Kruschev e a “história” do PCdoB repetida como farsa
Por Osvaldo Bertolino
Um Kruschev intransigentemente leninista. Essa é a conclusão básica do livro Khruschov denuncia Stálin – revolução e democracia, publicado pela Fundação Astrojildo Pereira. Em 235 páginas, os textos tentam associar o “relatório secreto” de Nikita Kruschev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), realizado em 1956, à democracia, tratada como dogma e bandeira abandonada por Josef Stálin, o principal dirigente socialista depois de Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917.
Grande parte do livro é ocupada por reproduções dos documentos que marcaram o XX Congresso e suas imediatas consequências, entre eles a Declaração de Março, de 1958, que causou grande celeuma no Partido Comunista do Brasil. Os demais são o “Discurso em reunião fechada do XX Congresso do PCUS – sobre o culto à personalidade e suas consequências” e o “Decreto do Comitê Central do PCUS – sobre a superação do culto à personalidade e suas consequências”. Além de uma extensa galeria de fotos.
A intenção do livro é proclamada por seu organizador, Caetano Pereira de Araújo – mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e diretor-geral da Fundação Astrojildo Pereira –, ao afirmar, na Introdução, que “a razão estava com todos aqueles que, como Mártov e os mencheviques”, se opuseram a Lênin na decisão de deflagrar a Revolução de 1917 e “defendiam um roteiro de mudança alheio à guerra civil, circunscrito aos limites da institucionalidade democrática em construção, após a queda do regime tzarista (referência à Revolução de fevereiro de 1917, governada por Alexander Kerensky)”.
No debate interno, de acordo com Caetano, a razão estava com os membros da direção bolchevique Grigori Zinoviev e Lev Kamenev, “que votaram contra o assalto ao poder”. A síntese é de que a decisão pela Revolução dividiu os bolcheviques entre defensores e opositores da “democracia”, dicotomia que, na versão do livro, levou os comunistas ao “relatório secreto” de Kruschev, agora com a versão de que a União Soviética buscava retomar o caminho dos que se posicionaram contrários à Revolução, a ideia do caminho “pacífico” para o socialismo.
Na versão de Caetano, “a questão democrática” confronta o “sistema de partido único”, que “não logrou desenvolver uma legalidade institucional soviética sólida”. “Se transparência e garantia de direitos individuais se revelaram fundamentais para o debate e enfrentamento dos problemas cada vez mais complexos que pesam sobre as sociedades modernas, a régua da crítica do discurso deveria ter retrocedido a 1917, tal como sinalizaram os reformistas de 1985 (alusão à ascensão do grupo de Mikhail Gorbachev no PCUS)”, escreve, numa defesa velada da imposição da ideia supostamente liberal definida pelo sociólogo e escritor marxista Domenico Losurdo como casamento da senhora democracia com o senhor capitalismo, deixando fora o socialismo científico.
O dilema estava fora de alcance em 1956, segundo Caetano. “Sua realização implicaria submeter à crítica também o legado de Lênin e os próprios fundamentos da identidade política bolchevique”, destaca, numa afirmação sem meias palavras de que o “relatório secreto” iniciou o processo de revogação das premissas do leninismo. Essa é a meta do livro, que percorre um roteiro desconexo e centra os argumentos na repetição de estribilhos bem conhecidos pelos pronunciamentos que caluniam Stálin.
É evidente que a “questão democrática” representa um grande desafio para os projetos socialistas. Mas é importante ressaltar, desde logo, que a democracia tem na sua suposta universalidade em sociedades de classes antagônicas – formulação que a rigor tem origem na Antiguidade Clássica – uma impossibilidade lógica. O Partido Comunista do Brasil enfrentou essa conceituação decisiva na análise da experiência soviética em seu VIII Congresso, de 1992, impulsionado pelo vendaval anticomunista que varreu o território socialista, de Berlim à Sibéria.
A análise se deu com a experiência de setenta anos de existência do PCdoB, num momento em que a tese da “democracia universal” irrompeu de forma estrondosa. João Amazonas, o principal dirigente comunista brasileiro, avaliou o Congresso como equivalente ao de fundação do Partido, em 1922. O tamanho da responsabilidade correspondia ao legado de Lênin, o patrono do Congresso. A revisita ao marxismo chegaria às formulações leninistas na transição da II para a III Internacional.
Também passou em revista o período posterior ao “relatório secreto” e concluiu que Josef Stálin, como principal dirigente do PCUS e teórico marxista-leninista, teve responsabilidade no ocorrido. Ele não deixou cair a bandeira revolucionária, disse o Partido, mas revelou deficiências, cometeu erros – alguns graves –, equivocou-se em questões importantes da luta de classes.
Particularmente no fim da vida, Stálin exagerou seu papel de dirigente máximo, concluiu o Congresso. Caiu no subjetivismo e, de certo modo, no voluntarismo. Permitiu o culto à sua personalidade, que conduziu à subestimação do PCUS. Constatou também que as debilidades ideológicas no enfrentamento com os revisionistas, em 1956-1957, quando toda a velha guarda bolchevique deixou se envolver nas maquinações de Kruschev, demonstrava que Stálin não deu atenção suficiente, em especial a partir da década de 1940, à formação leninista e à luta ideológica.
Para o Congresso, a tese de Stálin de que quanto mais avança a construção do socialismo maior é o acirramento da luta de classes mostrou-se equivocada. Conduziu a repressões continuadas e possivelmente desnecessárias, com repercussão negativa na credibilidade do regime. Dificultou o fortalecimento da legalidade democrática e socialista. Ressalvou, entretanto, que os ataques a Stálin são um artifício para manifestar oposição a certos conceitos básicos do socialismo. Concluiu que avaliava a figura de Stálin no plano histórico e que não era stalinista nem tampouco anti-stalinista.
As críticas, sem negar o legado prático e teórico daquela experiência socialista, só foram possíveis quando as luzes da contemporaneidade iluminaram a trajetória da Revolução de 1917 e da teoria marxista-leninista, antes obscurecida por eventos decorrentes da ascensão da extrema-direita, primeiro pelo nazifascismo e depois pelo expansionismo do imperialismo estadunidense, a anticomunista política chamada de “guerra fria”. Cumpria, naquele momento, reafirmar, em novas bases, o princípio de que o socialismo nascia historicamente como antípoda à barbárie capitalista.
Nesse antagonismo, a questão democrática tem grande relevância. Contudo, desde a Revolução de 1917 ela está condicionada a eventos como as duas grandes guerras e aos efeitos da dicotomia capitalismo-socialismo. Lênin diagnosticou o problema dessa dicotomia desde as suas primeiras formulações da teoria revolucionária, partindo da experiência da Comuna de Paris, e chegou à caraterização da guerra civil que ensanguentou a Rússia logo após a Revolução como comportamento típico do capitalismo em sua fase imperialista, que se repetiria na Segunda Guerra Mundial, nas guerras da Coreia e do Vietnã, além do golpismo na América Latina e da profusão de invasões militares pelo regime dos Estados Unidos.
Lênin analisou o fenômeno numa vasta produção, demonstrando que a guerra é um recurso essencialmente de quem já não possui condições para se manter diante da acumulação de contradições. O golpe militar no Brasil, em 1964, por exemplo, fez parte desse corolário ideológico. Falando ao jornal O Estado de S. Paulo na ocasião, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, disse que “a revolução de 1964” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlim e da derrota dos comunistas na Coréia”.
Eram tempos de consolidação do modelo econômico do dólar como padrão financeiro mundial, das hostilidades na fronteira da Segunda Guerra Mundial chamada por Winston Churchill de “cortina de ferro” e da corrida armamentista da Organização do Atlântico Norte (Otan). O PCdoB caracterizou aquele assalto, no documento O golpe de 1964 e seus ensinamentos, como ação de um grupo formado pela Escola Superior de Guerra, fundada por inspiração do Pentágono. “Desde a sua criação, essa Escola vem elaborando, com a ajuda de técnicos norte-americanos e de reacionários brasileiros, todo um programa de administração do país calcado nas ideias dos monopolistas dos Estados Unidos”, diz o texto, retratando a realidade daquele tempo.
O livro da Fundação Astrojildo Pereira ignora essa história e as formulações leninistas. Ao fazê-lo, traça um itinerário que pretendia chegar à ideia da “democracia universal” e se perde na argumentação a favor das teses de Kruschev, na verdade um amontoado de falsas informações e de vulgaridades teóricas. Tomando por base o “relatório secreto”, que ignora os elementos históricos para simular uma volta a um suposto leninismo pueril, o livro chega à contenda que originou o Partido Comunista Brasileiro em 1961 e à reorganização do Partido Comunista do Brasil em 1962 de forma absolutamente distorcida.
A subjetivista ideia de democracia leva à deformação sobre a fundação e evolução do Partido Comunista do Brasil, segundo o livro uma organização que nunca existiu. É a repetição daquilo que Pedro Pomar – um dos líderes da reorganização do PCdoB em 1962 – classificou como atribuir aos outros sandices para depois rebatê-las com ar triunfante. Ao analisar a Conferência que reorganizou o Partido em artigo no jornal A Classe Operária, ele disse que as guerras imperialistas – em especial a da Coreia, que mobilizou a militância comunista no Brasil para evitar a entrada do país no conflito – deveriam ser a premissa para avaliar a crise desencadeada pelo XX Congresso do PCUS.
Segundo ele, o debate no “movimento comunista” começou por iniciativa dos revisionistas, como eram chamados os adeptos das teses do grupo de Kruschev. Toda a atividade pretérita dos comunistas se transformou em alvo de zombaria, disse. Era acusada, em todos os aspectos, de ser sectária e dogmática. “O Programa do Partido foi considerado superado em sua totalidade pelos corifeus do revisionismo, sob a acusação de que não refletia as novas condições do mundo e do Brasil. No que se refere à situação internacional, os revisionistas afirmavam que, na base de uma falsa apreciação, havíamos exagerado o perigo de guerra, que o poderio do socialismo era de tal magnitude que todas as reformas sob o capitalismo favoreciam o socialismo”, escreveu.
O ponto central da divergência era a Declaração de Março, um dos esteios da tese sobre democracia do livro da Fundação Astrogildo Pereira. Em torno dela, autores de artigos e depoimentos de ex-militantes comunistas fazem malabarismos retóricos para negar a existência do Partido Comunista do Brasil, criando um fantasioso PCdoB “maoísta”, supostamente adepto de uma divisão no campo socialista desencadeada pela China. Partem de um ponto incerto e chegam a lugar nenhum. Não elucidam sequer as proposições da Declaração, que Maurício Grabois – outro líder da reorganização de 1962 – chamou de “protocolo programático de uma virada à direita”.
Grabois disse que a Declaração substitui o materialismo dialético, uma das bases principais do marxismo-leninismo, por um evolucionismo vulgar, gradualista em política e oportunista na teoria. Segundo a Declaração, “a democratização é uma tendência permanente na vida nacional, uma decorrência do desenvolvimento do capitalismo”. “Assim, a democracia aparece como inerente ao capitalismo, tese tipicamente revisionista”, afirmou. Sessenta e cinco anos depois, o livro da Fundação Astrojildo Pereira repete a mesma ladainha.