maurício está presente”, afirmou.
Sobre o pensamento de Lênin, Amazonas reafirmou a análise de que as experiências revolucionárias do pós-Segunda Guerra Mundial – sobretudo a chinesa – não substituíam a concepção de que a organização partidária é central. O documento A atualidade do pensamento de Lênin enfatiza a vasta produção revolucionária leninista e destaca a obra Que fazer? como fonte inicial da teoria política de partido de novo tipo. Lênin havia avaliado a Comuna de Paris e criticado a ausência de uma séria organização política do proletariado.
Segundo o documento de Amazonas e Grabois, os ensinamentos de Lênin sobre o partido, a luta ideológica, o papel das massas, a violência revolucionária e o internacionalismo, entre inúmeros outros, constituem poderosos meios nas mãos dos revolucionários. “O pensamento de Lênin sobre o papel do partido e das massas impregna a orientação do PC do Brasil”, resumiram.
A teoria leninista de organização partidária era muito cara para a Guerrilha do Araguaia, assunto que esteve também no centro dos debates que perpassaram a segunda metade da década de 1970 e o início da década de 1980. O desfecho se deu no VI Congresso do PCdoB, em 1983, depois dos debates no Comitê Central até a Chacina da Lapa em 1976 e na VII Conferência, concluída em 1979.
Além de lições de abnegação e bravura no combate à tirania, a experiência da Guerrilha do Araguaia é fonte de conhecimento para a luta por transformações sociais. Na memória dos guerrilheiros e guerrilheiras estão ensinamentos históricos e formulações teóricas sobre o que se convencionou chamar de epopeia pela liberdade. Os que perderam a vida no cumprimento dessa tarefa humanista merecem ser reverenciados como mártires da civilização. O desaparecimento dos seus corpos é mais um crime bárbaro, inscrito na galeria da história dos genocídios. Sua elucidação, cara para familiares e amigos, é, além de tudo, um dever civilizatório.