Redução da jornada de trabalho: uma exigência do século XXI
No século XIX, a jornada diária de trabalho no mundo industrial era de 16 horas em 6 dias por semana. No século XX, a luta dos trabalhadores reduziu esse tempo diário para cerca de 8 horas. E no século XXI?
No século XIX, a jornada diária de trabalho no mundo industrial era de 16 horas em 6 dias por semana. No século XX, a luta dos trabalhadores reduziu esse tempo diário para cerca de 8 horas. Agora, no século XXI, é chegada a hora de um novo salto qualitativo nos direitos trabalhistas.
Por Theófilo Rodrigues*
A redução da jornada de trabalho sempre esteve no centro da agenda dos movimentos de trabalhadores. Em suas obras, Friedrich Engels descrevia com riqueza de detalhes como no século XIX a jornada diária de trabalho no mundo industrial era de 16 horas. Karl Marx chegou até mesmo a incluir um capítulo – o famoso capítulo 8 – no volume 1 de O Capital apenas sobre esse tema. Com a luta dos trabalhadores, travada com suor e sangue, esse tempo diário foi reduzido no século XX para cerca de 8 horas diárias. Agora, no século XXI, o que percebemos é que isso ainda é insuficiente para o bem estar social. Para uns, a carga diária precisa ser reduzida. Para outros, o caminho é a diminuição para uma jornada semanal de 4 dias. Seja qual for a via, o que o movimento dos trabalhadores concorda é que algo precisa ser feito.
A jornada de trabalho na história
Ao longo da história, a forma como encaramos o tempo de trabalho mudou bastante. Na Idade Média cristã, a preguiça era vista como um dos sete pecados capitais. Trabalhar pouco era uma questão moralmente inaceitável pela Igreja Católica (CHAUI, 2021). Com a Revolução Industrial no século XVIII e o despertar do capitalismo, a preguiça passou a ter uma conotação pejorativa dupla: era um problema moral para a ética protestante, mas também um problema econômico para a produtividade exigida pelo espírito do capitalismo (WEBER, 2004). A consequência direta dessa nova ética era a exploração do trabalho pelo capital que fazia com que a jornada de trabalho fosse de 16 horas diárias e que até mesmo crianças trabalhassem nas fábricas insalubres. Mais do que isso, nesse momento da história a jornada semanal era de 6 dias – o descanso ocorria apenas no domingo, para que os trabalhadores católicos pudessem cumprir com seus compromissos religiosos.
Contudo, no século XIX alguns intelectuais começaram a criticar esse modo de pensar. Os primeiros a trazerem essa abordagem provavelmente foram Marx e Engels. Para eles, o sistema capitalista era baseado em uma exploração do trabalho que corroía todo o tempo dos trabalhadores. No futuro comunista, diziam os autores, os homens poderiam caçar pela manhã, pescar à tarde e filosofar após o jantar (MARX e ENGELS, 2007). Ou seja, na sociedade considerada ideal a jornada de trabalho deveria ser menor para que os homens e mulheres pudessem desfrutar de outras atividades ao longo do dia. Marx (2011, p. 588) explicou como isso ocorreria: o desenvolvimento tecnológico e a automação permitiriam “o livre desenvolvimento das individualidades e, em consequência, […] a redução do trabalho necessário da sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à formação artística, científica etc. dos indivíduos por meio do tempo liberado […]”. Graças à inovação o trabalho seria automatizado, o que permitiria a redução da jornada.
Cubano radicado na França, Paul Lafargue publicou alguns anos depois, em 1880, um pequeno manifesto intitulado O direito à preguiça. Genro de Marx, Lafargue levou ao extremo a tese do sogro contra a exploração do trabalho promovida pelo sistema capitalista do século XIX. O que para uns era uma vocação religiosa e para outros uma necessidade econômica, para Lafargue não passava de uma insanidade. “Essa loucura traz em seu rastro misérias individuais e sociais que, durante séculos, torturaram a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada ao esgotamento das forças vitais do indivíduo […]” (LAFARGUE, 2021, p. 59).
No século XX, essa reflexão alcançou outras matrizes intelectuais. Na década de 1920, Henry Ford, um dos principais industriais dos Estados Unidos, reduziu a jornada semanal para cinco dias e oito horas diárias (GOMES, 2022). Mas, para alguns, isso ainda era muito. Keynes (1984), que nasceu em 1883, mesmo ano em que Marx morreu, chegou a advogar na década de 1930, em um ensaio intitulado As possibilidades econômicas de nossos netos, que no futuro do capitalismo a jornada diária de trabalho poderia ser de 3 horas ou semanal de 15 horas. Em 1935, foi a vez do filósofo inglês Bertrand Russell publicar O elogio ao ócio. Para Russell (2002), se a jornada fosse de quatro horas por dia, haveria o suficiente para todos e não haveria desemprego. As ideias de todos esses autores não se perderam com o tempo. Nesse início de século XXI, o sociólogo italiano Domenico de Masi (2000 e 2009) tem sido uma das mais veementes vozes em defesa da jornada diária de três horas.
A iniciativa mais recente ocorreu no Chile com a promulgação da nova lei que reduziu a jornada de 45 para 40 horas semanais. A lei foi de autoria da então deputada comunista Camila Vallejo (PCCh) e contou com o apoio da ministra da Justiça Jeannete Jara, que também é do PCCh.
A jornada de quatro dias
Já há no cenário internacional, inclusive, iniciativas na direção de uma jornada semanal de quatro dias. Em Portugal, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social iniciou em 2023 uma experiência-piloto da semana de quatro dias. O economista da Universidade de Londres, Pedro Gomes (2022), responsável por coordenar o projeto, argumenta que a redução da jornada é uma vantagem competitiva. “A semana de quatro dias pode ser uma alternativa a aumentos salariais por parte de pequenas e médias empresas que não têm a capacidade financeira para competir com salários mais elevados pagos pelas grandes empresas”, explica Gomes (2023).
Experiência semelhante ocorreu no Reino Unido, onde um programa piloto envolveu 61 empresas de diversos setores e quase 3 mil trabalhadores entre julho e dezembro de 2022. O resultado foi que a quase totalidade das empresas que adotaram o modelo declararam interesse em mantê-lo.
A situação no Brasil
Esse é um processo certamente difícil na medida em que ainda vigora no mainstream capitalista a noção de extrair o máximo possível dos trabalhadores em nome do lucro. Basta dizer que apesar da Organização Internacional do Trabalho recomendar de forma conservadora que a jornada semanal de trabalho seja de 40 horas, apenas 15 nações respeitam essa orientação da OIT. No Brasil, por exemplo, a jornada semanal é de 44 horas, conforme o Art. 7º. da Constituição de 1988.
No Rio de Janeiro, a presidenta da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social da ALERJ, deputada Dani Balbi (PCdoB), apresentou recentemente projeto de lei obrigando empresas sediadas no estado a não ultrapassarem uma jornada semanal de 40 horas. A deputada sabe que esse é um tema que precisa ser regulamentado na Constituição Federal, mas protocolou o projeto com o objetivo de trazer o debate para a esfera pública.
Se o Brasil tem a pretensão de assumir de fato uma agenda trabalhista do século XXI, então mudar a Constituição para reduzir a jornada de trabalho, como propõe a OIT, é uma exigência.
* Theófilo Rodrigues é cientista político, autor do livro “Partidos, classes e sociedade civil no Brasil contemporâneo” (2021) e organizador dos livros “Democratizar a comunicação: teoria política, sociedade civil e políticas públicas” (2021) e “Engels 200 anos: ensaios de teoria social e política” (2020).
Referências
CHAUÍ, Marilena. Prefácio. LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Veneta, 2021.
DE MASI, Domenico. Por que não trabalhamos só três horas por dia? Revista Época. 20 fev. 2009. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT55109-15230,00.html
GOMES, Pedro. Sexta-feira é o novo sábado. Lisboa: Relógio D‘Água, 2022.
GOMES, Pedro. Série Semana de Quatro Dias (4): uma vantagem competitiva para as empresas. Público. 6 jan 2023. Disponível em: https://www.publico.pt/2023/01/06/opiniao/opiniao/serie-semana-quatro-dias-4-vantagem-competitiva-empresas-2033869
KEYNES, John Maynard. As possibilidades econômicas de nossos netos. [1930]. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (Org.). Keynes. São Paulo: Ática, 1984.
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Veneta, 2021.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
RUSSELL, Bertrand. Elogio ao ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2004.