Especialista avalia resultados do encontro entre Lula e Xi Jinping na China
Professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra, Ronaldo Carmona, avalia o recente encontro entre os presidentes do Brasil e da China.
Em entrevista exclusiva para o Portal da FMG, o professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra, Ronaldo Carmona, avalia o recente encontro entre os presidentes do Brasil e da China.
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), Carmona defende a tese de que o Brasil deva apostar no multilateralismo. “O Brasil deve apostar na multipolarização, na existência de múltiplos polos de poder mundial; afinal, a diluição do poder mundial aumenta nossa margem de manobra e nossa liberdade de ação, diante do enorme desafio de enfrentar nossas enormes vulnerabilidades e adensar nossa autonomia”, explica Carmona.
1) Que balanço faz da viagem do presidente Lula à China, em especial, a pauta e os acordos firmados entre os presidentes dos dois países?
O balanço da viagem é positivo. O presidente Xi Jinping referiu-se ao presidente Lula como “um velho amigo da China”, o que não é gratuito, como se sabe, na liturgia chinesa, e Lula, por sua vez, declarou o interesse de que a relação transcenda a questão comercial, o que é correto, pois destoa de uma certa análise de setores no Brasil que argumentam que a boa relação com a China deriva apenas do fato do país asiático ser nosso maior parceiro comercial.
A questão vai muito além disso, Brasil e China devem dialogar numa ampla gama de questões do cenário internacional, inclusive as geopolíticas e de segurança internacional. De modo geral, deve o Brasil possuir relações de cooperação e, sobretudo, ter política e estratégia para todos os outros polos de poder mundial, China inclusive, tendo claro os limites, as potencalidades e muito claramente também os interesses envolvidos.
Foram assinados uma declaração sobre a parceria estratégica, uma outra sobre a questão climática, um total de quinze acordos bilaterais entre os governos nacionais dos dois países, além de diversos outros acordos entre empresas, governos estaduais e instituições brasileiras com suas congêneres chinesas em mais diversas áreas.
Destaco, em especial, a renovação da solidariedade brasileira a questão de Taiwan como parte da China – nossa posição tradicional desde 1974 -; esforços objetivos para ter parte importante do comércio bilateral em moedas nacionais (reais e reminbi), prescindindo do uso do dólar, para o qual, inclusive, se habilitaram dois bancos com base no sistema CIPS (alternativo ao Swift); acordos para acesso a mercado, removendo barreiras indevidas para exportações brasileiras, inclusive de carne bovina; e por fim, os acordos na área de ciência e tecnologia, muito relevantes.
2) Um setor, por ter natureza estratégica, de ciência, tecnologia e inovação, merece um exame especial. Como aquilata os acordos firmados nesta área ?
Atualmente o núcleo do confronto sino-americano se dá na corrida tecnológica em torno do seu domínio, tendo em vista o papel que elas terão no desenvolvimento das forças produtivas no próximo período histórico. Em algumas delas os chineses lideram, noutras os americanos estão na dianteira.
Pelo que se lê nos acordos divulgados, a cooperação sino-brasileira em CT&I concentra-se em três áreas: espacial, TICs e digitalização. Como são áreas de fronteira, de grande sensibilidade, ainda será preciso ver os detalhes: qual será o nível da cooperação, onde haverá efetivo intercambio de conhecimento e até mesmo transferência de tecnologia, e onde serão apenas investimentos ou mesmo, venda de produtos e sistemas tecnológicos. Claro que a expectativa é positiva, mas será preciso ver os desdobramentos.
A cooperação na área espacial tem sido bastante exitosa. O Programa CBERS, que vem do governo Sarney em 1988, é muito positivo. Mas será preciso dar um salto nessa nova etapa. Os detalhes ainda não foram divulgados, mas espero que a continuidade do Programa CBERS contribua com as necessidade de saltos tecnológicos que o Brasil precisa dar na área especial, os quais, contudo, obviamente dependem mais de decisões estratégicas endógenas do que da cooperação internacional.
3) No atual contexto de transição de hegemonia no sistema de poder mundial, na sua ótica o que seria mais adequado aos interesses do Brasil: manter equidistância entre o polos de poder ou dar ênfase à parceria com a China?
O Brasil, por seu porte, dimensão e potencial, precisa ter projeto próprio. Costumo dizer que somos grandes demais para ser parte do projeto de outros. Nosso desafio nesse momento é redesenhar nossa “grande estratégia” tendo em vista um mundo com aceleradas e múltiplas mudanças – e isso não é figura de retórica.
O Brasil deve apostar na multipolarização, na existência de múltiplos polos de poder mundial; afinal, a diluição do poder mundial aumenta nossa margem de manobra e nossa liberdade de ação, diante do enorme desafio de enfrentar nossas enormes vulnerabilidades e adensar nossa autonomia.
Como disse, a cooperação com a China pode ser muito positiva nessa nova fase, mas os brasileiros precisam ter claro que eles tem seus próprios interesses nacionais, os quais, podem ou não coincidir com os do Brasil. Toda relação entre grandes países envolve, por definição, uma dualidade, de cooperação, mas também de interesses.
Também com os norte-americanos nós temos setores da sociedade brasileira com eles encantados: à direita, como se viu recentemente com os discípulos de Steve Bannon e à esquerda, com a turma da “Open Society” de George Soros. Ambos personagens promotores da desestabilização do Brasil por meio da guerra híbrida.
Um país do porte do Brasil, com os interesse exógenos envolvidos para enquadrá-lo, não pode ter uma postura geopolítica ingênua.
4) Como analisa a política externa do governo Lula? Pelo realizado até agora pode-se afirmar que reforça o caminho para o desenvolvimento soberano? Em particular, como avalia os posicionamentos sobre a guerra na Ucrânia?
Amanhã desembarca em Brasilia, o chanceler russo Lavrov, algo bastante significativo.
O Brasil não é parte da guerra e a posição do presidente Lula nesse sentido tem sido muito clara.
As causas profundas da guerra derivam da tentativa norte-atlanticista, isto é, da OTAN, proclamada desde a vitória do bloco norte-ocidental ao final da guerra fria, de impedir o ressurgimento de grandes potencias que ameaçassem sua hegemonia. A expansão da OTAN para o Leste, teve este sentido, de cerco militar à Rússia, que viu nisso, uma ameaça existencial, deflagrando a guerra, há pouco mais de um ano.
Penso que as condições para a paz, não estão dadas. Mas é totalmente correto e absolutamente legítimo o ativismo do presidente Lula em torno da bandeira da paz.
E esse é o ponto a destacar da política externa do presidente Lula após 100 das de governo: a volta do Brasil ao mundo. A visita a Washington, os líderes europeus recebidos em Brasília e agora, a visita a Pequim, expressam que o Brasil volta a cena. Será preciso contudo, precisar a “grande estratégia” e adensar os meios para fazer valer nossos interesses.
5) No ciclo dos governos progressistas, houve forte empenho de parcerias em relação à América Latina e Caribe, em especial, à América do Sul. Na sua opinião, hoje, essa prioridade segue necessária ?
Sem dúvida, um dos próximos passos que veremos será a reconstituição da UNASUL. A integração sul-americana é um objetivo de Estado, não é uma questão ideológica, mas do interesse nacional basilar de nosso país. Até por imposição da geografia. Espero que possamos dar passos substanciais nisso.