Lula e o oceano entre a União Europeia e a América Latina
Por Osvaldo Bertolino
A cúpula da União Europeia (UE) com os países da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), realizada em 17 e 18 de julho de 2023, reunindo líderes de 27 países europeus e 33 latino-americanos, trouxe à tona questões de grande pertinência. Antes do evento, o presidente brasileiro Luiz Inácio da Silva, na condição de presidente do Mercosul – formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai –, teve uma reunião bilateral com a presidente da Comissão Europeia (braço executivo da União Europeia), Ursula von der Leyen. Foi informado de que a UE vai investir mais de 45 bilhões de euros na América Latina e no Caribe.
De acordo com o grupo de mídia Euronews, as verbas vão para setores-chave tais como a biotecnologia, as telecomunicações e a energia, nas quais a China é um concorrente de peso da UE e país que já tem muita influência na região. Em alguns desses países se encontram grandes reservas de lítio, entre outras matérias-primas essenciais, que a UE quer comprar para poder ter maior autonomia industrial. Ursula von der Leyen disse que a intenção era discutir, entre outras coisas, a diversificação das cadeias de abastecimento, um malabarismo retórico adocicado com promessas genéricas de “resolver quaisquer diferenças que subsistam o mais rapidamente possível”.
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A China é um dos pontos da agenda da UE. Ursula von der Leyen tem afirmado que está em curso um afastamento, diplomático e econômico. Isso inclui a reindustrialização da região – a UE lançou a European Chip Bill, com o objetivo de aumentar a capacidade de produção de chips para 20% do mercado mundial até 2030 – e a aceleração da transição ecológica. Prevê-se que a procura de matérias-primas críticas aumente 500% até 2050, de acordo com o Banco Mundial. Estes materiais estão no centro das indústrias do futuro, como os veículos elétricos.
Habitantes da Amazônia
Atualmente, a China detém mais de metade da capacidade de produção em diferentes segmentos dessa cadeia. Há uma corrida na busca de material alternativo, como o desenvolvimento de baterias de fosfato de ferro e lítio, sem cobalto nem manganésio para o armazenamento maciço de energias renováveis ou para alimentar centros de dados. São baterias menos potentes, mas mais adaptáveis graças à inteligência artificial e custam 20% mais do que as da China.
Essa corrida se insere na resposta de Lula às imposições da UE para o acordo com o Mercosul, que se arrasta há 20 anos e abrange 25% da economia global e 780 milhões de pessoas (quase 10% da população mundial). A questão climática é apenas uma parte do processo. Lula ressalvou que o Brasil vai fazer a sua parte, mas sem ingerência externa, lembrando o compromisso de travar totalmente o desmatamento na Amazônia até 2030. “Todos sabem que o Brasil vai fazer a sua parte na questão climática”, disse, numa referência ao documento da UE impondo condições para o acordo. “Durante este debate, queremos fazer com que a Comissão Europeia entenda que há 50 milhões de habitantes na Amazônia sul-americana que precisam de condições de sobrevivência decentes e dignas”, acrescentou.
Cuba e Ucrânia e Venezuela
As imposições envolvem também questões políticas. Menos de uma semana antes do início da cúpula, uma resolução aprovada no Parlamento Europeu atacou Cuba duramente, revolvendo velhas acusações que afrontam os princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional, omitindo grosseiramente o criminoso bloqueio imposto pelos Estados Unidos. Chega ao extremo de manter Cuba na ignominiosa “lista de países patrocinadores do terrorismo”, um pretexto do regime norte-americano para agravar o bloqueio genocida contra Cuba, medida extraterritorial com consequências criminosas.
A Ucrânia também esteve em debate. Lula sublinhou a necessidade de trabalhar, rapidamente, para um cessar-fogo e voltou a oferecer a sua mediação. “Para já, nem Zelensky (presidente da Ucrânia) nem Putin (presidente da Rússia) querem falar de paz porque cada um pensa que vai ganhar. Mas vemos um cansaço dessa guerra no mundo, em vários países. Vai chegar o momento em que vai haver paz e terá de haver um grupo de países capazes de conversar com a Rússia e com a Ucrânia”, afirmou. Essa posição se refletiu na declaração política final da cúpula, que incluiu um parágrafo genérico, sem mencionar a Rússia.
A pressão sobre a Venezuela, também vítima de políticas extraterritoriais que violam o direito internacional, resultou numa declaração conjunta do Brasil, França e Colômbia. O documento fala em trabalhar pela organização de eleições “justas e transparentes”, processo que “deve ser acompanhado de suspensão das sanções, de todos os tipos, com vistas à sua suspensão completa”.
Ameaças da carta da UE
Outra questão grave é o protecionismo europeu, abordado por Lulas após a cúpula, em entrevista coletiva, um problema que precisa ser resolvido para que o acordo seja estabelecido com a premissa de “parceria entre iguais”. “A França está muito interessada em proteger os seus produtos agrícolas, as suas pequenas e médias explorações, o seu frango, os seus legumes, o seu queijo, o seu leite e o seu vinho. Tal como a França tem esta primazia de defender, com unhas e dentes, o seu patrimônio produtivo, nós temos interesse em defender o nosso. A riqueza da negociação é que alguém tem de ceder”, disse.
O presidente citou as ameaças da carta da UE, mais um obstáculo no caminho para o acordo. “Em primeiro lugar, não aceitamos a carta adicional da União Europeia. É impossível imaginar que entre parceiros históricos, como nós somos, alguém faça uma carta com ameaças. Nós já estamos preparando a nossa resposta e achamos que a UE vai concordar tranquilamente com ela”, afirmou, ressaltando que o documento será enviado nas próximas duas a três semanas.
Lula fez questão de realçar que a Amazônia brasileira é um “território soberano” e que o governo não o quer transformar “num santuário da humanidade”. “Nós queremos transformar a Amazônia num centro de desenvolvimento verde, queremos partilhar a exploração cientifica com os países que queiram participar”, enfatizou. A bioeconomia é a condição para “dar a nossa contribuição para a preservação do nosso planeta”, acrescentou. “No Brasil, está ficando cada vez mais claro que não se precisa derrubar uma única árvore para plantar mais soja, mais milho. Nós temos mais de 30 milhões de hectares de terras degradadas, que podem ser recuperadas para plantar o dobro do que plantamos hoje”, explicou.