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A dilapidação da Conab no governo Bolsonaro e a volta do Brasil ao Mapa da Fome

3 de julho de 2023

Artigo de Luciano Rezende Moreira

Por Luciano Rezende Moreira

Durante os quatro anos de governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, a fome voltou a grassar fortemente pelo Brasil. Baseado em dados divulgados pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), publicados no Jornal Folha de S. Paulo[1], a inflação dos alimentos subiu cerca de 57% no governo Bolsonaro. Nunca o brasileiro, principalmente o mais pobre, sofreu tanto para comer desde a retomada da democracia no Brasil. Importante destacar que esse percentual foi quase o dobro dos 30% da inflação geral do período. Em alguns casos, os reajustes acumulados dos alimentos do início de 2019 ao final de 2020 chegaram aos 200%.

            Uma imagem foi emblemática para simbolizar essa trágica situação: centenas de famílias em Cuiabá (conhecida por ser a capital do chamado agronegócio brasileiro) em enormes filas para receberem ossos doados por frigoríficos locais para se alimentarem. A maioria dos grandes meios de comunicação, no Brasil e no mundo, repercutiu esse fato que chocou boa parte da opinião pública no final do ano de 2021. Como pode, justamente na região onde se tem o maior rebanho bovino do mundo, haver milhares de famílias em tamanha situação de vulnerabilidade alimentar, a ponto de terem que disputar ossos para garantirem o mínimo de proteína em suas casas?

            Certamente a pandemia de Covid 19 contribuiu para o aumento da insegurança alimentar (o que demandou, de todos os governos pelo mundo afora, iniciativas adicionais para se evitar ou amenizar o sofrimento da população). Entretanto, no Brasil, a fome superou, e muito, a média mundial. E também, na contramão da imensa maioria dos países, por aqui nenhuma medida mais eficaz para se combater o flagelo da fome foi tomada de forma mais firme. Pelo contrário.

            Em pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas, utilizando dados disponíveis sobre insegurança alimentar a partir do processamento do Gallup World Poll, comparando o Brasil “com a média simples dos mesmos 120 países, antes e durante a pandemia, a insegurança alimentar subiu 4,48 pontos percentuais mais aqui”[2], que no conjunto dos demais países analisados (aumento percentual quatro vezes maior no Brasil), sugerindo ineficácia relativa de ações nacionais.

            Justamente quando mais precisávamos de ações firmes do Estado brasileiro, foi quando assistimos ao desmonte de uma série de ações e estruturas já existentes no combate à fome, entre elas o desmantelamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o enfraquecimento dos programas alimentares e o inacreditável veto ao reajuste do orçamento das cantinas escolares. Desta forma, em menos de quatro anos de governo Bolsonaro, o país retrocedeu em mais de uma década no enfrentamento à fome.

            A insensibilidade foi tamanha que a ministra do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) do governo Bolsonaro, Tereza Cristina, tentou contemporizar o alastramento da fome no país afirmando que os brasileiros não passam muita fome porque têm “manga nas cidades”. Uma fala que, além de debochada, demonstra total desconhecimento sobre o caráter desumanizador da fome.

            Talvez o significado de fome para esses representantes da elite brasileira seja apenas aquele caracterizado pelas tristes imagens dos ianomâmis sendo resgatados sem forças até para se manterem em pé, pele e osso, deitados em uma maca. Mas a fome, para qualquer pessoa minimamente sensível à dor humana, é qualquer privação alimentar capaz de causar uma sensação desconfortável ou dolorosa pelo consumo insuficiente de calorias, sem necessariamente ter que chegar ao ponto mais severo de fome aguda.

            De acordo com Valente (2003) “O conceito de fome, no Brasil, utilizado por diferentes setores da população, abarca desde aquela sensação fisiológica ligada à vontade de comer, conhecida de todos nós, até as formas mais brutais de violentação do ser humano, ligadas à pobreza e à exclusão social”. Ainda de acordo com esse autor, “ver os filhos passarem fome é passar fome. Comer lixo é passar fome. Comer o resto do prato dos outros é passar fome. Passar dias sem comer é passar fome. Comer uma vez por dia é passar fome. Ter que se humilhar para receber uma cesta básica é passar fome. Trocar a dignidade por comida é passar fome. Ter medo de passar fome é estar cativo da fome. Estar desnutrido também é passar fome, mesmo que a causa principal não seja falta de alimento” (VALENTE, 2003).

            Ainda, segundo a ONU, “a segurança alimentar só existe quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico, social e econômico a uma alimentação suficiente, segura e nutritiva que satisfaça as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”.

            Portanto, mesmo o Brasil sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, se o Estado Nacional brasileiro abdicar de seu protagonismo em manter uma política permanente de segurança e soberania alimentar, uma imensa parte do povo ficará sempre à mercê da chamada “mão invisível do mercado”, literalmente na fila do osso. A escalada dos preços dos alimentos nesse último período e a consequente volta do Brasil ao Mapa da Fome demonstram isso de forma inequívoca.

            O Brasil logrou sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) pela primeira vez em sua história em 2014, após séculos de convivência com a fome. Essa conquista, que deveria ser imensamente comemorada por toda a nação, foi resultado de um grande esforço do Estado em promover estratégias de segurança alimentar e nutricional, por meio de um conjunto de ações no âmbito do chamado Fome Zero e outros programas governamentais. Mas infelizmente, a partir da desestabilização do governo Dilma em 2015, como preparativo para o Golpe que resultou em seu afastamento da Presidência da República em 2016, uma nova agenda política foi implementada, de feição econômica claramente ultraliberal, é responsável por empurrar o país novamente para esse macabro Mapa. Os desdobramentos foram catastróficos. Em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer – o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave (AGÊNCIA SENADO, 2022).

            Com a ascensão do neoliberalismo pelo mundo afora, a liberalização e a desregulamentação dos mercados alimentares foram adotadas por muitas nações que optaram por seguir o receituário estabelecido pelo chamado Consenso de Washington, abdicando-se “dos mecanismos de formação de estoques públicos de alimentos como instrumentos de estabilização dos mercados e de promoção do abastecimento, delegando essas atribuições ao mercado privado” (PICCIN, 2017). O resultado dessa política foi catastrófico.

            No Brasil, por exemplo, a onda neoliberal ganhou novo fôlego a partir do Golpe de 2016, em que os representantes do mercado foram recolocados novamente na presidência da República e em seus postos chaves estratégicos para reduzir ao máximo a estrutura do Estado Nacional. Com a dupla Bolsonaro e Paulo Guedes, os estoques públicos de alimentos, essenciais para se enfrentar a fome, praticamente desapareceram, ficando por conta do mercado regular também o tamanho do prato do brasileiro (que, segundo Guedes, é muito maior que o prato do Europeu, que foi educado com os exemplos das privações das guerras[3]).

            Não se pode imaginar sucesso no enfrentamento à fome sem investir fortemente em uma política de armazenamento e abastecimento de alimentos. Inclusive, um dos grandes pilares para que a China promovesse a maior política de combate à fome da história da humanidade foi justamente sua Nova Reforma Estrutural de Abastecimento Agrícola “The Supply-Side Structural Reform in Agriculture”, de 2016, que apresentou como proposta essencial investimentos e subsídios voltados à infraestrutura de armazenamento dos principais produtos agrícolas, visando reduzir o hiato entre oferta e demanda, além de promover a qualidade dos alimentos (e não somente a quantidade), influenciando os mecanismos de formação de preço (MAO e GUO, 2017).

            No Brasil, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra a produção de pequenos agricultores e direciona para escolas e grupos de pessoas em situação de insegurança alimentar, é um exemplo dessa importante intervenção do Estado para comprar essa produção e organizar uma política nacional de abastecimento alimentar, embora a formação de robustos estoques públicos dependam de outros tipos de investimentos relacionados à uma arrojada infraestrutura de armazéns e beneficiadoras de grãos públicos e privados.

            De acordo com dados oficiais, o Brasil tinha mais de um milhão de toneladas de arroz armazenados em 2015. Em 2020, em plena pandemia da Covid 19, eram apenas 22 toneladas (insuficiente para uma semana de consumo no Brasil). A situação só piorou. E ao invés de haver uma política emergencial para se recompor os estoques, o governo Bolsonaro chegou ao fim de seu mandato praticamente sem reservas governamentais para contingência, incapaz para intervir no mercado e muito menos para sustentar os programas sociais que atuam no combate à fome de milhões de brasileiros.

            Importante ressaltar que a FAO (sigla em inglês para Food and Agriculture Organization), braço de alimentação e agricultura da ONU, “recomenda aos países que armazenem estoques equivalentes a três meses de consumo da população, com a finalidade de garantir a segurança alimentar nacional. Alguns pesquisadores defendem que os países devem ter, pelo menos, seis meses de estoques”[4]. Além disso, a lei 8.171, de 1991, que dispõe sobre a política agrícola do país, determina que é papel do Estado manter estoques bem cuidados para abastecimento e calibragem de preços que devem ser adquiridos, preferencialmente, de pequenos e médios produtores.

            Ao mesmo tempo que o Brasil se orgulha em prever ultrapassar a marca de 300 milhões de toneladas de cereais, leguminosas e oleaginosas em 2023, para que essa produção agropecuária seja utilizada posteriormente pelo conjunto da população é fundamental investir em modernos processos de armazenamento e abastecimento, preservando as melhores qualidades sensoriais e nutricionais dos alimentos, ao mesmo tempo em que contribua para uma melhor logística para também se chegar à mesa do povo brasileiro.

            Segundo o professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e ex-diretor de Política Agrícola da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Sílvio Porto, o que assistimos “é um posicionamento de política agrícola ultraliberal que entrega a regulação do mercado de alimentos de bandeja à iniciativa privada. Os interesses econômicos estão colocados acima do interesse público”[5]. Ainda de acordo com Porto, ficamos com o ônus ambiental de devastar biomas para cultivar grãos para exportação in natura e ainda temos um Estado que não cumpre sua função social de garantir os direitos básicos da população.

            Em contrapartida, vários países seguiram o caminho oposto ao do Brasil na pandemia. A pequena Jordânia, por exemplo, “acumulou reservas recordes de trigo, enquanto o Egito, o maior comprador mundial do grão, surpreendeu quando decidiu acessar mercados internacionais durante a colheita no país e aumentou as compras em mais de 50% desde abril”[6]. Taiwan aumentou os estoques de alimentos estratégicos, e a China acelerou as compras para alimentar seu crescente plantel de suínos.

            Não se pode pensar em combater a fome, portanto, sem políticas de abastecimento alimentar e gestão de estoques públicos de alimentos executados por empresas públicas robustas. A retirada do Brasil do Mapa da Fome contou com a atuação decidida de uma de suas empresas públicas mais importantes nesta área: a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

            Embora seja relativamente jovem quando comparada à tantas outras empresas públicas brasileiras, a Conab foi criada em 1990, na esteira do ímpeto liberalizante do governo Collor, como fusão de três outras importantes e históricas empresas públicas: a Companhia de Financiamento da Produção (CFP), a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) e a Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem).

Foto 1: Unidade da rede armazenadora de grãos da Conab. Fonte: Conab/divulgação.

            Sobre essas três empresas que originaram a Conab, é importante destacar que todas elas foram criadas por governos nacional-desenvolvimentistas, quem tinham claramente uma proposta de um Estado Nacional forte para atuar em favor dessas demandas populares essenciais, sobretudo em defesa da soberania e segurança alimentar dos brasileiros.

            A CFP, por exemplo, foi criada no governo Getúlio Vargas, em 1943, e tinha alguns objetivos básicos, entres eles o de adquirir produtos pelo preço mínimo fixado; conceder financiamento, com ou sem opção de venda, inclusive para beneficiamento, acondicionamento e transporte dos produtos amparados pela Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM); vender produtos adquiridos na forma do item anterior; formar estoques reguladores e importar e exportar produtos especialmente indicados pelo Conselho Monetário Nacional.

            Já a Cibrazem e a Cobal foram criadas juntas, pelo governo João Goulart, em 1962, com objetivos diversos e estratégicos também no combate à fome, entre eles atuar como empresa de armazéns gerais, podendo construir, instalar e operar armazéns, silos e frigoríficos, diretamente ou por terceiros; instalar máquinas de beneficiamento ou qualquer outro equipamento indispensável à operação de unidades armazenadoras, inclusive para semiindustrialização e embalagens; encarregar-se, prioritariamente, do armazenamento dos estoques reguladores do Governo; traçar as diretrizes da política de armazenamento do país (Cibrazem); agir como elemento regulador do mercado de produtos essenciais, ou em carência, e abastecer, de forma supletiva, áreas não suficientemente atendidas pela iniciativa privada; comprar, permutar, estocar, beneficiar, industrializar, transportar e vender, exportar e importar gêneros alimentícios e bens destinados a manter a normalidade do abastecimento, inclusive aqueles necessários às atividades agropecuárias e pesqueiras e às indústrias de alimentos;  receber e distribuir gêneros entregues por doação, assim como os que lhe fossem consignados a qualquer outro título (Cobal); entre outros (PICCIN, 2017).

            A Conab inicia plenamente suas atividades em janeiro de 1991, vinculada ao então Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento (MEFP), com a sigla CNA. Alguns meses depois é transferida para o Ministério da Agricultura e Reforma Agrária (Mara), atual Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Na mesma época, foi alterada a sigla para Conab. Já no início do terceiro mandato do governo Lula, em 2023, a estatal passa a ser vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, após amargar um período de forte desidratação no governo de Jair Bolsonaro, quando foram fechados 27 armazéns da Conab responsáveis pela distribuição e controle dos alimentos e de seus preços.

            Cumpre destacar que, antes de o Governo Bolsonaro ter colocado à venda 27 das atuais 92 unidades armazenadoras, no ano do início das suas atividades a Conab tinha 349 armazéns (agrupados em 125 Unidades Armazenadoras (UAs), 58 Unidades de Comercialização (UCs) e Unidades de Processamento (UPs). Integravam a sua estrutura, além da Matriz, em Brasília, mais 13 Gerências Regionais que contemplavam todos os Estados da Federação com cerca de 5 mil empregados (CONAB, 2017).

            Mas é imperioso reconhecer que, embora tenha sido no governo Bolsonaro que a Conab tenha sido mais atingida – com sua missão institucional desconfigurada e sua infraestrutura dilapidada -, já vem desde a escalada do neoliberalismo no Brasil a sabotagem das elites agrárias de todo o esforço nacional em abastecimento e distribuição de estoques estratégicos de alimentos. Todo um grande legado, que começa há muitas décadas, foi duramente atingido pela sanha privatista dos neoliberais.

            Entretanto, nem sempre nossas classes dominantes foram predominantemente entreguistas. Ainda na década de 1940, durante o governo Vargas, iniciou-se as primeiras iniciativas voltadas para uma política nacional de armazenamento e abastecimento, sob a ameaça dos reflexos da Segunda Guerra Mundial. A iniciativa privada foi chamada a ser parceira do Estado, com farta concessão de créditos subsidiados pelo governo federal para a construção de uma rede de armazenamento que, até então, era quase toda ela voltada para o café.

            A partir da década de 1950, esse grande esforço se expandiu também para o estados que foram criando suas próprias companhias estaduais de armazenamento, como foi o caso da Casemg em Minas Gerais, a Casego em Goiás, a Caseb na Bahia, a Cagep em Pernambuco e tantas outras mais em todas as regiões do Brasil, além de algumas cooperativas voltadas para o armazenamento, sobretudo na região sul do país. Na esfera federal, formou-se também a Armazéns Gerais Ferroviários da RFFSA, além da já mencionada Cibrazem (FREDERICO, 2010).

            Desnecessário demonstrar, aqui, o protagonismo do Estado Nacional na expansão da agricultura brasileira no cerrado brasileiro. A expansão da moderna agricultura brasileira, sobretudo no centro-oeste brasileiro e demais partes do bioma cerrado, só foi possível com a ação destacada de instituições de pesquisa e ensino, destacadamente a Embrapa (criada em 1973), os programas de pós-graduação voltados às ciências agrárias (inaugurados ainda na década de 1960 em algumas universidades públicas) com os seus respectivos cursos de graduações em agronomia, engenharia florestal, zootecnia, engenharia agrícola, etc. Mas além dessa decidida intervenção do Estado na pesquisa (e em certa medida na Extensão Rural), houve também um investimento importante em armazéns para dar conta do consequente processo de granelização dessa nova agricultura que foi sendo desenvolvida.

            Os armazéns que já existiam tornaram-se obsoletos frente à nova realidade que ia se apresentando. Além do mais, a expansão da agricultura rumo a uma nova fronteira agrícola demandava um novo reordenamento e distribuição desses armazéns. Nessa época, o Estado foi chamado novamente a investir pesado na modernização dos armazéns e no “aparelhamento da agricultura brasileira”. Conforme lembra Frederico (2010), nesse período:

“(…) foram criadas linhas de financiamento estatais para a modernização e construção de infraestruturas agrícolas como: o Programa de Investimentos Agropecuários (Proinap), o Programa de Financiamento e Equipamentos de Irrigação (Profir), o Programa Nacional de Armazenagem Comunitária (Pronac) e o Programa Nacional de Armazenagem (Pronazem)” (FREDERICO, 2010).

            Importante ressaltar que no primeiro Plano Safra anunciado pelo Governo Lula para o ano de 2023, houve um aumento em 80% em relação ao ano anterior (governo Bolsonaro) do montante ofertado aos produtores rurais para construção e ampliação de armazéns com capacidade de até seis mil toneladas, com juros subsidiados a 7% ao ano. O maior Plano Safra da história também visa, de acordo com o ministro Carlos Fávaro, aumentar a capacidade de estocagem de grãos, trazendo maior benefício ao agricultor brasileiro, elevando o prazo de comercialização e proteção à produção[7].

            A volta do Estado brasileiro como protagonista em investimentos estratégicos como nesse último Plano Safra precisa ser enaltecido. Além de tantas outras linhas de investimentos anunciados, o armazenamento em nível de propriedade rural deve ser visto como “uma forma de incrementar as produções agrícolas, para reduzir o estrangulamento da comercialização de grãos, ou mesmo evitá-lo, e permitir a regularização dos fluxos de oferta e demanda, com a manutenção de estoques e a racionalização do sistema de transportes, evitando-se, assim, os efeitos especulativos” SILVA (2000).

            A armazenagem em nível de fazenda é fundamental e deve ser encarada como complementar a toda uma rede pública de serviços de armazenagem, secagem, limpeza e comercialização de grãos, entre outras atividades. Infelizmente, várias empresas que historicamente prestaram esses serviços, atuando na formação de estoques públicos para garantir preço e renda do produtor, entraram na lista de privatizações de governos entreguistas como foi o de Bolsonaro. Em Minas Gerais, por exemplo, com apoio do governo neoliberal de Romeu Zema, a Companhia de Armazéns e Silos do Estado de Minas Gerais (Casemg) foi posta à venda. A iniciativa foi parte da estratégia do governo Federal no âmbito do Programa Nacional de Desestatização e a decisão da privatização foi tomada pelo Conselho do Programa de Parcerias de Investimento da Presidência da República.

            Mais uma vez é importante destacar o exemplo da China que, em 2021, anunciou o fim da pobreza extrema e lançou como próxima meta nacional a consolidação de sua soberania alimentar. Na contramão da corrente neoliberal, investe fortemente em um complexo estatal de armazenamento e beneficiamento de grãos. A Sinograin, gigante estatal de alimentos que administra as reservas centrais de grãos do país, começou a construir 120 projetos de instalações de armazenamento localizados em 18 localidades diferente do país ainda em 2021[8].

            De acordo com a mídia estatal chinesa, o país asiático tem mais 650 milhões de toneladas de capacidade de armazenamento de grãos, ou seja, mais de duas safras anuais do Brasil. Apenas um desses projetos de armazenagem de grãos possui quase 40 hectares de área e consegue armazenar mais de 800 mil toneladas de grãos.

            O volume total das reservas de grãos da China é tratado como segredo de Estado. O combate à fome e a promoção da soberania alimentar no país é tema dos mais relevantes para o Partido Comunista chinês. Mas é sabido, principalmente em função dessa gigantesca infraestrutura de armazenamento, que a China possui as maiores reservas de grãos do mundo.

Foto 2: Complexo de armazenagem de grãos de quase 40 hectares na China. Foto: Xinhua/Zhu Xudong.

            O exemplo da China é grandioso e merece ser enaltecido. Mais 700 milhões de chineses foram retirados da situação de extrema pobreza nas últimas quatro décadas, um contingente mais de três vezes maior do que a população brasileira, anunciada pelo IBGE de 203 milhões de pessoas em 2023.

            O Brasil tem um desafio de proporções muito menores aos já enfrentados pela China, mas precisa ser encarado de maneira resoluta. Neste terceiro mandato de Lula, por assistimos algumas ações importantes, como a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), retomando todos seus programas e políticas que convergem no pacto contra a fome; o anúncio do Pacto Global contra a Fome; o lançamento do atual Plano Safra; o robustecimento do Bolsa Família, a retomada do papel estratégico da Conab, entre outras iniciativas.

            Mas não tenhamos vãs ilusões. Sem a superação do neoliberalismo e adoção de políticas consistentes e permanentes de valorização do Estado Nacional como propulsor do desenvolvimento econômico e social, o país continuará nesse caminho de idas e vindas, avanços e retrocessos, típico de um país sem rumo, que caminha guiado pela “mão invisível” de um mercado que já demonstrou, por inúmeras vezes, seu total desprezo pelas vidas humanas.

Referências consultadas

CONAB. Companhia Nacional de Abastecimento. Memória Conab: Linha do tempo 1990-2016 / Coordenação: Jussara Flores Soares. – Brasília: Conab, 2017.

FREDERICO, S. Desvendando o agronegócio: financiamento agrícola e o papel estratégico do sistema de armazenamento de grãos. GEOUSP: Espaço e Tempo (Online), [S.l.], n. 27, p. 47-62, 2015. 2010. Acessado em 02 de jul. 2023. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/74154.

MAO, F; GUO, W. A Literature Review on Structural Reform of Agricultural Supply Side. Advances in Social Science, Education and Humanities Research, v. 119, p. 1366–1371, 2017. Acessado em: 30 de jun. 2023. Disponível em: file:///C:/Users/WINDOWS/Downloads/25880926.pdf.

PICCIN, M. B.  O combate à fome, o abastecimento alimentar e a gestão dos estoques públicos executados pela Conab, no período de 2003 a 2014. 2017.316 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Agrossistemas). Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Mestrado Profissional em Agroecossistemas, Florianópolis, 2017.

SILVA, J. S. Secagem e armazenagem de produtos agrícolas. Viçosa, Aprenda fácil, 2000, 502p.

VALENTE, F. L. S. Fome, desnutrição e cidadania: inclusão social e direitos humanos. Saúde e Sociedade, v. 12, p. 51-60, 2003.


[1] Ver mais em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/01/inflacao-dos-alimentos-e-de-57-no-governo-bolsonaro.shtml#:~:text=No%20per%C3%ADodo%20do%20governo%20de,de%202020%20beiraram%20os%20200%25.

[2] Ver mais em: https://cps.fgv.br/destaques/fgv-social-lanca-pesquisa-inseguranca-alimentar-no-brasil.

[3] Ver mais em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/06/17/paulo-guedes-fala-em-direcionar-alimentos-desperdicados-a-programas-sociais.ghtml.

[4] Ver mais em: https://diplomatique.org.br/no-pais-do-agro-estoques-estrategicos-de-alimentos-viram-coisa-do-passado/.

[5] Ver mais em: https://diplomatique.org.br/no-pais-do-agro-estoques-estrategicos-de-alimentos-viram-coisa-do-passado/.

[6] Ver mais em: https://www.moneytimes.com.br/paises-aumentam-estoque-de-alimentos-na-pandemia-e-aceleram-precos/.

[7] Ver mais em: https://www.poder360.com.br/governo/plano-safra-inova-no-incentivo-a-construcao-de-armazens-diz-favaro/.

[8] Leia mais em: https://www.comprerural.com/novo-completo-gigante-de-armazenagem-de-graos-e-construido-na-china/.

Luciano Rezende Moreira é doutor na área de melhoramento genético de plantas (UFV), mestre em entomologia (UFV) e especialista em Manejo Integrado de Pragas (UFLA). É graduado em agronomia (UFV), geografia (Uerj) e administração pública (UFF). Atualmente é professor no Instituto Federal de Brasília (IFB).