Boas vindas ao Portal Grabois, conheça nossa marca
O que você está procurando?

Marx, Tocqueville, Stuart Mill e a liberdade de imprensa

5 de maio de 2023

Em artigo, Theófilo Rodrigues mostra como no século XIX a liberdade de imprensa assumiu protagonismo na teoria política com Marx, Tocqueville e Stuart Mill.

A liberdade de imprensa ocupa seu espaço institucional a partir do século XVIII, como demonstram as constituições americana e francesa. Mas foi no século XIX que a liberdade de imprensa assumiu protagonismo na teoria política. Este artigo realiza uma análise comparada da forma como três dos principais teóricos do século XIX trataram do tema: Karl Marx, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill. Tocqueville e Mill, intelectuais do liberalismo político, fundamentaram questões relacionadas à “tirania da maioria”. Marx, por outro lado, revela seu entusiasmo com a liberdade de imprensa para o fortalecimento das ideias socialistas nascentes naquele momento histórico.

O artigo é de Theófilo Rodrigues e foi publicado originalmente na revista Eptic On-Line (UFS), v. 20, p. 176-188, 2018. Também está publicado no livro Democratizar a comunicação: teoria política, sociedade civil e políticas públicas.

Leia abaixo na íntegra.

A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO OBJETO DA TEORIA POLÍTICA NO SÉCULO XIX: MARX, TOCQUEVILLE E STUART MILL

Por Theófilo Rodrigues

A liberdade de imprensa ocupa locus privilegiado na teoria política do século XIX. Tanto a Europa quanto a América viviam momentos de transição política que exigiam para os novos atores inseridos na política, ou seja, para o “Terceiro Estado”, um maior grau de liberdade. No entanto, é bom que se diga que alguns importantes teóricos da política já haviam voltado seus olhos para esse tema em meados do século XVIII. Montesquieu (1962) é um desses exemplos. Ainda que de forma muito incipiente, em seu livro publicado em 1748 Do espírito das leis ele tangenciava o problema. Mais precisamente no livro 12, capítulos 12 e 13, o autor compara a forma como monarquia, democracia e despotismo lidam com os escritos e as “palavras indiscretas”. Também Rousseau (1996), em seu O contrato social, publicado em 1762, dedicou um capítulo – o sétimo do livro IV – ao tema da censura da opinião pública, embora não tenha mencionado a imprensa em momento algum. Do outro lado do Canal da Mancha, na Escócia, David Hume (2006), em 1742, já celebrava em seus famosos Ensaios políticos que a liberdade de imprensa só poderia ser encontrada, naquele tempo, na Grã-Bretanha. Seja como for, no fim do século XVIII a liberdade de imprensa já havia conquistado seu lugar não apenas no debate político, mas também nas próprias instituições (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1993). A primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, introduzida por James Madison em 1789, proíbe o Congresso de criar legislação que sirva para cercear a liberdade de imprensa. No mesmo ano era aprovada na França a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na qual se lia no artigo 11 que a liberdade de imprensa é um dos mais preciosos direitos do homem. Esse mesmo direito foi reafirmado no artigo terceiro da Constituição francesa de 1791.

Se no fim do século XVIII a liberdade de imprensa bradava por seu espaço, foi no século XIX que ela se consolidou como tema da teoria política. Asa Briggs e Peter Burke (2006, p. 192) observam que o reconhecimento da importância da liberdade de imprensa passou a ser tanto que, nas décadas de 1830, 1840 e 1850, o termo “quarto poder” tornou- se recorrente. Em 1850, o jornalista F. Knight Hunt chegou a publicar um livro sobre a imprensa com o título O quarto poder.

Neste capítulo, realizo uma análise comparada da forma como três dos principais teóricos do século XIX trataram do tema da liberdade de imprensa: Karl Marx, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill. Tocqueville e Stuart Mill, intelectuais do liberalismo político, fundamentaram questões relacionadas ao temor da chamada “tirania da maioria”. Marx, por outro lado, revela seu entusiasmo com a liberdade de imprensa para o fortalecimento das ideias socialistas nascentes naquele momento histórico.

Tocqueville e a liberdade de imprensa contra a tirania da maioria

Confesso que não tenho pela liberdade de imprensa esse amor completo e instantâneo que se concede às coisas soberanamente boas de sua natureza. Aprecio-a em consideração muito mais pelos males que ela impede do que pelos bens que ela faz. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 207)

Ao retornar de sua viagem de nove meses pelos Estados Unidos da América, o jovem francês Alexis de Tocqueville trouxe bem mais do que havia imaginado inicialmente em sua bagagem. O motivo original que o levou, em 1831, a atravessar o Atlântico ao lado de Gustave de Beaumont foi conhecer o sistema prisional americano. Vale lembrar que a Revolução de 1830 havia instituído a monarquia constitucional na França, sob o comando de Luis Filipe, um monarca de fortes influências liberais e reformistas. Esse novo governo, que tinha como ministro do interior François Guizot, havia encomendado aos dois jovens aristocratas um estudo pormenorizado das prisões do norte da América. No entanto, a experiência lhes abriu as portas para todo um novo mundo de instituições políticas que surgia com a democracia, entre elas a liberdade de imprensa. As reflexões de Tocqueville acerca do que viu nos Estados Unidos foram reunidas em uma das mais importantes obras da teoria política contemporânea, A democracia na América, publicada em 1835.

A declaração de independência dos Estados Unidos ocorreu em 1776, mas sua Constituição entrou em vigor apenas em 1789, mesmo ano em que, na França, ocorria a Revolução Francesa. Esse foi o pano de fundo histórico para o estudo comparado realizado por Tocqueville entre os dois países. Preocupava ao jovem aristocrata entender quais os remédios americanos para o perigo da democracia, por ele definido como tirania da maioria, que poderiam ser levados para a França. É disso que trata A democracia na América.

Nos Estados Unidos, Tocqueville assistiu à construção de um mundo inteiramente novo. Não apenas a sociedade americana possuía hábitos e costumes diversos dos franceses, mas também as instituições políticas eram originais. Para Tocqueville, que viu seus familiares serem perseguidos no período imediatamente posterior ao da Revolução de 1789, a democracia era um perigo para a liberdade, não passava de uma tirania da maioria. Mas essa era uma experiência particular do terror francês. O povo americano, observou Tocqueville, de modo distinto, conseguiu conciliar democracia e liberdade a partir de um conjunto de instituições próprias. Esse foi o aprendizado que o autor buscou levar de volta para seu país.

O início do século XIX assiste ao inevitável avanço da democracia, mas esse movimento democrático pode atropelar a liberdade e representar apenas uma tirania da maioria. “O que mais critico no governo democrático, tal como foi organizado nos Estados Unidos, não é, como muitos na Europa pretendem, sua fraqueza, mas, ao contrário, sua força irresistível” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 296), argumenta o preocupado aristocrata. O que assombra o autor é o poder de que dispõe a maioria nos Estados Unidos, algo impensável em sua França. Essa maioria não precisa de uma lei ou de uma coerção física de qualquer tipo para determinar o que é o certo e o errado. Seu poder está na potência de construção do consenso. Há liberdade de pensamento, mas poucos são os que se atrevem a agir contra a maioria. Essa assertiva encontra guarida em uma forte frase d’A democracia na América: “não conheço país em que reine, em geral, menos independência de espírito e verdadeira liberdade de discussão do que na América” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 298). Essa será a razão pela qual afirmará – de forma arrogante, diga-se de passagem – que “a América ainda não tem grandes escritores” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 300). Mas nem tudo está perdido na América. Apesar desses grilhões ideológicos da tirania da maioria, ou, numa linguagem weberiana, dessa “jaula de ferro”, Tocqueville observa no sistema político americano algumas instituições políticas que buscam resolver esse dilema, entre elas as associações e os jornais. E os partidos políticos souberam muito bem utilizar essas novas instituições: “as duas grandes armas que os partidos empregam para vencer são os jornais e as associações”, diz Tocqueville (1998, p. 206).

Antes de nos determos no papel da liberdade de imprensa como cimento entre a liberdade e a democracia, vale a pena dedicar algumas palavras à relevância do associativismo. Afinal de contas, “a associação possui mais força do que a imprensa”, argumenta Tocqueville (1998, p. 220). Um dos mais relevantes achados do francês durante sua experiência nos Estados Unidos foi a percepção de que os americanos se associam para resolver todo e qualquer problema antes mesmo de levá-lo ao Estado. Desde as brincadeiras das crianças nas escolas até os problemas de vizinhança, tudo é resolvido por meio de reuniões e associações. Trata-se de uma importação inglesa, dirá Tocqueville, mas que se integrou perfeitamente bem aos hábitos e costumes dos americanos. E esse hábito de reunião dos indivíduos, essa liberdade ilimitada de associação, é a principal arma do povo americano contra a tirana da maioria ou o despotismo do Estado democrático.

Em nosso tempo, a liberdade de associação tornou-se uma garantia necessária contra a tirania da maioria. […] Não há país em que as associações sejam mais necessárias, para impedir o despotismo dos partidos ou a arbitrariedade do príncipe, do que aquele em que o estado social é democrático (TOCQUEVILLE, 1998, p. 223).

Tocqueville era, portanto, um entusiasta dessa capacidade do povo americano de se auto-organizar, de criar associações em detrimento do Estado. Um leitor atento de Antônio Gramsci poderia defender a tese de que Tocqueville antecipou em cem anos o argumento do italiano em favor da sociedade civil contra a sociedade política, ou melhor, contra a estatolatria. É bem verdade que Gramsci, em toda sua vasta obra – seja nos Cadernos do cárcere, seja nas Cartas do cárcere ou nos textos de jornais – nunca citou Tocqueville. Mas a aproximação é nítida, em particular se o compararmos com os textos gramscianos do americanismo e do fordismo (VIANNA, 1993). Nessas notas redigidas no cárcere, Gramsci identificou no modelo fordista a ideia de auto-organização da sociedade de baixo para cima, em que, em sua famosa expressão, “a hegemonia nasce da fábrica” (GRAMSCI, 2007b, p. 247).

Como já mencionado, ao lado do associativismo está a necessária liberdade de imprensa. Uma sociedade democrática só é possível se o direito à liberdade de imprensa estiver garantido. Na exata medida em que o povo só pode exercer sua soberania a partir da sua capacidade de escolha entre diversas opiniões, é preciso que essas variadas opiniões tenham liberdade de circulação por toda a sociedade. Seria um absurdo dizer que o povo pode escolher seus governantes, suas políticas e suas leis se lhe fosse negado o acesso à diversidade. Nas palavras do autor, “a soberania do povo e a liberdade de imprensa são, pois, duas coisas inteiramente correlativas. A censura e o voto universal são, ao contrário, duas coisas que se contradizem e não se podem encontrar por muito tempo nas instituições políticas de um mesmo povo” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 209). Ressalte-se que esse poder da imprensa não está circunscrito ao mundo da sociedade política, mas também afeta a sociedade civil. Assim como a liberdade de opiniões contribui para a seleção e sedimentação de preferências políticas, ocorre no âmbito dos hábitos, dos costumes, das tradições e das culturas. “A liberdade de imprensa não faz seu poder sentir-se apenas sobre as opiniões políticas, mas também sobre todas as opiniões dos homens. Ela não modifica apenas as leis, mas os costumes”, aponta Tocqueville (1998, p. 207). Se a imprensa possui todo esse poder, de mobilizar paixões e interesses, definir preferências na sociedade civil e na sociedade política, selecionar governantes e políticas públicas, como freá-la caso se encante pelos exageros da tirania da maioria? A resposta encontrada em A democracia na América é uma inovação democrática para a teoria política: “É um axioma da ciência política, nos Estados Unidos, que o único meio de neutralizar os efeitos dos jornais é multiplicar seu número” (TOCQUEVILLE, 1998, p. 213). Não é a censura, mas a pluralidade e diversidade de ideias que pode impedir o arbítrio de uma opinião qualquer. A liberdade de imprensa constitui, portanto, um pilar para a teoria política de Tocqueville.

Stuart Mill e a tirania da opinião

É necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes, contra a tendência da sociedade a impor, por meios outros que não os das penalidades civis, as próprias ideias e práticas, como regras de conduta aos que delas dissentem; a aguilhoar o desenvolvimento e, se possível, a impedir a formação de qualquer individualidade em desacordo com seus métodos, compelindo todos os tipos humanos a conformar-se ao seu modelo (MILL, 2000, p. 10).

Não seria exagero considerar John Stuart Mill a representação inglesa de Tocqueville. Nascido em 1806, ou seja, apenas um ano mais novo que o francês, Mill manteve em sua obra a mesma preocupação com os efeitos da tirania da maioria sobre a liberdade. Como filho de James Mill e discípulo de Jeremy Bentham, é fácil notar por que tanto o liberalismo político e econômico quanto a filosofia utilitarista lhe vinham de berço. Mas foi certamente Tocqueville quem mais lhe influenciou, desde o momento em que se conheceram. É sabido que, em 1835, Tocqueville e Beaumont viajaram para a Irlanda e, na passagem pela Inglaterra, o primeiro livro d’A democracia na América foi entregue a Mill. Desde então, os dois tornaram-se amigos, e as trocas de correspondência sobre os problemas da democracia e da liberdade foram frequentes (CATAÑO, 1990). Outra importante influência, embora invisibilizada por diversas razões, veio de sua esposa, a feminista e intelectual Harriet Taylor (MILLER, 2015).

Sobre a liberdade é certamente o mais conhecido libelo de Mill em favor da liberdade. O livro, que de acordo com o prefácio do próprio Mill recebeu contribuições inestimadas de sua esposa, e que mantém pontes de diálogo óbvias com A democracia na América, foi publicado em 1859, um ano após as mortes de Taylor e Tocqueville. Embora não cite Tocqueville em nenhum momento, o pensamento político do amigo francês está nas entrelinhas e em expressões como a “tirania da maioria” presentes ao longo do texto. A semelhança na forma como encara o tema da liberdade de imprensa também é reveladora dessa influência.

Mill abre o segundo capítulo do livro, intitulado Da liberdade de pensamento e discussão, afirmando que “é de esperar que já tenha passado o tempo em que havia a necessidade de defender a ‘liberdade de imprensa’ como uma das garantias contra governos corruptos ou tirânicos” (MILL, 2000, p. 27). Mill está falando de um tempo em que as principais constituições, como as da França e dos Estados Unidos da América, já traziam em seus artigos a defesa da liberdade de imprensa. Não obstante, a afirmação é curiosa, ou talvez irônica do ponto de vista histórico, se pensarmos que, no mesmo ano em que essas palavras foram escritas, 1858, ocorriam na Inglaterra os chamados Processos do Governo contra a Imprensa. Seja como for, Mill considerava como vitoriosa e indiscutível a batalha pela liberdade de imprensa naquele tempo.

Mill não está, portanto, tão preocupado com a possibilidade de um governo impedir a liberdade de imprensa. Seus olhos estão voltados para a sociedade, em que maiorias ocasionais podem oprimir as opiniões das minorias. Há um forte legado de Tocqueville presente em Mill quando diz que “nas especulações políticas geralmente se inclui a ‘tirania da maioria’ como um dos males contra os quais a sociedade exige proteção” (MILL, 2000, p. 10). Para o autor, uma opinião não deve nunca ser silenciada, mesmo que seja a opinião de uma minoria contra uma maioria. Pois a opinião nunca é individual; hoje ela pertence a uma pessoa apenas, mas amanhã poderá ser a opinião de toda a humanidade. “Nunca podemos ter certeza de que seja falsa a opinião a qual tentamos sufocar; e, se tivéssemos certeza, sufocá-la seria, ainda assim, um mal”, sustenta Mill (2000, p. 29).

Segundo Mill (2000, p. 11), “há um limite para a interferência legítima da opinião coletiva sobre a independência individual”. Mas qual seria esse limite? Mill responde algumas páginas adiante: “o único propósito de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos aos demais” (MILL, 2000, p. 17). Em outras palavras, a opinião tem plena liberdade, desde que não interfira objetivamente na vida dos outros.

Foi dito que o único limite para a liberdade de opinião é evitar danos aos demais. Mas seria insuficiente argumentar que esse seja o único limite apresentado por Mill. Como um bom liberal, Mill está também preocupado com a manutenção da propriedade privada. A liberdade de imprensa é necessária, desde que não estimule ataques contra a propriedade privada. É o que podemos ver no exemplo dado pelo autor logo no início do terceiro capítulo de seu livro:

A opinião de que os comerciantes de cereais causam a fome dos pobres, ou de que a propriedade privada é um roubo, devem ser deixadas em paz quando circulam apenas pela imprensa, mas podem incorrer em justa punição se proferidas oralmente diante de uma turba exaltada, reunida em frente da casa do comerciante de cereais, ou se propagadas entre a mesma turba sob a forma de cartazes (MILL, 2000, p. 85-86).

O que Mill está dizendo, embora não cite nomes, é que Proudhon até pode escrever um panfleto como O que é a propriedade?, de 1840, no qual afirma que “a propriedade é um roubo” (1998); mas, se esse panfleto mobilizar as massas contra a propriedade privada, então terá passado de seus limites. Em outras palavras, o limite da liberdade de imprensa é a propriedade privada. Conclusão bem diferente daquela apresentada por Marx, como veremos a seguir.

Marx e a liberdade de imprensa

A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. […] A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira condição da sabedoria. […] É universal, onipresente, onisciente (MARX, 2006, p. 60).

Quando as portas para lecionar na universidade lhe foram fechadas devido à sua proximidade com os radicais e malvistos jovens hegelianos de esquerda, Karl Marx, com apenas 24 anos de idade, viu-se obrigado a oferecer sua escrita para a imprensa como forma de sobreviver materialmente. Além da ajuda financeira que vinha de seu fiel amigo e parceiro intelectual Friedrich Engels, Marx sobreviveu grande parte de sua vida graças aos artigos publicados em jornais como a Gazeta Renana, o Vorwarts!, a Nova Gazeta Renana, o New York Daily Tribune e o Die Presse, os dois últimos declaradamente liberais.

De certo modo, foi como jornalista na Gazeta Renana que o jovem Marx interessou-se pelas relações entre a política e a economia. Como lembra em seu famoso Prefácio da Crítica da economia política, de 1859, “nos anos de 1842/43, como redator da Gazeta Renana, vi-me pela primeira vez em apuros por ter que tomar parte na discussão sobre os chamados interesses materiais” (MARX, 1999, p. 50). Por “interesses materiais” Marx referia-se aos embates que travou no jornal acerca da proibição aos camponeses da coleta de lenha nas florestas e os debates sobre o livre comércio e a proteção aduaneira. A Gazeta Renana foi um diário publicado na cidade de Colônia, entre 1842 e 1843, fundado por representantes da burguesia renana. Esse jornal representava, na época, o principal instrumento de oposição dos democratas radicais burgueses contra o absolutismo prussiano, e Marx era um de seus principais redatores. Daniel Bensaid (2017, p. 12) chega mesmo a defender a tese de que “a Gazeta Renana fez o papel de um protopartido da sociedade civil”. E, por ser esse instrumento perigoso, o jornal foi perseguido, censurado e fechado. Se, como argumentava Stuart Mill, era desnecessário fazer a defesa da liberdade de imprensa na Inglaterra, o mesmo não poderia ser dito da Prússia sob o domínio de Frederico Guilherme IV. Inúmeros foram os artigos de Marx na Gazeta Renana para exaltar a liberdade de imprensa e denunciar as tentativas de censura do governo prussiano. Ali, fez também uma defesa do jornal como “lugar em que se juntam várias opiniões individuais” para formar um “órgão de único espírito” (MARX apud BENSAID, 2017, p. 13). Daí a defesa de Marx do anonimato dos autores na imprensa.

A batalha contra a censura foi perdida, mas forjou o jovem Marx na luta política e ideológica. Após o fechamento da Gazeta Renana, Marx saiu da Alemanha e autoexilou-se em Paris, em 1844, onde contribuiu com duas novas publicações: os Anais Franco-Alemães e o Vorwarts!. Mais uma vez sua atuação jornalística lhe rendeu perseguições, dessa vez por parte do ministro francês Guizot – diga-se de passagem, mestre de Tocqueville –, que lhe emitiu uma ordem de expulsão da França. Muda-se então para Bruxelas, em 1845, até conseguir retornar para a Alemanha em 1848. Nesse mesmo ano, em Colônia, fundou com Engels a Nova Gazeta Renana. No novo jornal, Marx voltou a enfrentar o absolutismo prussiano, mas agora suas críticas também foram direcionadas para a burguesia alemã. Tudo isso o levou a ser julgado em 1849 no Tribunal de Colônia, onde sua formação em Direito lhe permitiu atuar como advogado de si mesmo. Seu discurso de defesa, posteriormente publicado na Nova Gazeta Renana, representa um forte apelo pela liberdade de imprensa. “A função da imprensa é ser o cão de guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, o olho onipresente, a boca onipresente do espírito do povo, que guarda com ciúme sua liberdade” (MARX, 2006, p. 103). O discurso obteve sucesso, e Marx foi inocentado pelo júri, mas mesmo assim o jornal fechou as portas nesse mesmo ano. Convidado a se retirar do país, Marx seguiu para Londres, onde completaria o resto de sua vida.

Em Londres, com a vida mais bem estabelecida, Marx passa a ser correspondente do New York Daily Tribune, e permaneceu nessa atividade até 1862. Na Inglaterra, a afirmação de Mill de que o tempo de defender a liberdade de imprensa já havia passado fez-se notar: Marx deixou de ser perseguido por seus escritos. Finalmente, a partir da década de 1860, passou a contribuir com o Die Presse, jornal austríaco declaradamente liberal. Nesses dois jornais, foram publicados seus famosos artigos sobre a Guerra Civil nos Estados Unidos, reunidos posteriormente no livro The civil war in the United States (MARX; ENGELS, 1940). Mas, com relação ao nosso objeto, qual seja, a liberdade de imprensa, são outros textos publicados no Die Presse que nos interessam, em particular um de 25 de dezembro de 1861, sob o título A opinião dos jornais e a opinião do povo. Diferentemente da forma como enaltecia, quando jovem, a imprensa como porta-voz do povo, o agora mais maduro Marx observa que a imprensa de Londres não representa um “termômetro para o temperamento do povo inglês” (MARX, 2006, p. 185). Nesse texto, são listados os principais jornais londrinos e suas imbricações com as diferentes frações do capital.

Mas a relação de Marx com a imprensa não se resumia à uma questão de liberdade de opinião. Mais do que isso, Marx via nos meios de comunicação derivados da Revolução Industrial, frutos do capitalismo, instrumentos renovadores para uma política que pretendesse atingir amplas massas. Asa Briggs e Peter Burke (2006, p. 115) enfatizam que “a referência de Marx ao ‘telégrafo elétrico’ salientou a primeira invenção elétrica que daria início ao processo de transformação do que veio a ser chamado de ‘mídia’”. Esse modo de ver o papel dos meios de comunicação fica evidente em algumas passagens do Manifesto comunista de 1848.

O Manifesto comunista, redigido por Marx ao lado de Engels, foi a forma encontrada pelos dirigentes da Liga dos Comunistas de tirar o movimento dos trabalhadores da clandestinidade, ou seja, de publicizar o programa e as ideias dos comunistas pela Europa. O Congresso da Liga dos Comunistas ocorrido em fins de 1847 sugeriu que os dois alemães redigissem o panfleto, que em sua primeira versão foi publicado sem os nomes dos autores. Nesse breve, porém, profundo texto, Marx e Engels apresentam elementos para pelo menos quatro teorias: (1) uma teoria da história; (2) uma teoria do partido; (3) uma teoria da globalização; (4) e uma teoria do Estado. A teoria da história (1) fica clara logo na primeira frase do primeiro capítulo do texto: “a história de todas as sociedades que já existiram é a história de luta de classes” (MARX; ENGELS, 1998, p. 09). O Manifesto faz um verdadeiro elogio do processo revolucionário implementado pela burguesia contra os senhores feudais naquele momento histórico. Esse processo só era possível devido a uma engrenagem própria da história. Marx e Engels descobriram que, em determinados momentos da história, as relações sociais de produção entram em contradição com o desenvolvimento das forças produtivas. Esses são os momentos conhecidos como revolucionários. A teoria do partido (2) é a base do Manifesto que pretende apresentar as relações entre os comunistas e os trabalhadores. “Os comunistas, portanto, em termos práticos, são a parcela mais avançada e resoluta dos partidos de classes trabalhadoras de todo país”, defendem Marx e Engels (1998, p. 31). A teoria da globalização (3) revela-se na medida em que Marx e Engels observam que “a burguesia, por meio de sua exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países” (1998, p. 15). Há, por fim, uma teoria do Estado (4). O Manifesto apresenta de forma nítida como o Estado não passa de um instrumento nas mãos de uma determinada classe social, ou, no caso do capitalismo, de “um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (1998, p. 13). Ainda com certo peso da influência hegeliana, Marx sugere como solução que o proletariado tome o Estado para si. Posteriormente, com o convívio com os anarquistas na Associação Internacional dos Trabalhadores, com o acontecimento da Comuna de Paris, em 1871, e despido de suas últimas vestes hegelianas, Marx avançará em sua teoria do Estado ao defender claramente o fim do Estado (MARX, 2011a).

No entanto, há também no Manifesto indícios para uma quinta teoria formulada embrionariamente por Marx e Engels, qual seja, a teoria da comunicação. E essa dimensão da comunicação dialoga com todas as quatro teorias mencionadas anteriormente. Vejamos como o texto encara essa interpelação. “A burguesia, pelo aperfeiçoamento rápido de todos os instrumentos de produção, pelos meios de comunicação imensamente facilitados, arrasta todas as nações, até a mais bárbara, para a civilização”, sustentam Marx e Engels (1998, p. 16). Ou seja, o desenvolvimento das comunicações permitiu que a história avançasse, universalizando a classe burguesa como sujeito histórico em todo o globo. Há aqui um entrosamento entre as dimensões da teoria da história, da teoria da globalização e da teoria da comunicação. Mas e a teoria do partido e a teoria do Estado? Vejamos primeiro a teoria do partido.

De tempos em tempos, os trabalhadores vencem, mas só provisoriamente. O verdadeiro fruto de suas batalhas repousa não no resultado imediato, mas na união cada vez mais abrangente dos trabalhadores. Esta união é favorecida pelos meios de comunicação mais desenvolvidos, criados pela indústria moderna e que colocam os trabalhadores de localidades diferentes em contato uns com os outros. Era somente este contato o necessário para centralizar as numerosas lutas locais, todas do mesmo caráter, em uma luta nacional entre classes (MARX; ENGELS, 1998, p. 24).

O que estão dizendo, e não há muita margem de dúvida quanto a isso, é que, se o partido comunista se pretende não apenas um partido local do proletariado, mas um partido nacional, que reúna amplas parcelas de trabalhadores, então precisa chegar até todos eles. E o desenvolvimento dos meios de comunicação é a base para a consecução desse objetivo. Teoria do partido e teoria da comunicação encontram-se, portanto. Por fim, a teoria do Estado. Marx e Engels entendem, no Manifesto comunista, que o Estado é um instrumento nas mãos da classe dominante. Visão que alguns anos depois será reformulada, em particular no 18 brumário de Luis Bonaparte. Mas como essa classe dominante mantém-se como dirigente no Estado? Aqui entra o tema da ideologia: “as ideias dominantes de cada época sempre foram as ideias da classe dominante”, dirão Marx e Engels (1998, p. 41). Para extrapolar a metáfora maquiaveliana, a classe dominante dirige o Estado por meio da coerção, mas também pela construção do consenso, pela legitimidade de sua dominação, pela ideologia. E os meios de comunicação certamente são alguns dos principais instrumentos para a reprodução dessa ideologia. Teoria da comunicação e teoria do Estado conjugam-se. Marx e Engels desenvolvem pouco esse tema, embora ofereçam pistas que, no século seguinte, serão seguidas por Gramsci (2007a) e Althusser (1985).

Considerações finais

A imprensa como a conhecemos hoje é bem diferente daquela criada por Gutenberg no século XV. Da prensa móvel de Gutenberg até a internet do século XXI, passando pelos jornais dos séculos XVI, XVII e XVIII, pelo telégrafo do século XIX e pelo rádio e televisão do século XX, muitas mudanças aconteceram. A teoria política acompanhou esse processo de transformação tecnológica e sua relação com a sociedade, as instituições e a democracia. Nesse registro, este capítulo apresentou como recorte histórico o inquieto século XIX.

Tocqueville, Stuart Mill e Marx foram contemporâneos. Nascidos na Europa do início do século XIX, todos os três legaram contribuições permanentes para a teoria política contemporânea. No caso de Tocqueville e Mill, contribuições ao liberalismo político; no caso de Marx, ao socialismo dito científico, ou, simplesmente, ao materialismo histórico e dialético, como preferem os marxistas. De certo modo, toda a história política do século XX é devedora dessas duas principais correntes constituídas por esses autores. Cum grano salis, após a Segunda Guerra Mundial, o mundo esteve polarizado entre dois campos políticos referenciados nessas teorias.

Já foi mencionada a relação de amizade e troca intelectual entre Tocqueville e Stuart Mill. Mas, até onde se sabe, nenhum dos dois chegou a ouvir falar em Marx. Mill até teve alguma proximidade com os cartistas, movimento socialista na Inglaterra da primeira metade do século XIX. Também ouviu falar no socialismo/anarquismo de Proudhon, embora não o cite diretamente em Sobre a liberdade, como tive a oportunidade de argumentar anteriormente. Mas, sobre Marx, nada. O inverso não pode ser dito. Marx conhecia bem a obra econômica de Stuart Mill e sabia quem era o político Alexis de Tocqueville. No 18 brumário de Luis Bonaparte, Marx menciona a atuação do deputado Alexis de Tocqueville como porta-voz dos legitimistas na Assembleia Nacional Legislativa, em 1851. Se Tocqueville era conhecido como o político, Stuart Mill era o economista. Tanto nos Grundrisse (2011b) quanto n’O capital (2013), Marx revela conhecer profundamente a obra econômica de Stuart Mill, em particular os Princípios de economia política, como também os Elementos de economia política de seu pai, James Mill. Todavia, os ensaios de teoria política, como Sobre a liberdade, não são mencionados em momento algum.

No início do século XIX, o “povo” passa a influenciar as instituições – essa é a marca da nascente democracia. Mas a forma como os teóricos da política encaram esse novo cenário não é homogênea. Tocqueville e Stuart Mill estão preocupados com a possibilidade de esse “povo” agir como um tirano, o que significaria a “tirania da maioria”. A liberdade de imprensa é necessária para garantir que as vozes das minorias não sejam silenciadas. Em Marx, como vimos, o papel da imprensa é outro. Trata-se de um instrumento popular contra a autoridade governante. Em seu discurso contra a censura, em 1849, Marx defendia com todas as palavras que “é o dever da imprensa tomar a palavra em favor dos oprimidos à sua volta” (MARX, 2006, p. 106). A forma como conclui esse discurso é a mais perfeita síntese do que lhe significa a liberdade de imprensa: “o primeiro dever da imprensa, portanto, é minar todas as bases do sistema político existente” (MARX, 2006, p. 107). No Manifesto comunista, não apenas a imprensa, mas todos os desenvolvimentos dos meios de comunicação permitem um acúmulo de forças para os trabalhadores. Já no fim de sua vida, parece estar um pouco mais cético, ao observar as relações da imprensa em Londres com as mais variadas frações do capital. Seja como for, Marx e Engels nunca abandonaram uma certa sensação em relação à liberdade de imprensa semelhante àquela do liberalismo político. Ellen Wood (2003, p. 212) é precisa ao indicar o equívoco da “afirmação de que o marxismo ‘clássico’ – na pessoa de Marx ou de Engels – era indiferente às liberdades civis”.

Em síntese, o que esta análise comparada revela é que o tema da liberdade de imprensa representa um objeto privilegiado de estudo para a teoria política no século XIX. A liberdade de imprensa por diversas vezes foi vista de forma heterogênea, mesmo antagônica, e daí deriva sua riqueza enquanto objeto de estudo.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

BENSAID, Daniel. Apresentação. In: MARX, Karl. Os despossuídos. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 11-73.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Vol. 2. Brasília: UNB, 1993.

BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

CATAÑO, Gonzalo. La correspondencia Tocqueville – Mill. Ideas y valores, v. 39, n. 82, p. 65-77, abr. 1990.

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007a.

            . Cadernos do cárcere. Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007b. HUME, David. Ensaios políticos. São Paulo: Ícone, 2006.

MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011a.

            . Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011b.

            . Liberdade de imprensa. Porto Alegre: L&PM, 2006.

            . O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

            . Prefácio de Para a crítica da economia política. In: GIANNOTTI, José Artur (Org.). Marx. Coleção Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 50-54.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

            . The civil war in the United States. New York: International publishers, 1940. MILL, John Stuart. A liberdade/utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MILLER, Dale E. Harriet Taylor Mill. In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford: The Metaphysics Research Lab, 2015.

MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962. PROUDHON, Pierre Joseph. A propriedade é um roubo. Porto Alegre: L&PM, 1998. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Livro 1. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

VIANNA, Luiz Werneck. Lições da América: o problema do americanismo em Tocqueville. Lua Nova, São Paulo, n. 30, p. 159-193, ago. 1993.

WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.