Por Osvaldo Bertolino

Em busca de informações para outros trabalhos, passei a tarde da quarta-feira, 13 de setembro de 2023, numa histórica conversa com o jornalista Carlos Alberto Azevedo. Saí de sua casa, na região do Butantã, zona Oeste paulistana, carregando três alentadas pastas com as marcas do tempo, abarrotadas de preciosidades da história da Ação Popular (AP) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Depois que tirei essa foto da matéria, ele disse: “O tempo passa e a gente vai ficando com cara de dinossauro.” A tirada não tem a ver com as ideias, bem joviais, apesar da cáustica e histórica campanha anticomunista. Éramos dois dinossauros, ele com muito mais bagagem.

Eu, mesmo acossado pelo tempo, pressionado pelo dever de estar de volta à base de trabalho para auxiliar na transmissão pela TV Grabois do primeiro debate do ciclo sobre o projeto de desenvolvimento nacional promovido pela Cátedra Claudio Campos da Fundação Maurício Grabois – organizado pelos dirigentes do PCdoB Rosanita Campos e Nilson Souza –, com a preocupação de ter de cruzar São Paulo próximo do seu intransitável horário de pico da tarde, aproveitei ao máximo. Assumimos o compromisso de retomar a conversa, sem o imperativo do passo apressado.

Azevedo faz parte dos personagens com contribuição à história numa dimensão que não corresponde ao que é conhecido. Daqueles que se enquadrariam na categoria que o histórico líder soviético Joseph Stálin teria definido em uma recepção no Kremlin após a vitória contra o nazifascismo – segundo Diógenes Arruda Câmara em seu livro A educação revolucionária do comunista – como “pequenos parafusos da imensa máquina”, sem os quais os marechais e comandantes muito pouco valeriam. “Gostaria de beber à saúde das pessoas simples e modestas”, teria dito Stálin.

Faço a ressalva de que Azevedo não é um parafuso, mas parte fundamental da engrenagem, um pouco daquilo que se conta na lenda da alavanca e do ponto de apoio para mover o mundo, de Arquimedes. No caso, ele moveu um setor importante da resistência à ditadura militar – o jornal Libertação, da AP, que circulou de 1968 a 1975, fazendo o elo entre uma das mais decisivas militâncias daquele período, alavanca da transição para o PCdoB num período em que a barbárie do regime atingiu o ápice.  

Propriedade rural 

A conversa merecia um brinde, nem que fosse com a água gelada diligentemente servida por ele. Não houve o brinde, mas fizemos uma espécie de reverência aos que perfilaram na dura luta contra o fascismo da ditadura militar, ao passar por publicações da AP e do PCdoB que saíram de suas elaborações. Preciosidades como os primeiros exemplares do Libertação, concebido, no começo de 1968, na região de Contagem e Belo Horizonte quando fermentavam as condições para a greve operária que desafiou o regime ditatorial. “Era uma casa isolada no meio do mato, no fim de uma estrada enlameada”, recorda. Tem até um bilhete manuscrito de Haroldo Lima, um dos principais dirigentes da AP e do PCdoB, com uma pequena observação sobre o jornal.

A maior parte do primeiro número, segundo ele com tiragem de mil exemplares – há quem diga que era de cinco mil –, foi distribuída na Praça da Sé em 1º de maio de 1968, Dia Internacional dos Trabalhadores, num ato de protesto em que o governador paulista, Roberto Costa de Abreu Sodré, foi posto para correr depois de ser atingido na testa por uma pedra. Além de redigir a maior parte dos textos, Azevedo imprimiu, montou (num mimeógrafo a álcool) e transportou a primeira edição em seu Fusca.

Ele tinha experiência no jornalismo. Foi repórter em publicações como A Hora, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Diário da Noite, O Cruzeiro e Quatro Rodas. Participou da fundação da revista Realidade, que inspirou uma geração de jornalistas independentes. Entrou para a AP em 1967, a convite de um de seus principais dirigentes, Duarte Pacheco Pereira. Iniciou a militância no jornal Revolução, o primeiro da organização. Logo, ele e Narciso Kalli, também jornalista da revista, fariam acordo para serem demitidos e, com as indenizações trabalhistas, compraram uma impressora offset multilith.  

No começo da década de 1970, chegou em São Paulo o casal Divo (conhecido como Freitas) e Raquel (conhecida como Iracema) Guizoni, deslocado do Paraná para cuidar da parte gráfica, que funcionou inicialmente no bairro Vila Matilde, Zona Leste paulistana. Com a compra da impressora, o Libertação passou a ser impresso numa propriedade rural no município de Embu das Artes, Sul da Região Metropolitana de São Paulo, adquirida com ajuda de José Ricardo Cardoso de Mello Junqueira, o Zé Ricardo, que se engajou no movimento estudantil no curso de Engenharia Agronômica pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq), em Piracicaba, e pertencia a uma família de algumas posses. Seu pai era proprietário de uma fazenda. A máquina, que na avaliação de Divo pesava cerca de trezentos quilos, entrou no sítio de Embu das Artes em um caminhão da família de Zé Ricardo, que levou para o local, como disfarce, alguns carros. “Ele trouxe uns canos para a gente disfarçar lá no sítio e com esse caminhão nós transportamos a máquina”, recorda Divo.

Livro negro

Com a evolução da AP para Ação Popular Marxista-Leninista (APML), a incorporação ao PCdoB se acelerou, especialmente após os ataques à Guerrilha do Araguaia, em abril de 1972, e os assassinados pela ditadura de Carlos Nicolau Danielli, Luiz Guilhardini e Lincoln Oest, membros da Comissão de Organização. Azevedo acompanhou esses acontecimentos, passo a passo, pelo Libertação, que continuou saindo após a incorporação, em 1973, como elo da “estrutura dois”, a preservação da organização original da AP – o PCdoB era a “estrutura um” –, uma proteção contra as investidas da ditadura. Nesse período, Azevedo mantinha contato sistemático com Duarte Pereira, Haroldo Lima, Aldo Arantes e Renato Rabelo – os principais dirigentes da APML – no processo de elaboração do jornal. Péricles de Souza, como responsável pela segurança, também foi peça importante na engrenagem.

No final da década de 1960, integraram-se à equipe Bernardo Joffily e Maria do Socorro Moares Fragoso, que ficaria conhecida como Jô Morais, derivação de sua documentação clandestina com o nome de Josidineia. Bernardo vinha do movimento estudantil da Guanabara, onde foi presidente do Centro Acadêmico do Instituto Anglo-Americano e da direção da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), perseguido pela ditadura, que havia expedido ordens para caçá-lo em todo o país. Jô Morais também era originária do movimento estudantil. Havia se integrado à AP em João Pessoa, Paraíba.

A rotina era complicada e demorada, lembra Azevedo. Começava com uma reunião, em geral caminhando pelas ruas, com duração às vezes de até duas horas, um processo que Azevedo chama de Penha-Lapa, alusão à famosa, por sua extensão, linha de ônibus paulistana. Depois, também andando por ruas e parques, organizava, com Bernardo e Jô, a preparação dos textos e os prazos. Azevedo lembra que Elifas Andreato, considerado um dos maiores artistas gráficos do país, e sua companheira, Iolanda Husak, colaboraram em diversas edições; ele paginando e desenhando a capa e ela datilografando o stencil.

Nesse período, Azevedo, Duarte, Bernardo e Jô levantaram as informações e redigiram o Livro negro da ditadura militar, denunciando os crimes da ditadura, impresso por Divo na máquina offset multilith, que seria reeditado, em seu formato original, em 2014, pela editora Anita Garibaldi. Elifas Andreato fez a capa e a paginação.

Rede Povo

Após a incorporação da APML ao PCdoB, Azevedo fazia a interlocução com Haroldo Lima, o elo da “estrutura dois” com a Comissão de Organização do PCdoB, dirigida por Pedro Pomar após os assassinatos no processo de perseguição à Guerrilha do Araguaia. Esteve inclusive em reunião na casa da Lapa, que seria metralhada em 16 de dezembro de 1976, quando foram assassinados os membros do Comitê Central Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drummond, além da prisão de quase todos os demais participantes da reunião que ocorrera no local.

O jornal do PCdoB, A Classe Operária, passou a ser produzido na Europa pelos dirigentes João Amazonas, Renato Rabelo e Diógenes Arruda Câmara. Enviado para a Albânia pelo Partido Comunista Português Reconstruído (PCPR), era lido na Rádio Tirana por Bernardo Joffily e Olívia Rangel, jornalistas deslocados pelo PCdoB. A transmissão era ouvida no Brasil em aparelho de rádio multibanda, com muitas faixas de ondas, possibilitando a escuta de longínquas emissoras em qualquer horário do dia ou da noite.

Azevedo era um dos ouvintes. Gravava os textos, datilografava, copiava e, anonimamente, enviava pelo correio para endereços que conhecia. Um dos que recebiam era o médico Walter Sorrentino, na cidade de Caieiras, Região Metropolitana de São Paulo. À noite, sob rigorosa clandestinidade, ele e a esposa, Sara Romera da Silva, também médica, depois de cumprirem jornadas na saúde pública encarregavam-se de datilografar, compor e imprimir o jornal para distribuição no país.

Azevedo colaboraria também com os jornais de resistência à ditadura Movimento e Tribuna da Luta Operária. Trabalhou na Rede Globo de Televisão – no programa Globo Rural –, na TV Cultura e nas revistas Caros Amigos e Retrato do Brasil. Foi editor das campanhas de TV de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República em 1989 e 1994. Em 1989, criou a memorável Rede Povo, da Frente Brasil Popular, que fez história nas campanhas eleitorais. Escreveu, entre outros, os livros Do tear ao computador, a luta pela industrialização no Brasil, com Guerino Zago Jr., e Cicatriz de reportagem.