Níger: neocolonialismo e questão nacional no Sahel
Luccas Gissoni e Paris Yeros explicam o significado do golpe militar no Níger
Por Luccas Gissoni e Paris Yeros*
Após o golpe militar ocorrido no Níger no final do mês de julho, o ex-presidente Mohamed Bazoum foi deposto e um novo governo foi formado e chefiado por Abdourahmane Tchiani. Em meio a ameaças de intervenção militar multilateral pela Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) com apoio da União Africana, o país e a região da África Ocidental e do Sahel como um todo – que sempre se destacou por ser ignorada pela mídia hegemônica, mesmo em comparação com o restante do continente africano – aparecem, de forma inédita, com destaque no noticiário. Governos do norte global afirmam-se preocupados com o desenvolvimento da situação, pois o golpe teria sepultado “uma das últimas democracias da região” e poderia “abrir espaço para a insurgência de grupos radicais e milícias”. Diante de uma conjuntura como essa, é dever de qualquer militante anti-imperialista perguntar-se: quais forças estão em jogo?
Para responder a essa pergunta, é imprescindível entender a trajetória correspondente e que nos trouxe ao presente. A região ocupada hoje pela República do Níger foi, durante o período pré-colonial, central no comércio transaariano e na formação dos Impérios Songai e do Mali. A colonização das Américas subjugou a região na “periferia da periferia”, como diria o economista egípcio Samir Amin (1972), para fins de fornecer trabalho escravizado através das feitorias coloniais localizadas na costa da África Ocidental. Parte desses trabalhadores e trabalhadoras escravizadas foram sequestradas e levadas ao Brasil, sobretudo à Bahia.
No final do século XIX, a colonização avançou em direção ao interior da África. Ela não foi, contudo, idêntica em todas as regiões do continente. Amin classificou o tipo de colonização ocorrido na África Ocidental como economia do comércio colonial. A “África da economia do comércio colonial”, segundo ele, estava marcada por um forte contraste entre a costa, acessível ao mundo externo e relativamente mais rica, e a hinterlândia, cuja principal função era, mais uma vez, servir de reserva de trabalho à região costeira e, além disto, mercado para seus produtos. Importante é perceber, também, que em nenhuma das duas sub-regiões da África Ocidental a colonização se caracterizou por uma imigração significativa de colonos brancos, ao contrário do Magrebe (especialmente a Argélia), imediatamente ao norte da África Ocidental Francesa (AOF), federação colonial da qual o Níger era parte, ou da África Austral (África do Sul, Zimbábue, Namíbia) ou do Leste (Quênia).
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, há um forte avanço dos movimentos anti-coloniais em todo o continente, mas seus resultados também variam de acordo com a região. Nas colônias de povoamento europeu e de Portugal, a oposição dos colonos à libertação nacional resultou em guerras: a vitória teve de ser conquistada pela força e ocorreu em 1962, no caso da Argélia, e somente em 1975, em Moçambique e Angola, 1980, no Zimbábue, 1990, na Namíbia e 1994, na África do Sul. No caso da África Ocidental – com exceção da colônias portuguesas de Guiné-Bissau e Cabo Verde – a ausência dos colonos possibilitou que as potências colonizadoras realizassem, muito mais cedo, uma saída negociada que resguardasse seus interesses. Estes incluíam a balcanização da região, isto é, a divisão das imensas colônias, sobretudo francesas, em vários países menores e mais facilmente controláveis. Foi assim que a AOF transformou-se em nove países independentes, em 1960, entre os quais o Níger. Além disto, a França manteve o acesso privilegiado de suas empresas aos mercados e recursos naturais da região e, significativamente, manteve o controle monetário sobre as ex-colônias: oito dos nove países surgidos da AOF continuaram a utilizar o franco CFA como moeda, tendo, inclusive, a Guiné-Bissau a eles se juntado em 1994.
Essa situação caracteriza o que Kwame N’Krumah (1967) chamou “neocolonialismo”, uma espécie de recuo através do qual o imperialismo abre mão do controle político direto sobre os povos e os territórios, em troca da manutenção da dominação econômica sobre eles, da exploração de seu trabalho e da drenagem de seus recursos. Trata-se, em suma, da possibilidade do capital manter sobre os povos africanos e demais povos do sul aquilo que Marx (2017) chamou “acumulação primitiva” e que, segundo Rosa Luxemburgo, constitui a marca do imperialismo e a outra face da exploração pelo capital do trabalho livre.
N’Krumah, primeiro presidente de Gana, estava olhando particularmente para a situação da África Ocidental, após a independência política, quando formulou o conceito de neocolonialismo. O período neocolonial corresponde àquele em que as potências imperiais se deram conta de que a independência de suas colônias era inevitável; melhor seria mitigar seus efeitos. Não por acaso, antecede por pouco à ascensão do neoliberalismo e ao início da ofensiva que acabaria por prender os países do Terceiro Mundo em dívidas e derrotar o sistema soviético. Em particular, o neoliberalismo tem sido uma forma do capital enfrentar a crise gerada pela queda da taxa de lucro que se tornou crônica na fase do capitalismo monopolista .
Sem uma solução definitiva para a crise, o capital dobrou a aposta pela liberalização do sistema financeiro e pelo avanço das suas empresas monopolistas. Esta é fase do neocolonialismo tardio (Yeros e Jha 2020), marcado pela escalada da acumulação primitiva e da guerra e pelo desgaste da soberania nacional nas periferias. Conforme afirmado na ocasião:
“A acumulação primitiva adquire diversos formatos: da mais visível apropriação de terras, água, energia e florestas (…); à privatização dos bens comuns, serviços públicos e material genético; ao aprofundamento da superexploração pelo deslocamento dos custos da reprodução social para as próprias reservas de mão-de-obra em expansão, para as mulheres em particular e as camadas sociais mais oprimidas” (YEROS; JHA, 2020, n.p.).
Observa-se também que o desgate da soberania nacional neste período resulta em maior espaço para o avanço de forças reacionárias e fundamentalistas, como Boko Haram, no seio destas sociedades, como também na fragmentação de estados por rebeliões armadas e invasões imperialistas. Um dos desfechos deste período é o retorno de um “semicolonialismo” moderno, que Mao Tsetung (1975) define pelo desencadeamento de guerras de agressão contra os países do sul, assinatura de tratados desiguais que dão ao imperialismo o privilégio de estacionar forças militares e exercer a jurisdição consular nos países agredidos, maior controle econômico, entre outros..
“Destacam-se, assim, a dominação política parcial (incompleta em relação à dominação colonial plena, no entanto mais direta se comparada aos países independentes submetidos ao neocolonialismo ou à dependência), a aliança entre o imperialismo e os setores mais reacionários das sociedades periféricas (daí o caráter contraditório da dominação que a um tempo fomenta e impede o desenvolvimento capitalista) e a edificação de semelhante arranjo a fim de se estabelecer sua exploração econômica e comercial” (GISSONI, em fase de elaboração).
Tais características, como se pode observar, vêm sendo reproduzidas pelo imperialismo de forma cada vez mais intensa e cada vez mais frequente desde a primeira Guerra do Golfo em 1991, até a invasão da Líbia pela OTAN, uma catástrofe de maior consequência para a segurança e estabilidade da região que inclui também o Níger.
A região do Sahel – faixa territorial ao sul do Saara que se estende do Oceano Atlântico ao Mar Vermelho – e regiões contíguas foram submetidas a rebeliões armadas transfronterícias por grupos que se fortaleceram pelo colapso da Líbia e passarem a interagir com forças fundamentalistas existentes. Mali, Burkina Faso, Níger, Nigéria, Camarões, Chade, e Sudão têm sido convulsionados por forças rebeldes e reforçado o círculo vicioso de instalação de bases militares norte-americanas, francesas e de outros países europeus. No contexto combinado da rapina imperialista e de suas contradições internas, segue-se à fraturação de Estados e sociedades em série. No entanto, o desenvolvimento dessas mesmas contradições, marcado pelo ascenso da luta popular, também tem levado a um rearranjo das forças no poder e a uma ruptura – ao menos por ora – do pacto neocolonial com o capital monopolista. Os agentes principais das rupturas têm sido frações nacionalistas radicalizadas no interior de exércitos que até agora se encontravam inteiramente subservientes às forças imperialistas.
Portanto, a militância anti-imperialista não deve ter dúvidas quanto ao dever de solidariedade com essas experiências. Aonde elas levarão, contudo, ainda não está claro. O Estados radicalizados nesse sentido são instáveis e sempre podem recair a uma repactuação com o capital monopolista e o imperialismo (MOYO; YEROS, 2011); podem, por outro lado, aprofundar a radicalização e caminhar no sentido de um federalismo pan-africanista na região. Podem até sofrer uma ocupação direta do imperialismo (ou por seus procuradores regionais), cujos efeitos tendem a se espalhar, como aliás mostra o caso líbio que teve grande influência na fraturação dos Estados sahelianos. De todo modo, podemos analisar da realidade concreta os elementos mais significativos.
Em particular, se voltarmos às macro-regiões do continente africano, veremos que as décadas de guerra de libertação nacional ocorridas na África Austral geraram trajetórias de radicalização sustentadas, que têm resistido à agressão imperialista. Nesse sentido, salta aos olhos o contraste com as trajetórias de fraturação da África Ocidental, onde a Cedeao tem atuado como procuradora do imperialismo ao ameaçar intervir militarmente no Níger: no sul, a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês) vem construindo a única experiência de tratado de defesa mútua no sul global, e é também a única região do continente livre de bases militares das potências imperiais. Ao norte do Sahel, também a Argélia constrói um projeto nacional relativamente firme; não por acaso, posicionou-se em defesa do novo governo nigerino.
Ao compararmos essas trajetórias, percebemos que o legado institucional das lutas de libertação foi a existência de partidos de massa capilarizados que encampam a bandeira da questão nacional. Na ausência de estruturas desse tipo, não restou aos povos sahelianos alternativas políticas viáveis além da intervenção militar nacionalista. Esta não deve, evidentemente, ser condenada a priori: não se pode deduzir o conteúdo de um processo político a partir de sua forma. Não obstante, fica a pergunta: serão esses povos, dirigidos pelas suas Forças Armadas, capazes de tocar um projeto sustentado que conduza à libertação nacional?
*Luccas Gissoni é mestre em economia política mundial pela UFABC e doutorando pelo mesmo programa. Também professor de história da África e formação política na Uneafro Brasil e formador do núcleo de economia política e desenvolvimento da Escola Nacional João Amazonas do PCdoB.
Paris Yeros é Professor Adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC), membro dos Bacharelados em Ciências Econômicas e Ciências & Humanidades e da Pós-graduação em Economia Política Mundial, da qual é Coordenador. Paris é ainda editor do periódico científico internacional “Agrarian South: Journal of Political Economy” (ed. Sage-Índia) e formador do núcleo de economia política e desenvolvimento da Escola Nacional João Amazonas do PCdoB.
BIBLIOGRAFIA
AMIN, Samir. Underdevelopment and Dependence in Black Africa – Origins and Contemporary Forms. The Journal of Modern African Studies, v. 10, n. 4, 1972, p. 503-524.
GISSONI, Luccas. Trajetórias socialistas de desenvolvimento na Ásia comparadas: projetos nacionais de desenvolvimento na China, Coreia e Vietnã. Tese (Doutorado em Economia Política Mundial) – Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, em fase de elaboração.
LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do imperialismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
MAO Tsetung. A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China. Dezembro de 1939. Marxists Internet Archive. Fonte: Obras Escolhidas de Mao Tsetung, Pequim, 1975, Tomo II, p. 493-543. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/mao/1939/12/revolucao.htm>. Acesso em: 28 ago. 2023.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
MOYO, Sam.; YEROS, Paris. The fall and rise of the national question. In: Reclaming the nation: The return of the national question in Africa, Asia and Latin America. London: Pluto Press, 2011, p. 3-28.
N’KRUMAH, Kwame. Neocolonialismo: Último Estágio do Imperialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
YEROS, Paris; JHA, Praveen. Neocolonialismo Tardio: Capitalismo Monopolista em Permanente Crise. Trad. Kenia Cardoso. Agrarian South, 27 maio 2020. Disponível em: <https://www.agrariansouth.org/2020/05/27/neocolonialismo-tardio-capitalismo-monopolista-em-permanente-crise/>. Acesso em: 28 ago. 2023.