Temporão: Brasil pronto para o Complexo Industrial da Saúde
Além de manter o maior parque fabril da América Latina, país reúne centros de pesquisa como a Fiocruz e universidades de excelência. Falta apenas decisão política para superar décadas de regressão produtiva e dependência das importações
Além de manter o maior parque fabril da América Latina, país reúne centros de pesquisa como a Fiocruz e universidades de excelência. Falta apenas decisão política para superar décadas de regressão produtiva e dependência das importações
Por Gabriela Leite, Outra Saúde
No papel, os planos para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde estão avançando. Integrante de um grupo executivo de trabalho que reúne dois ministros, José Gomes Temporão debateu em mais detalhes alguns de seus elementos principais – e sua relevância para a transformação do Brasil. O médico e ex-ministro da Saúde foi o convidado da última segunda-feira (12/6) do programa Cebes Debate, que foi apresentado por José Noronha e contou com ponderações de Carlos Fidelis, presidente da entidade, e Maria Lucia Frizon Rizzotto, editora da Revista Saúde em Debate.
O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) é uma ideia que vem sendo desenhada desde os debates da Reforma Sanitária, que levaram à construção do SUS, rememora Temporão. Significa construir no país um sistema industrial que produza desde medicamentos e insumos a dispositivos mecânicos, eletrônicos e digitais. A ele, estariam associados os serviços correspondentes. Tudo isso pode ser parte de outro projeto de desenvolvimento nacional – e marcar uma virada econômica importante, após décadas de industrialização e dependência de produtos importados.
O CEIS voltou a ser debatido já durante a fase de transição para o novo governo Lula. Foi estimulado sobretudo por setores da Saúde como a Frente pela Vida, rede de movimentos que apresentaram coletivamente um conjunto de ideias para a reconstrução do SUS, como bem lembrou Temporão. A execução do projeto está a cargo de duas estruturas. Um grupo executivo interministerial, coordenado por Nísia Trindade e Geraldo Alckmin, foi formado especialmente para isso. No ministério da Saúde, o economista Carlos Gadelha chefia a secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde. Na última terça-feira (13/3), o Valor noticiou que a ministra da Saúde reuniu-se com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para tratar do tema.
A ideia de produção industrial nacional para a Saúde já foi vista com desdém, conta Temporão, que escreve e debate sobre o tema há muitos anos. Mas fica cada vez mais claro que pode ser estratégica para um país de grandes dimensões e em posicionamento estratégico, enxerga ele. “O consenso é de que o Brasil possui condições diferenciadas que lhe permite articular uma política ousada de redução dessa dependência estrutural”, sustenta o ex-ministro. E detalha: “temos o Sistema Único de Saúde universal, com grande poder de compra; temos a Anvisa, uma agência reguladora que é uma das dez mais importantes do mundo; temos centros de pesquisa e universidades de alta qualidade, capazes de produção científica de altíssimo nível”.
Como exemplo, Temporão cita a vacina contra covid-19 que foi desenvolvida sob coordenação de Jorge Kalil, do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Ela apresentou resultados preliminares excelentes e utiliza a tecnologia de spray nasal, que pode ser promissora nessa nova etapa da crise sanitária. Mas encontrou um obstáculo praticamente intransponível: falta ao Brasil infraestrutura tecnológica e capacidade nas fases um e dois do desenvolvimento de medicamentos e vacinas. Quanto mais o país estará perdendo de potencial tecnológico, por falta de investimento?
“Nós temos, ainda, a mais importante estrutura industrial produtiva da América Latina”, continua Temporão. “O que nós precisávamos era exatamente de uma estratégia nacional de políticas de saúde industrial, de inovação, de ciência e tecnologia.” Ele lamenta os seis anos de governos Temer e Bolsonaro, que abandonaram a pesquisa científica e chegaram até a atacá-la. O próprio grupo executivo do CEIS, criado em 2008 por Temporão, foi encerrado no último governo. Portanto, a iniciativa de retomá-lo e colocá-lo em lugar de importância, por Nísia Trindade, parece promissora.
O ex-ministro chama a atenção, ainda, para outros fatos que é importante analisar para pensar a questão do CEIS. A primeira delas é a Lei de Propriedade Intelectual, de 1998, que foi aprovada precocemente e prejudicou a indústria brasileira, em sua opinião. Pois isso foi feito “sem dispor de uma estrutura produtiva de princípios ativos”. Já a política de genéricos, para ele, foi fundamental para fortalecer a produção brasileira e fortalecer o mercado nacional. Também foi o caso da criação da Anvisa, que foi um divisor de águas da indústria.
Temporão também levantou outro debate importante, que deve ser ponderado nas formulações para os incentivos à indústria da saúde. Trata-se da incorporação de tecnologias que são muito importantes hoje, mas que podem, em pouco tempo, tornar-se obsoletas. “Não nos basta investir apenas em estratégia de transferência e tecnologias maduras” – Temporão considera que é preciso ir muito além delas, e apostar também em inovação.
“O que estou defendendo aqui”, finaliza, “é que a Saúde pode e deve fazer parte de uma base produtiva forte, de um Estado forte. O Estado voltado para a defesa da vida, para a redução radical das desigualdades, o Estado democrático, transparente. E a Saúde tem todas as condições de ser um dos motores desse novo modelo de desenvolvimento em defesa da vida”.