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BRICS e os tentáculos do socialismo de mercado no Sul Global

29 de agosto de 2023

Expansão do BRICS pode ser interpretada como mais um acúmulo de força para o desenvolvimento do socialismo de mercado chinês

Por Theófilo Rodrigues

Na última quinta-feira (24/08), a Cúpula do BRICS – bloco de nações formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – anunciou em Johannesburgo a ampliação de seus sócios. Foram aprovados para ingressar no grupo seis novos países: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã.

A declaração conjunta feito pelo bloco não deve ser compreendida como uma trivial questão conjuntural de comércio internacional. Mais do que isso, trata-se de um avanço estrutural do Sul Global na geopolítica, sob liderança da China e de seus aliados originais do BRICS. Sob esse registro, merece atenção a declaração de apoio da Cúpula para uma reforma do Conselho de Segurança da ONU que inclua Brasil, Índia e África do Sul.

Em última instância, o evento também pode ser interpretado como mais um acúmulo de força para o desenvolvimento do socialismo de mercado chinês, algo que causa apreensão às nações dirigentes do capitalismo global – leia-se, Estados Unidos da América e União Europeia.

Mas como chegamos nesse cenário e quais as perspectivas que se apresentam para as próximas décadas?

Cooperação Sul-Sul: de Bandung ao Sul Global

A ideia de que países periféricos no sistema político internacional deveriam articular esforços conjuntos remete a meados do século XX. Como bem registra Eric Hobsbawm em sua Era dos extremos, os países em desenvolvimento não foram levados em consideração quando se desenhou a ordem econômica internacional, na conferência de Bretton Woods em 1944.

Em 1955, a Conferência de Bandung foi, provavelmente, um importante esforço nessa direção quando 29 países asiáticos e africanos – o chamado terceiro mundo – uniram-se em contraponto aos interesses dos Estados Unidos e da União Soviética – primeiro e segundo mundo, respectivamente.

Esse movimento de países do terceiro mundo, que passaram a se definir como “não alinhados”, cresceu nos anos seguintes com a incorporação da América Latina. Na década de 1960, outro passo importante foi a criação do Grupo dos 77, formado por esses países em desenvolvimento no interior da ONU.

Com o fim da Guerra Fria, o termo Sul Global passou a ser adotado com maior frequência no lugar de terceiro mundo. Trata-se, evidentemente, de um conceito político e não geográfico. Afinal, o México e a Rússia estão geograficamente posicionados no Norte, mas fazem parte do Sul Global. Já a Austrália está no hemisfério Sul, mas pertence ao Norte Global.

A criação do BRICS

No início dos anos 2000, economistas passaram a adotar a sigla BRIC para se referirem às quatro maiores potências econômicas do Sul Global – Brasil, Rússia, Índia e China. O conceito saiu do papel em 2006, quando os quatro países se reuniram pela primeira vez com o objetivo de estabelecer objetivos em comum. Em 2011, a África do Sul se juntou ao grupo e a sigla passou a ser conhecida como BRICS.

Com a crise econômica de 2008 e a percepção de que os principais instrumentos do sistema financeiro internacional – Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial – não estavam aptos para contribuir com o desenvolvimento do Sul Global, o BRICS compreendeu a necessidade de dar um passo adiante em sua institucionalização. E um passo fundamental para a institucionalização do BRICS foi a criação, em 2014, do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), com sede em Xangai, na China. Atualmente, o NBD é presidido pela ex-presidenta do Brasil, Dilma Rousseff.

Há, portanto, duas importantes diferenças entre o movimento do Sul Global que o BRICS aspira hoje e aquele dos países do velho terceiro mundo do G-77. Em primeiro lugar, a pretensão de uma articulação maior, como se segundo e terceiro mundo agora fossem partícipes de um mesmo processo. Em segundo lugar, o indicativo de uma maior institucionalização do movimento, tendo o NBD como instrumento financeiro basilar. Por tudo isso, pode-se avaliar que a ideia de Sul Global do BRICS é uma etapa qualitativamente superior nessa longa trajetória que teve início em Bandung.

O que significa a nova expansão dos BRICS?

Há um significado próprio para a entrada de cada um dos seis países no bloco agora em 2023. Para a China, é fundamental consolidar a aproximação com os maiores produtores de petróleo do planeta que estão sob a área de influência dos EUA: Arábia Saudita e Emirados Árabes.

O Irã não está sob a influência dos EUA, mas é importante produtor de petróleo, o que interessa para o BRICS. O antiamericanismo do país na região interessa particularmente para a Rússia. Ademais, para o próprio Irã é crucial a aliança para sair do atual isolamento político.

Mais do que isso, para a China há o interesse em viabilizar estruturalmente a Nova Rota da Seda, caminho de comunicação comercial entre a China e a Europa. Para isso, esses países do Oriente Médio são fundamentais, bem como o Egito, país com a terceira maior população da África e que possui localização estratégica no norte do continente para o comércio alcançar o Mar Mediterrâneo pelo Canal de Suez.

Já a Etiópia, segunda maior população da África, entrou por um pedido da África do Sul. O mais intuitivo, no entanto, seria imaginar que a Nigéria fosse o país escolhido, por ter a maior população do continente, um grande PIB e por também ser grande produtora de petróleo. Mas, talvez o fato de estar mais distante do empreendimento imediato da Nova Rota da Seda tenha pesado contra o seu desejo de integrar o BRICS. Sob esse aspecto, a Etiópia está mais próxima do interesse comercial chinês. Além disso, a Etiópia sedia hoje a União Africana, organização internacional que promove a integração dos países do continente africano.

A entrada da Argentina deve ser considerada uma reivindicação do Brasil. A diplomacia brasileira pressionou pela integração do país vizinho como forma de fortalecer o comércio na região sul-americana. Resta, no entanto, uma dúvida. Os principais candidatos de extrema-direita à presidência da Argentina, leia-se Javier Milei e Patricia Bullrich, são contrários à decisão e já anunciaram que, em caso de vitória, retirarão o país do bloco. Quem ganhou com a entrada da Argentina foi o candidato do peronismo Sergio Massa, ministro da Economia que poderá capitalizar eleitoralmente a expectativa de retorno econômico que o país terá. A escolha da Argentina surpreendeu alguns analistas, que imaginavam que o México, pela relevância econômica e política que possui na América Latina, seria o país acolhido pelo bloco.

De uma perspectiva ambiental, a expansão sinalizou para um enorme desafio. Em abril deste ano, o tão aguardado encontro entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Xi Jinping, na China, culminou em uma série de acordos bilaterais estratégicos para a transição energética e para a economia verde. Foi um indicativo claro de que os dois países concordam com a necessária agenda do desenvolvimento sustentável para o século XXI. A entrada de grandes produtores de petróleo no BRICS, todavia, exige que Brasil e China empreendam esforços para que esses países também se comprometam com o enfrentamento das mudanças climáticas. Trata-se de um desafio complexo, mas que se for conquistado, será uma grande contribuição para a preservação do planeta.

Por fim, do ponto de vista político, a expansão anunciada em Johannesburgo mostra que o BRICS não tem nenhum compromisso no curto prazo com a mudança de regimes. Entre os 11 países sócios, há uma democracia socialista (China), cinco democracias burguesas (Brasil, África do Sul, Argentina, Etiópia e Índia) e cinco autoritarismos burgueses (Irã, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Rússia). E não há nenhuma expectativa imediata de efeitos políticos internos derivados da entrada no bloco nesses países. Mas e no longo prazo?

Expansão do socialismo de mercado chinês?

O Brasil teve uma vitória parcial com a Argentina, a África do Sul com a Etiópia, a Rússia com o Irã, mas a verdade é que a China foi a grande beneficiada por esse salto estratégico do BRICS.

Além de novos alargamentos para incorporar outros países do Sul Global, as próximas Cúpulas do BRICS deverão aprofundar o debate sobre a desdolarização das negociações comerciais entre seus sócios, o que será mais um abalo para a hegemonia estadunidense, que já se encontra em declínio relativo.

O socialismo de mercado chinês é baseado no planejamento de longo prazo e na participação estatal nos negócios comerciais do país. Faz parte da estratégia chinesa de desenvolvimento a abertura de novas vias de comércio com o mundo, por meio da Nova Rota da Seda. Como já foi dito, a entrada da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes e do Egito, mas também do Irã e da Etiópia, contribuem para a materialização da Nova Rota da Seda como um caminho que vai da China até a Europa. É intuitivo imaginar que, com a solidificação da Nova Rota da Seda, a China asfaltará o caminho para a consolidação de sua hegemonia econômica global até o fim deste século.

No século XVI, o mercantilismo, ou capitalismo comercial, abriu novas rotas comerciais marítimas da Europa para a América e para a África. Ao longo dos séculos, esse modelo econômico capitalista europeu foi sendo exportado para essas regiões do planeta.

Essa história nos deixa uma pergunta: será que, assim como as grandes navegações do passado, a Nova Rota da Seda permitirá até o fim do século XXI a expansão do socialismo de mercado chinês como modelo econômico e político para outras nações do Sul Global? Eis a pergunta de R$ 1 milhão; eis o sonho dos comunistas.

Theófilo Rodrigues é cientista político.