A criminalização da política feita pela imprensa está de volta
Imprensa acusa partidos políticos de não prestarem contas de recursos públicos. Mas a própria imprensa recebe milhões em recursos públicos sem que a sociedade saiba.
“Partidos gastam mais do que comprovam para a Justiça Eleitoral” foi o título da matéria publicada pelo Estadão na última quarta-feira (13/09). No dia seguinte, O Globo anunciou em outra matéria: “Do PCdoB ao Novo, 33 de 34 partidos não entregam prestações de contas corretamente”. O tom adotado pelos dois jornais foi praticamente o mesmo: os partidos políticos estariam fazendo algo de errado com os recursos públicos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário. Para o leitor desavisado, ou melhor, para o leitor cuja consciência é formada há anos por essa mesma linha editorial, não restam dúvidas: os partidos políticos, que são todos iguais, estão mais uma vez envolvidos em desvios.
As duas matérias foram construídas a partir de releases que lhes foram enviados por uma ong chamada “Movimento Transparência Partidária”. Essa ong analisou os dados no TSE e concluiu que dos 34 partidos políticos em atividade no país em 2022, 33 apresentaram dados errados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em suas prestações de contas.
Mas será isso mesmo? Se os dois jornais tivessem consultado o TSE, saberiam que não há nada de estranho ou ilegal nesse processo. A prestação de contas dos partidos funciona da mesma forma há anos. Após uma determinada eleição, os partidos possuem até o dia 30 de junho do ano seguinte para incluírem no Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA) os comprovantes de seus gastos eleitorais. A Justiça Eleitoral tem então um prazo de até cinco anos para julgar esse processo. Entre o dia 30 de junho e a data do julgamento, os partidos podem fazer ajustes – entregar uma nota fiscal que tenha faltado, retirar uma outra que tenha sido duplicada erroneamente, enfim, correções normais em qualquer processo de prestação de contas. Tudo dentro da lei.
Mas o Estadão ignora esse processo, que é aceito pelo TSE, e afirma que “as siglas têm a possibilidade de ir “consertando” as declarações no curso do processo, sem que sofram sanções por isso – a ponto de milhões de reais não terem uma destinação clara”. Ou seja, o jornal dá entender que os partidos não prestam contas.
No caso do PCdoB, os jornais dizem que o partido” não comprovou nem um real”. Isso não é verdade. Pelo contrário, o PCdoB prestou sim, conta de sua movimentação financeira no ano de 2022, entregando à Justiça Eleitoral em 30/6/2023 às 12:23:24 a documentação completa, composta por 3.124 documentos comprobatórios. Bastaria que os jornais entrassem no Sistema de Prestação de Contas Anual da Justiça Eleitoral para conferir a informação. No entanto, reproduzir o release sem apurar os fatos parece ter sido mais fácil. (Clique aqui para conferir o link oficial do TSE que contém toda a documentação apresentada pelo PCdoB).
Foto: protocolo de Juntada de documentação comprobatória do SPCA – Sistema de Prestação de Contas Anual da Justiça Eleitoral – com data de 30/6/2023 às 12:23:24 com 3.124 documentos comprobatórios.
Não é exatamente um problema que organizações da sociedade civil – ongs e imprensa, por exemplo – cobrem que a Justiça Eleitoral e os partidos sejam mais céleres na prestação de contas. Isso faz parte da vida democrática. De fato, é muito importante que a sociedade civil esteja presente na esfera pública. O que não pode ser aceito é que os fatos sejam manipulados para construir uma narrativa que não condiz com a realidade. Infelizmente, esse parece ter sido o caso.
A imprensa como aparelho ideológico de Estado ou aparelho privado de hegemonia
Seguindo os passos dados por Marx e Engels na Ideologia alemã, o italiano Antônio Gramsci e o argelino Louis Althusser formularam os conceitos de aparelho privado de hegemonia e aparelho ideológico de Estado, respectivamente. Os dois autores entendiam que a ideologia dominante em cada formação social, ou seja, a forma quase consensual como as pessoas pensam sobre determinados aspectos, é forjada por certos aparelhos. Na Idade Média, a igreja cumpriu esse papel. No capitalismo dos séculos XIX e XX, diz Althusser, coube à escola essa tarefa. Para atualizarmos essa linhagem teórica, poderíamos dizer que desde fins do século XX tem sido a grande imprensa a principal responsável por essa consolidação das ideias dominantes.
Contudo, para que a grande imprensa seja o aparelho principal de conformação de ideologia é preciso que ela não tenha concorrentes. É por isso que um sistema partidário frágil é funcional para os interesses dessa imprensa.
Qual a mudança partidária que precisamos?
O “Movimento Transparência Partidária”, que orientou a matéria do Estadão e do Globo, parte de uma premissa correta, qual seja, a de que há uma distância entre os partidos políticos e a sociedade. O problema é que a solução ingênua apresentada pelo movimento – mais rigor na prestação de contas – não resolverá a questão.
O Brasil possui um sistema eleitoral que, infelizmente, não contribui para um sistema partidário mais forte. Mais do que rigor na prestação de contas, o que o Brasil precisa é de um sistema eleitoral baseado no sistema proporcional de lista fechada com alternância de gênero. Uma ação como essa não apenas ampliaria a participação das mulheres na política, como também garantiria mais força ideológica e programática para os partidos.
Além disso, seria bem-vinda uma reforma no sistema de financiamento partidário de modo a garantir que todos os partidos políticos registrados no TSE recebessem o mesmo valor do Fundo Eleitoral.
Qual a mudança no financiamento da imprensa que precisamos?
Mas a mudança necessária para a radicalização da democracia brasileira não passa apenas pelos partidos. A imprensa também precisa mudar. Hoje, os grandes veículos de comunicação sobrevivem com fartos recursos públicos recebidos por meio das verbas oficiais de publicidade.
Para termos uma pequena ideia desse montante, só o Grupo Globo recebeu entre 2000 e 2016 cerca de R$ 10,2 bilhões da União (veja aqui).
É por essa razão que especialistas defendem que haja uma desconcentração das verbas oficiais de publicidade do governo, de modo a retirar das grandes empresas de comunicação e redistribuir para as pequenas que conformam a chamada mídia alternativa (Veja aqui).
Ou seja, a grande imprensa reclama dos partidos, mas ela própria recebe milhões por ano de recursos públicos sem prestação de contas para a sociedade. Seriam dois pesos e duas medidas?
Além disso, essa mesma grande imprensa conseguiu colocar um jabuti na legislação brasileira. De acordo com o Art. 99 da Lei das Eleições, “as emissoras de rádio e televisão terão direito a compensação fiscal pela cedência do horário gratuito previsto nesta Lei”. Isso significa dizer que o governo paga para que as empresas de rádio e televisão transmitam o horário gratuito eleitoral dos partidos. Ora, se essas empresas são detentoras de concessões públicas, elas não deveriam receber nada pelo horário gratuito eleitoral. Por óbvio, a transmissão deveria ser uma obrigação contratual. (Clique aqui para ver como a lei criou esse absurdo gatilho de repasse de dinheiro público para as empresas de comunicação).
Em síntese, poderíamos dizer que as matérias do Estadão e do Globo inverteram completamente a realidade. Essas empresas de comunicação, que vivem de recursos públicos sem prestar contas para a sociedade, acusam cinicamente os partidos políticos de fazerem exatamente aquilo que elas próprias fazem. A democracia brasileira certamente ganharia mais se tivéssemos um sistema de empresas de comunicação mais transparente, diverso e plural. Talvez seja o caso de os partidos políticos insistirem mais nessa direção. Por um lado, mudando a Lei das Eleições no Congresso Nacional. Por outro lado, redistribuindo as verbas oficiais de publicidade.
Theófilo Rodrigues é cientista político.