O que a chegada da BYD no Brasil diz sobre a conjuntura política e econômica?
Montadora chinesa de automóveis elétricos vai assumir a planta da antiga fábrica da Ford em Camaçari na Bahia.
Por Theófilo Rodrigues
Em janeiro de 2021, a Ford anunciou o encerramento da produção de veículos no Brasil. Uma das fábricas que a montadora fechou estava em Camaçari, na Bahia, onde eram produzidos os modelos EcoSport e Ford Ka. A saída da Ford marcou o fim de um longo ciclo da história brasileira. Para quem não se recorda, a Ford foi a primeira fábrica de automóveis do Brasil, instalada aqui em 1919. Na primeira metade do século XX, a empresa estadunidense chegou até mesmo a criar uma cidade no Pará, a Fordlândia, para produção da borracha de seus pneus. Acabou que aquela experiência deu errada e ao fim do governo Vargas, em 1945, a atividade em Fordlândia foi fechada. Mas a montadora permaneceu por décadas no país até 2021.
Dois anos e seis meses se passaram até que, na última terça-feira (04/07), o governador da Bahia anunciou que a montadora chinesa BYD vai assumir a planta da antiga fábrica da Ford em Camaçari. A BYD é a maior produtora de carros elétricos do mundo com uma produção superior que a da Tesla de Elon Musk. Conforme notícias veiculadas na imprensa, a expectativa é de que o complexo industrial da BYD inicie a produção de veículos já no segundo semestre de 2024.
Esse acontecimento da substituição da Ford pela BYD no Brasil vai para muito além de uma mera questão comercial. Com efeito, essa história nos permite avaliar três mudanças conjunturais importantes de nossa época: a internacional, a nacional e a ambiental.
A questão internacional
A saída da Ford do Brasil em 2021 é sintomática do declínio relativo da hegemonia dos Estados Unidos no mundo. Por muito tempo, a Ford foi a cara do capitalismo estadunidense do século XX. Gramsci, aliás, já havia percebido isso com fineza e sofisticação teórica na década de 1930.
Independentemente da Ford, o fato é que no mundo ocidental, o século XX foi o século dos Estados Unidos, em particular após os Acordos de Bretton Woods, em 1944, que configuraram o sistema financeiro internacional como conhecemos, com suas duas grandes instituições financeiras: o Banco Mundial e o FMI.
A crise econômica internacional de 2008, no entanto, demarcou um ponto de virada para o declínio dessas instituições. A desregulação financeira promovida por aquelas instituições estimulou novos processos de integração dos países emergentes do Sul Global. Nesse cenário, merece atenção a criação do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, em 2014, como instrumento de crédito para os países em desenvolvimento.
É sob esse registro que emerge a China, país que sob o conceito de Paridade do Poder de Compra já possui a maior economia do mundo. Por meio do projeto de Nova Rota da Seda, impulsionado a partir de 2013, a China vem consolidando também redes de infraestrutura e comércio por todo planeta. E as fábricas da China, como a BYD, vem assim ganhando o mundo.
É esse o cenário internacional em que estamos. Se após o fim da Guerra Fria vivemos alguns anos sob a única hegemonia norte americana, nesse momento vivemos na geopolítica algumas mudanças na direção da multipolaridade com o declínio relativo da hegemonia capitalista dos Estados Unidos e a ascensão acelerada do socialismo chinês. A BYD assumir a fábrica da Ford no Brasil é um retrato dessa mudança na conjuntura internacional. Talvez, até mais do que isso, o que esteja em jogo seja uma mudança estrutural no sistema internacional.
A questão nacional
E o Brasil com isso? Se há essa mudança internacional na geopolítica, há também seus reflexos na questão nacional. Essa é a segunda dimensão da dinâmica conjuntural que o embate Ford versus BYD pode nos remeter.
Nos últimos quatro anos, o governo de Jair Bolsonaro manteve um alinhamento muito próximo com os Estados Unidos. O ministro da Economia Paulo Guedes, formado na escola neoliberal de Chicago, dizia repetidamente aos investidores estadunidenses que as privatizações no Brasil potencializariam as relações comerciais entre os dois países.
Ao contrário do governo Bolsonaro, o atual governo Lula possui uma aproximação muito maior com a China. Por sinal, a indicação da ex-presidenta da República Dilma Rousseff para a presidência do Banco dos Brics é bem simbólica dessa situação. Aliás, Dilma indicou como economista chefe de pesquisas do NBD o professor Elias Jabbour, que é membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil e um dos maiores especialistas brasileiros em China. Ou seja, há um realinhamento, um reposicionamento do Brasil na geopolítica.
A saída da Ford do Brasil acontece no fim do governo Bolsonaro. Mas ela não é um raio em céu azul, se quisermos retomar aqui a velha expressão de Engels. Esse evento é consequência de um longo processo nacional de desindustrialização acelerado pelo golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, e pela Operação Lava Jato. A Ford é apenas um caso dentre tantos outros de empresas que deixaram o Brasil nos governos Temer e Bolsonaro, governos que assumiram uma política econômica neoliberal que prioriza o setor financeiro em detrimento do produtivo.
De certo modo, a chegada da BYD ao Brasil é um símbolo do fim desse período neoliberal e da retomada de uma política econômica desenvolvimentista. A prioridade que o governo Lula deu em encerrar o antigo Teto de Gastos e substitui-lo pelo Novo Arcabouço Fiscal aponta nessa direção. Bem como a votação que está acontecendo nesse exato momento na Câmara dos Deputados sobre a reforma tributária. São medidas para reativar a industrialização do país, o crescimento econômico. Há, portanto, uma clara diferença de política econômica.
Claro, é impossível falarmos que a mudança já começou se considerarmos que o principal mecanismo da política econômica, o Banco Central, ainda mantem o projeto do governo anterior de juros altos. Mas é uma questão de tempo para que as mudanças alcancem também o BC.
Se a saída da Ford foi um retrato da desindustrialização do país, talvez a chegada da BYD possa representar um indício da reindustrialização nacional.
A questão ambiental
Há, por fim, um terceiro ponto que a chegada da BYD no Brasil no lugar da Ford nos remete: trata-se da questão ambiental.
A ciência tem dito com algum grau de certeza – os relatórios do IPCC são provas disso – que o aquecimento global é uma realidade. Por coincidência, nesse mesmo início de julho em que foi anunciada a fábrica chinesa na Bahia, registraram-se também os dias mais quentes do planeta nos últimos séculos.
A chegada da BYD no Brasil, a principal montadora de carros elétricos no mundo, no lugar da Ford, que é o símbolo da energia poluidora do combustível fóssil, é um indício da transição energética necessária de nossa época.
Dito de outro modo, se houve uma mudança conjuntural na geopolítica e na política econômica nacional, houve também uma mudança na política ambiental brasileira.
Os governos de Michel Temer e Bolsonaro foram marcados pela irresponsabilidade ambiental. O Brasil chegou ao cúmulo de ter um ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que defendia “passar a boiada” sobre as florestas em nome da busca irrefreada por lucros privados. Nesse período de 2016 até 2022 o desmatamento da Amazônia cresceu assustadoramente.
O início do novo governo Lula representou uma virada nessa página. Entre algumas das medidas de impacto ambiental positivo, podemos destacar a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, o PPCDAM, um dos principais instrumentos de comando e controle para a preservação da Amazônia e a reconstituição do Fundo Amazônia. Já a Petrobras declarou que ampliará o seu portfólio de produtos e de inovação para não ser apenas uma empresa de petróleo, mas sim de energia. Assim, a estatal brasileira demonstra compreender bem que, da mesma forma como a idade da pedra não acabou por falta de pedras, a idade do petróleo não acabará por falta de petróleo, mas sim pelo desenvolvimento tecnológico de novas fontes energéticas. Como consequência, o Brasil voltou a liderar a agenda da sustentabilidade no mundo e as Nações Unidas anunciaram que a COP 30 será realizada em Belém do Pará em 2025.
Claro, num governo de frente ampla, com uma coalizão de forças distintas e contradições internas, ainda há questões ambientalmente polêmicas como o investimento do BNDES no gasoduto do megacampo de gás de xisto de Vaca Muerta na Argentina – o xisto é uma das mais poluentes fontes energéticas -, a política de isenção de automóveis e a possível exploração de petróleo na Margem Equatorial que levará para a atmosfera o combustível fóssil que potencializa o aquecimento global.
Não obstante esses pontos negativos, há uma clara mudança de política ambiental representada por esse governo. O fato da Ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, ter colocado o desenvolvimento sustentável no centro da agenda do seu ministério ilustra bem essa guinada. Aliás, não é trivial que a ministra tenha anunciado que a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2023 terá como tema “Ciências Básicas para o Desenvolvimento Sustentável”.
Em síntese, seria um equívoco interpretar a chegada da BYD no lugar da Ford no Brasil como uma mera questão comercial. Mais do que isso, esse evento traduz as diferentes mudanças conjunturais de nosso tempo, algumas delas com dimensões estruturais.
Theófilo Rodrigues é cientista político.