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Os comunistas e a questão racial no Brasil

6 de junho de 2023

O artigo perpassa a forma como intelectuais vinculados ao Partido Comunista do Brasil trataram a questão racial ao longo da história. Artigo de Theófilo Rodrigues.

Pintura de Portinari. ‘Café’: retrato da desigualdade social que castiga o trabalhador negro brasileiro

Esse breve artigo perpassa a forma como intelectuais vinculados ao Partido Comunista do Brasil trataram a questão racial ao longo da história.

Por Theófilo Rodrigues*

No Brasil, é inegável que o marxismo só pôde ser encontrado de forma mais sistematizada a partir da fundação do Partido Comunista em 1922, embora saibamos da existência de certa recepção das obras de Karl Marx por aqui desde o fim do século anterior (1).

Ao longo de sua história, de forma não necessariamente linear, o Partido Comunista do Brasil conseguiu construir uma trajetória de incorporação das questões raciais à luta de classes em desenvolvimento no país. Mas tal construção não foi imediata, nem tão ligeira quanto uma intuição anacrônica possa nos indicar.

Um dos primeiros vereadores do Partido Comunista e o seu primeiro candidato à presidência da República (1930) foi o operário negro Minervino de Oliveira. O primeiro negro “retinto” a ser eleito deputado federal foi o operário comunista Claudino Silva, que participou do processo constituinte de 1946. Coube também a um deputado comunista, Jorge Amado, apresentar a emenda constitucional que garantiu a ampla liberdade religiosa no país, permitindo que os cultos afro-brasileiros pudessem sair da ilegalidade. Por fim, foi de outro deputado comunista, Haroldo Lima, a proposta de colocar o 20 de novembro no calendário oficial da República, como dia nacional da consciência negra” (Buonicore, 2009).

Contudo, não é fácil encontrar uma relação direta entre os comunistas e a questão racial nos períodos imediatamente posteriores à fundação do Partido Comunista, em 1922. Dois exemplos: Octávio Brandão e Astrojildo Pereira. O primeiro foi o responsável pela publicação da primeira obra de viés marxista produzida no âmbito do PCB: Agrarismo e industrialismo, de 1926. Embora o objetivo fosse trazer à luz uma interpretação marxista-leninista da sociedade brasileira, a leitura do texto não nos permite identificar conexão alguma entre a assimetria social no país e a questão racial. O mesmo pode ser dito de Astrojildo Pereira, que no ensaio produzido em 1929, Sociologia ou apologética, critica veementemente o livro Populações meridionais do Brasil, escrito por Oliveira Vianna em 1918, um texto claramente racista. Entretanto, a crítica feita por Astrojildo passa mais pelo autoritarismo e pelo caráter de classe da obra de Vianna do que pela questão racial propriamente dita.

Como nos mostra Buonicore (2009), “somente num Manifesto do PCB, publicado às vésperas da Revolução de 1930, encontramos uma pequena referência aos trabalhadores negros”, ou seja, oito anos após a fundação do partido. Mesmo assim, apenas como uma palavra de ordem. A partir de então, as menções aos negros passaram a ser mais frequentes nos documentos e nas resoluções partidárias, ainda que partindo de análises desprovidas de qualquer tipo de formulação mais consistente.

Neste momento inicial da formulação do pensamento marxista na esfera do partido, é necessário destacar o livro A caminho da revolução, publicado pelo pernambucano Leôncio Basbaum em 1934 sob o pseudônimo de Augusto Machado. À época o autor estava afastado do partido por conta das posições obreiristas que influenciavam o PCB, tendo-se reconciliado somente alguns anos depois. Seu mérito está em perceber a importância da questão racial no Brasil para além da clássica luta de classes.

“A originalidade da obra está na sua maneira de desmascarar o racismo existente no país, incomum naquela época, mesmo entre as correntes de esquerda. Ele, de maneira pioneira e contra a opinião da maioria dos comunistas brasileiros, descobriu que o racismo não poderia ser extinto “com um decreto nem mesmo que este seja do governo Soviético do Brasil” (Buonicore, 2009).

Nelson Werneck Sodré contra Oliveira Vianna

Com Nelson Werneck Sodré a questão racial passa a ser tratada de forma mais direta no interior do partido. O autor recupera o combate travado por Astrojildo Pereira contra Oliveira Vianna, criticando em especial o racismo explícito do ensaísta fluminense (Sodré, 1984). Trata-se de uma fase em que intelectuais ligados ao partido já incorporam de forma mais aprofundada a questão racial em seus estudos. Nelson Werneck Sodré escreveu muitos livros que o colocam dentre os grandes pensadores do Brasil, mas é com A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro, publicado no ano de 1961, que o autor nos oferece sua principal contribuição para a questão racial no país. Neste livro, Sodré enfrenta aquilo que chama de “ideias de manutenção do colonialismo no Brasil”, manifestas em cinco autores: Azeredo Coutinho, José de Alencar, Silvio Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna. Cada um dos cinco capítulos do livro é dedicado a um destes autores.

Ainda que pudéssemos nos deter sobre o debate que Sodré trava com cada um deles, tornaremos nossa lupa analítica na direção apenas de Oliveira Vianna. Por duas razões: em primeiro lugar, é com Oliveira Vianna que nosso autor combate de forma mais direta o que denomina de “racismo colonialista”; em segundo, é preciso ressaltar o fato de que os outros quatro pensadores possuíam ideias condizentes com suas épocas, o mesmo não podendo ser dito, de acordo com Sodré, de Vianna. Nas palavras de nosso autor, “para com Oliveira Vianna, entretanto, não é preciso tolerância alguma – o seu tempo lhe permitia situar e compreender melhor os problemas –, ele realizou uma opção deliberada” (Sodré, 1984). O capítulo intitulado “Oliveira Vianna: o racismo colonialista” é um texto de combate. Ao longo de suas 75 páginas, o capítulo esmiúça e critica firmemente cada afirmação do jurista fluminense. Segundo Sodré, o trabalho de Vianna é repleto de afirmações racistas que já não poderiam encontrar seu lugar na década de 60. Aqui reside sua principal preocupação: não aceitar que Populações Meridionais fosse mantida na galeria das grandes obras da sociologia brasileira. Todo o método e toda a forma de produção de conhecimento de Vianna são postos em jogo, como a sua antropologia, sua sociologia, seu método historiográfico e até mesmo suas noções de geografia: “Oliveira Vianna não tinha o menor senso de ciência histórica”, “autor da obra mais virulentamente racista que já se escreveu aqui”, “um dos forjadores do regime ditatorial”, “sua informação geográfica foi sempre imprecisa, vaga, quando não falsa”, são apenas alguns exemplos da forma como o historiador marxista tratou o ensaísta do início do século. A partir de tais críticas, Sodré pretendia chegar à essência do racismo colonialista. Assim, um dos principais objetivos do seu texto era demonstrar o conteúdo de classe expresso por Vianna. Em suas palavras,

“Sua obra foi sempre, em todos os seus livros, em todos os seus volumes, mas particularmente nos primeiros, não o resultado de uma pesquisa científica, não o resultado de um método, como cuidava o autor, na sua imodéstia, mas a mais tranquila, a mais irrefreável, a mais desmedida apologética de uma classe…” (Sodré, 1984).

A leitura feita por Oliveira Vianna era constrangedora demais para um intelectual que pretendia construir uma nova sociedade, ainda mais se levarmos em consideração que Vianna foi um dos “intelectuais orgânicos” do regime pós-30. A forma como diferenciava os “arianos” da classe dominante daqueles que são os dominados – os negros – é apontada constantemente no texto de Sodré.

“[…] Oliveira Vianna não usa qualquer disfarce: o que é branco, o que é “ariano”, é nobre, fidalgo, excelente, e tudo isso porque se trata, no fundo, da classe dominante, aquela que detém a propriedade e exerce o poder. […] Quando negros, índios, mamelucos, cafusos desmandam-se sexualmente, isso é corrupção: quando se desmandam os “arianos”, isso passa a ser padreação… O branco proprietário tem direito a tudo […]” (Sodré, 1984).

Caio Prado Junior

Werneck Sodré não foi o único. Também no interior do Partido Comunista, o paulista Caio Prado Jr foi fundamental para a abordagem do tema. Embora oriundo do bacharelado em direito, Caio Prado (1907-1990) foi um dos maiores formuladores da historiografia brasileira. Contemporâneo de Nelson Werneck Sodré, Caio Prado filiou-se ao Partido Comunista do Brasil em 1931. Sua aproximação com o marxismo gerou uma enorme reviravolta na produção historiográfica brasileira a partir de suas várias obras, especialmente com A formação do Brasil contemporâneo (1942). A inovação teórica proposta por Caio Prado está em seu marxismo não dogmático como forma de compreensão da formação do Brasil a partir das estruturas econômicas e sociais desde a época da Colônia. Tal análise empreendida leva em consideração profundamente a organização social dos escravos e a questão racial no período. Um dos pontos tocados pelo autor acerca do processo de abolição da escravidão no país diz respeito à lentidão da conquista. De acordo com seu livro História econômica do Brasil, “os escravos, apesar de sua massa que representa cerca de um terço da população total, não terão neste processo, ao contrário do ocorrido em situações semelhantes noutras colônias americanas, como por exemplo em são Domingos (Haiti), um papel ativo e de vanguarda (Prado Jr, 1976: 142). O que não quer dizer que o autor não reconheça o papel das revoltas dos negros no período. Não apenas reconhece como se apresenta como defensor desse grupo social.

Caio Prado Junior insere-se, justamente, no grupo destes intelectuais que, durante a Era Vargas, preocuparam-se em defender os “grupos marginalizados” e identificados com as raças até então tratadas como inferiores e incapazes de garantir o progresso da civilização brasileira. O autor de Formação do Brasil contemporâneo não só militou junto a esses grupos, como também abriu-lhes o espaço que lhes cabia na história do Brasil. Tanto é que, nesta sua obra, Caio Prado Junior dedica um capítulo especial à temática da raça, retomando-a nos itens “Organização social”, e “Vida social e política”” (Carneiro, 1989).

No entanto, apesar de ser reconhecido estudioso dos escravos no Brasil e defensor de suas causas, alguns críticos tentam se aproveitar de uma linguagem imprecisa do autor para apontar um suposto racismo em sua concepção. Se lembrarmos que seus textos começaram a ser escritos a partir da década de 30, poderemos compreender um pouco dos “deslizes” de sua linguagem. Talvez o melhor seja seguir com Maria Luiza Tucci Carneiro quando afirma que “o importante é ressaltarmos que esse historiador marcou um momento de transição do pensamento ideológico brasileiro diante da questão racial; e que denunciou o preconceito de cor imposto pelos senhores brancos aos índios negros e mulatos” (Carneiro, 1989).

Clóvis Moura e a questão racial no pensamento do PCdoB

Na geração comunista seguinte, destacou-se a contribuição de Clóvis Moura para esse tema. Moura parece ter sido um dos mais interessantes marxistas que trataram da questão racial no Brasil, em especial por sua trajetória intelectual ter passado ao largo da academia, enquanto, por outro lado, ele seja uma reconhecida referência para os movimentos sociais. O autor, que nasceu no Piauí em 1925, iniciou a sua militância no PCB em 1942 e participou, em 1962, da reorganização do partido sob a legenda PCdoB. O primeiro trabalho do autor, intitulado Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, escrito em 1952, só foi publicado em 1959 e não foi reconhecido pela intelectualidade oficial do partido. Aliás, característica importante de Moura foi o seu marxismo independente. Afinal de contas, seu trabalho não estava comprometido com a esquemática oficial proveniente de Moscou.

Logo, nosso autor explica a realidade social brasileira a partir de bases materiais e de relações de classe, bem aos modos marxianos, mas deixando bem claro que apenas utiliza o marxismo como ferramenta para pensar o Brasil, e não o seu contrário, o de encaixar o país num modelo engessado de marxismo” (Mesquita, 2003).

Em Rebeliões da senzala, teve a preocupação de demonstrar como se deu a luta de classes no período da escravidão no Brasil. As lutas dos escravos nunca teriam tido a marca da docilidade, como nos atesta Moura em seu clássico.

Daí a importância da acepção de Clóvis Moura, pioneira em ressaltar a história e a contribuição dos negros à nação brasileira de uma forma revisionista da sua ação como ator social ativo, elencando suas revoltas e participações em inúmeros levantes. A maior força dos seus estudos está em identificar a grande atuação do negro, esboçando resoluções, mas, detidamente se atém a sublinhar o papel do negro como ator social no processo de transformação da sociedade escravista,
bem como na capitalista” (Mesquita, 2003).

Não é por outro motivo que se tornou o grande intelectual dos movimentos sociais no país.

O último trabalho de Moura foi o seu Dicionário da escravidão negra no Brasil, publicado em 2004 após sua morte. Longe da academia, passou grande parte de sua vida palestrando, orientando e formulando as ações do movimento negro no país. Seu nome pode facilmente ser encontrado ainda hoje em resoluções e documentos desses movimentos. Aliás, não é trivial sua influência na UNEGRO (2).

O combate ao racismo no programa do PCdoB

Foi dessa forma que o combate ao racismo alcançou importante papel no programa do PCdoB. O Programa Socialista para o Brasil, aprovado em 2009 no 12 Congresso do partido, aponta de forma direta qual é uma das prioridades do partido: “Luta prioritária contra o racismo e por políticas de promoção da igualdade social para os negros” (3).

Em 2013, um passo importante foi a indicação feita pelo 13º Congresso do PCdoB para que Luciana Santos, uma mulher negra, assumisse a presidência do partido (4).

E, seguindo essa diretriz de trazer o combate ao racismo para o centro de sua agenda, o PCdoB aprovou em 2021, em seu 15º Congresso, a realização em 2023 da I Conferência Nacional do PCdoB de Combate ao Racismo: avançar na luta contra o racismo, pela democracia e pelo socialismo (5).

Notas:

(1) Sobre a recepção do marxismo no Brasil, consultar Moraes Filho (2007).

(2) A UNEGRO – União de Negros pela Igualdade – é uma organização do movimento negro fundada em 14 de julho de 1988. Hoje é uma das entidades do movimento negro com maior destaque no cenário nacional.

(3) Programa Socialista para o Brasil aprovado no 12 Congresso do PCdoB em 2009.

(4) Comitê Central indica Luciana Santos para presidência do PCdoB.

(5) Resolução Política do 15º Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Brasília, 17 de outubro de 2021

Referências:

BRANDÃO, Octávio (2006). Agrarismo e industrialismo. São Paulo: Anita Garibaldi.

BUONICORE, Augusto (2009). Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros. São Paulo: Anita Garibaldi.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (1989). A questão racial. In: D’INCAO, Maria Angela. História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Junior. São Paulo: UNESP.

MESQUITA, Érika (2003). Clóvis Moura e a sociologia da práxis. Estudos afro-asiáticos, v. 25, n. 3, Rio de Janeiro.

MORAES FILHO, Evaristo de (2007). A proto-história do marxismo no Brasil. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et al. (orgs.). História do marxismo no Brasil. Campinas: Unicamp.

MOURA, Clóvis (1984). Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense.

MOURA, Clóvis (2004). Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: EDUSP.

PRADO JUNIOR, Caio (1976). História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense.

SODRÉ, Nelson Werneck (1984). A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Petrópolis: Vozes.

Theófilo Rodrigues é mestre em ciência política pela UFF e doutor em ciências sociais pela PUC-Rio. Esse texto é baseado em uma seção de um artigo que foi publicado originalmente em RODRIGUES, Theófilo. Entre o partido e a academia: marxistas e questão racial no Brasil. Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.34, p.87-99, jan./jun. 2015.