O ângulo reto ferve a noventa graus?
O diplomata Adhemar Bahadian trata do Acordo União Europeia – Mercosul
Não sei se exagero, mas ultimamente tenho ouvido e lido coisas que me parecem deslocadas no tempo e no espaço. Principalmente me chocam certos axiomas frequentemente estampados em publicações de grande circulação nacional, cuja aderência à realidade me parece escorregadia
Ainda outro dia me surpreendi com os rasgados elogios ao Acordo União Europeia – Mercosul como se marcasse uma reviravolta estupenda nas relações comerciais entre os dois blocos econômicos e de particular interesse para o Brasil.
Não custa recordar que o texto deste Acordo foi negociado sob a batuta do então ministro da Economia brasileiro, mais conhecido por seu curioso nome de guerra “posto Ipiranga” que se orgulhava de fechar em dois meses negociações que se arrastavam por vinte anos.
Belo feito a primeira vista. Mas, uma análise um pouco mais detida nos levaria a uma singela constatação: nada no texto do acordo parecia afastar-se das mesmas ideias sempre apresentadas pelos europeus de manter protegidas suas políticas agrícolas e ao mesmo tempo insistir na abertura de nosso mercado aos interesses da indústria e dos serviços da União Europeia.
A primeira reação analítica ao Acordo surgiu do IPEA que mostrou os pífios impactos positivos do Acordo para o PIB brasileiro e assinalou de imediato os riscos para a indústria de transformação nacional. Curiosamente, a advertência do IPEA teve pouca recepção e, por mais incrível que pareça, a preocupação com o desenvolvimento da indústria brasileira mereceu por parte de alguns analistas a qualificação de retrocesso esquerdizante inaceitável. Desde quando defender a industrialização é bandeira da esquerda? Perguntem aos economistas americanos ou franceses ou lisboetas. Não recomendo perguntar a alguns presidentes de Banco Central brasileiro.
Trago este episódio como peça ilustrativa sobre o que me parece uma incompreensível defesa de aberturas comerciais que já foram repelidas por países como os Estados Unidos da América, hoje francamente favoráveis a um revigoramento de sua indústria abalada com os exageros do neoliberalismo fundamentalista iniciado com Reagan e Thatcher.
O que parece ter penetrado de forma inabalável no pensamento de certos ideólogos do chamado comércio livre é a ilusão de que os últimos quarenta anos de doutrinação fundamentalista neoliberal transposta para os manuais do Fundo Monetário internacional, para o Consenso de Washington e outras crendices similares, se efetivamente implementaras, teriam reduzido as disparidades sociais entre os chamados países desenvolvidos e em desenvolvimento, o que está mais do que provado que não aconteceu.
Na realidade, as sucessivas rodadas de negociações comerciais na Organização Mundial do Comércio jamais conseguiram disciplinar minimamente o comércio agrícola internacional e se limitaram a impor sanções diretas ou indiretas aos países em desenvolvimento refratários a um pseudo – comércio livre. E nem mesmo o sistema de solução de controvérsias da OMC teve capacidade de implementar as decisões favoráveis aos países em desenvolvimento.
O que me faz escrever um artigo tão aparentemente óbvio como este é a esperança de que possamos distinguir os verdadeiros interesses nacionais de fórmulas ilusionistas travestidas de doutrinas econômicas inatacáveis. O caldo de pseudo-verdades já nos atrasou profundamente e a confusão entre conceitos a misturar pautas religiosas e de costumes com as de desenvolvimento econômico apenas pode interessar a quem se beneficia financeiramente com o atraso educacional e civilizacional do país.
Daí porque nosso melhor guia nesta hora em que nossa solidariedade nacional ainda se encontra fragilizada é a Constituição de 1988. Comece por ler pelo menos o artigo 5 e veja se desta leitura você não sai mais revigorado. O que aconteceu realmente neste país pode ter sido uma tentativa de golpe de extrema direita, mas muito mais claramente foi um movimento anticonstitucional em frontal ataque a separação dos poderes. E a falsa dicotomia entre direita e esquerda menos esclarece e ilumina do que a subversiva tentativa de substituir o regime democrático por uma volta ao autoritarismo nos moldes dos regimes de cabresto e chicote.
Apenas quando nos dermos conta de que o neoliberalismo nada mais foi do que uma ideologia recauchutada como doutrina econômica poderemos retomar o projeto de Estado Democrático e de Justiça Social inscrito em nossa Constituição. Até lá continuaremos a aprofundar clivagens em nossa sociedade, perdida num debate estéril sobre colorações estereotipadas e falso cientificismo que nos faz acreditar que o ângulo reto ferve a noventa graus. Ou que uma taxa de juros de 13 por cento ao ano ou uma taxa de 400 por cento no crédito rotativo do cartão de crédito não sejam apenas uma forma tolerada de usura. Ou de deboche.
Notas:
1 A análise do Ipea sobre o Acordo União Europeia x Mercosul pode ser encontrada em https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/wp-content/uploads/2023/07/230704_nota_32.pdf
2 Algum espertinho usou minha página no Facebook para solicitar, como se fosse eu, doações financeiras para entidade filantrópica. Até que possa refazer uma página mais segura, suspendi toda e qualquer interação com a referida página inclusive sobre as mensagens nela inscritas.