Bernardo Joffily é o que se define como pessoa polivalente. É jornalista, escritor, ilustrador e artesão. Seu talento como escritor está no livro Barata – confissões, lançado pela Editora Kotter. A seguir, a orelha e a quarta capa da obra:

Cidade do Natal, 1838. As revoltas sacodem o Império, da Farroupilha gaúcha à Cabanagem amazônica, mas não nesta capital de província que é pouco mais que uma aldeia, sem cais, mercado ou cemitério. Ali desterraram, no fim da vida, o médico e jornalista ultrarrevolucionário Cipriano Barata, do Sentinela da Liberdade.

Sem liberdade, sem jornal, sem dinheiro e ainda por cima sem óculos, o velho dita suas amargas Confissões de Barata para um garoto mestiço, que ganhou do vigário local, numa partida de xadrez. Porém, como único médico da província, é chamado a investigar a estranha matança de cavalos havida em uma fazenda próxima.

O mistério seduz o velho rebelde, e o menino que lhe serve de óculos. Impele-os pelo sertão adentro, rastreando indícios. Confronta-os com um mendigo colossal e louro, uma jovem mãe solteira, “reta e pontuda como uma agulha”, um potentado sertanejo que pratica o “direito de pernada”, um velho leproso que conta sua história de amor. Por fim, arrasta-os até os confins da Borborema, onde um drama de fé, esperança e loucura culmina em outra chacina, o Massacre da Pedra Bonita.

O autor assevera que, “histórias e estórias, estas Confissões são invenção, mas não de todo fictícias”, que procurou “não brigar com a verdade histórica, até mesmo aproveitá-la, quando e como pude”. Bernardo Joffily, também jornalista, carioca, 72, tem outros livros publicados, como o Atlas Histórico do Brasil (https://atlas.fgv.br) e traduziu duas dúzias de obras, do albanês e de línguas menos exóticas. No entanto, Barata: Confissões é a sua estreia no território do romance.

Sentinela da Liberdade

Uma rua de minha cidade! É isso que o nome de Cipriano Barata evoca, para muitos de nós: um destino como o de muitos brasileiros, nem sempre ilustres, de que a nossa memória, tanto coletiva quanto individual, pouco ou nada permite resgatar.

Nascido na segunda metade do século XVIII em Salvador, então capital do País, Barata estudou em Coimbra, como muitos outros filhos da elite colonial. No entanto, a formação acadêmica, que lhe deveria garantir boas posições como representante dos interesses da Metrópole na administração local, serviu a propósitos bem outros: lutar por justiça social, por liberdade, pela nossa Independência e soberania.

Tendo participado de muitas das lutas libertárias da época, da Conjuração Baiana à Revolução Pernambucana,  Barata foi combatido e perseguido por suas posições anticolonialistas  e republicanas, inclusive quando atuou como deputado da Província da Bahia na Corte lisboeta e como jornalista do Sentinela da Liberdade, o jornal que fundou em Recife, depois de voltar ao Brasil. Detido por sua oposição sistemática à política de reaproximação com Portugal que caracterizou o início do Império, tornou-se próximo de Frei Caneca, outro brasileiro que a nossa ingratidão colonialista relega a nome de rua. Da prisão, continuou a editar seu jornal, dando-lhe outros nomes à medida em que, por sua rebeldia militante, era transferido para novas fortalezas.

Barata, confissões… surpreende o leitor ao resgatar de seu injusto esquecimento a figura singular de Cipriano Barata, em suas múltiplas facetas: o rebelde, o nacionalista intransigente, o libertário, o jornalista pioneiro. Mas ao envolver sua vida nos tecidos da ficção, como o próprio Barata o fazia, com as roupas de algodão brasileiro com que ostensivamente circulava em Lisboa, Bernardo Joffily o retrata em sua velhice. E o flagra num momento tão confessional como o de Bentinho de Dom Casmurro; e, assim como ele, procurando atar as duas pontas da vida. Em oposição ao ilustre personagem, no entanto, Barata não está aposentado, nem tampouco entregue à casmurrice autocomplacente. Às turras com as limitações da idade, é assistido e emulado por um jovem e vigoroso escudeiro, envolvendo-se em episódios históricos como o de Pedra Bonita, que, de José Lins do Rego a Ariano Suassuna, tanto inspirou nossa literatura modernista.

Boa forma de devolver Cipriano Barata às ruas! E uma excelente oportunidade para que, — da situação de Colônia, de um lado, a nossas lutas libertárias contemporâneas, de outro, – o leitor junte as pontas da justiça social em solo brasileiros, desatadas pelo nosso esquecimento.