Por tudo, o livro Barata – confissões, de Bernardo Jofilly, precisa ser lido. Por sua originalidade, pela erudição, seriedade e consistência do autor, porque ele escreve bem.

Por Osvaldo Bertolino

Num evento na Livra Anita, na sede nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), em São Paulo, na noite de sexta-feira (25), foi lançado o livro Barata – confissões, do jornalista e escritor Bernardo Joffily. Em cento e cinquenta páginas, na obra, publicada pela editora Kotter, o autor, numa narração imaginaria na forma de conversa fluente, traduz o pensamento de Cipriano Barata, que passou doze anos no cárcere pelo “crime” de desafiar e denunciar as mazelas do regime, na luta pela República. Bernardo vai nas memórias de Barata para trazê-las na forma de transcrições, uma revisita do personagem, ditando o que pensava.

E assim a história adentra ao diálogo que, pelas palavras de Barata, parte de mistérios de um cérebro de enxadrista. No desfile narrativo, surge um Barata sendo recebido em Natal, Rio Grande do Norte, partindo de Pernambuco, com seu mundão de livros e versos que anotara das cantorias das feiras do Recife e Olinda. A história chega à imagem rebelde de Natal, retratada pela ação de André de Albuquerque Maranhão, figura histórica que lutou na Revolução Pernambucana de 1817 e certa vez esteve amarrado no pelourinho local.

Nas páginas que se seguem, surge a Natal daquele tempo, com Barata vivendo a vida do povo. Genipabu estava ali, como lembrança de um dos confrontos mais sangrentos da guerra da Independência do Brasil. Barata dialoga com outros personagens, perpassando etapas históricas como os combates que fizeram emergir a figura combativa de Zumbi dos Palmares. Interpreta tudo aquilo pelo que está na descrição de Barata, apresentado como filho do Século das Luzes.

Escritor retratista

Ainda que nascido em um covil de crendices de três continentes, como fora e ainda era conhecida a cidade de São Salvador de Todos os Santos, cultuava a razão, e apenas ela. Na Europa, quando jovem, bebera dos escritos de Montesquieu, de Rousseau, do zombeteiro Voltaire e do exaltadíssimo Marat. Com essas lentes, Barata aparece no livro em conversas interativas, transpondo para suas impressões o passado como guia de seus ideais.

Bernardo faz essa costura mostrando suas habilidades de escritor retratista com as palavras. A qualidade literária do livro é outro convite à leitura. Não é pouca coisa. Poucos podem reduzir o escrever bem a um ofício simples, como pretendia o poeta chileno Pablo Neruda. “Escrever é fácil. Você começa com letra maiúscula, termina com ponto final e no meio coloca as ideias”, dizia ele.

Quando se fala em redigir bem um texto não se pretende dizer que é necessário escrever com grande estilo. Trata-se apenas de usar instrumentos básicos para a comunicação. Textos absolutamente pobres de ideias e com frases, sentenças e orações desconexas, de cara perdem a importância. Muitas vezes, o português se transforma numa língua inteiramente desconhecida de qualquer pessoa nascida e criada no Brasil. É o que se chama de escrever para si próprio, não para quem vai ler. Redigir um bom texto dá trabalho mesmo. Exige conhecimento, atenção, concentração, esforço, tempo, dedicação, treino. E paciência para começar de novo muitas vezes.

No livro Barata – confissões existe tudo isso e, de quebra, o convite à reflexão sobre o que foi o Brasil pensado pelo personagem e outros tantos, como Tiradentes, Felipe dos Santos, os Alfaiates da Bahia de 1798, os republicanos do Nordeste de 1817 e 1824, movidos pelas ideias da Revolução Francesa e da Independência Americana, que legaram para o povo brasileiro histórias de valentes, combativos, que tinham um norte definido.

O mendigo e o céu

De Barata podemos seguir para outras paragens, conhecendo o pensamento dos que levantaram o ideal republicano, processo histórico ainda em curso na luta pela superação da correlação das classes dominantes que partilham entre si o poder. Seria outro capítulo que daria sequência a esse livro de Bernardo. Um desafio para se entender as idas e vindas daquele período, vistas sobretudo na réplica enérgica de Floriano Peixoto às vacilações do marechal Deodoro da Fonseca.

Os florianistas se consideravam, com razão, os “revolucionários” do novo regime. Eram os burgueses e pequeno-burgueses radicais, predominantes nas cidades, sobretudo Rio de Janeiro. Foram eles que, pela boca de Floriano Peixoto, inebriados pela vitória, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país.

Substituiu o impulsivo Floriano o “moderado” Prudente de Morais, o retrato perfeito da conciliação dominante. O “moderado” foi impiedoso ao esmagar a revolta camponesa de Canudos, um estágio caraterizado pelo historiador Pedro Calmon como o momento em que o país varrera de si “a fantasia dos dogmas franceses”. Uma República ainda em contradição antagônica, por suas raízes e pelos avanços civilizatórios da Revolução de 1930 e das constituições de 1946 e 1988, bem explicada no diálogo do mendigo e o céu, de um dos romances de Machado de Assis:

“Afinal, não me hás de cair em cima.”

“Nem tu me hás de escalar.”