João Quartim de Moraes: Polonaise nº. 2
De Brest-Litovski à guerra polaco-ucraniana.
Consagrado no senso-comum, o adágio “os inimigos de meus inimigos são meus amigos” pode relativizar-se em situações intrincadas. Os grandes amigos dos governos de extrema direita da Polônia e da Ucrânia são os Estados que controlam a máquina de guerra da OTAN, à qual aqueles dois governos mantêm-se subalternamente vinculados. O principal inimigo dos dois é a Rússia. Nessa medida, os dois são amigos.
Bem sabemos, entretanto, que o presente está carregado de história. São antigos e persistentes os ressentimentos recíprocos entre a Polônia e a Ucrânia, alimentados por disputas territoriais recorrentes ao longo dos séculos. Esses ressentimentos foram reativados e exacerbados pelo complexo de consequências da catástrofe bélica desencadeada em 1914, a mais decisiva das quais foi a conquista do poder político na Rússia pelos operários, marinheiros e soldados dos “soviets”, abrindo a perspectiva de estender a Revolução proletária às principais potências imperialistas da Europa.
Cumprindo a consigna “paz e terra”, que mobilizara o povo russo para a Revolução de Outubro 1917, os dirigentes bolcheviques declararam o cessar fogo em todas as frentes de combate, abrindo negociações em Brest-Litovski com o II Reich alemão e o império austro-húngaro. Enfrentando desde o nascedouro a guerra civil promovida pelos generais czaristas, ditos “brancos”, a Rússia soviética teve de aceitar em 3 de março de 1918 um tratado de paz extremamente oneroso com os dois “impérios centrais”.
Cedeu territórios onde vivia cerca de um terço da população russa, de metade de suas instalações industriais e de 90% de suas jazidas de carvão. Lênin, que não era dado a eufemismos, classificou o tratado de “paz vergonhosa”, mas aceitou-o, porque o essencial a salvar era a Revolução de Outubro. O II Reich assumiu o controle da grande maioria desses territórios, mas não por muito tempo.
Na Ucrânia o contexto da revolução de Outubro, nacionalistas de direita e bolcheviques entraram em luta. Aqueles proclamaram em 20 de novembro de 1917 a República Nacional ou Popular (o termo eslavo Narodna comporta as duas traduções) Ucraniana. Lá havia, porém, muitos simpatizantes da revolução e do poder dos soviets. Eles foram tratados como inimigos pela direita nacionalista, que tratou de expulsar para a Rússia as unidades militares estacionadas no front durante as negociações de Brest-Litovski.
A ordem de expulsão não foi obedecida. Com o apoio dos socialistas ucranianos, os soldados bolcheviques resistiram com armas na mão, promovendo um levante em Kiev no início de dezembro. Foram derrotados e deportados. O Conselho de Comissários do Povo de Petrogrado reagiu, exigindo que cessassem as deportações. Mas elas prosseguiram. Os bolcheviques replicaram, em 26 de dezembro, proclamando a República Soviética da Ucrânia e mobilizando, para apoiá-la, um corpo de 30.000 combatentes da Guarda Vermelha, sob o comando de Vladimir Antonov-Ovsiienko e de Mikhail Muravyov.
As duas formações armadas de que dispunham os nacionalistas de direita, a casta militar dos cossacos e os Sich Riflemen, ex-combatentes do império austro-húngaro, não conseguiram conter o ímpeto dos operários revolucionários ucranianos e da Guarda Vermelha. Em 9 de fevereiro de 1918, após mais de quarenta dias de combate, os bolcheviques assumiram o controle de Kiev.
A nova ameaça à Revolução veio da Polônia, cujo comandante militar supremo e chefe de Estado era Josef Pilsudski, já mencionado na Polonaise nº.1. Nacionalista tenaz e radical, ele combateu entre 1914 e 1917 contra o Império Russo, à frente das “legiões polonesas” e ao lado dos exércitos alemães e austro-húngaros.
Quando o regime do Czar, seu inimigo principal, foi derrubado pela revolução de fevereiro 1917, ele mostrou-se estrategista lúcido, parando de colaborar com os impérios centrais por avaliar que a despeito do cessar fogo na frente leste, a “Entente” franco-britânica estava em melhores condições para ganhar a guerra e que a conturbada situação da Rússia abria espaço para seu projeto de formar, sob a hegemonia de sua nação, uma grande federação que incluiria a Ucrânia, a Bielarus, a Lituânia e os demais países bálticos.
A primeira guerra que Josef Pilsudski travou nessa ambiciosa perspectiva ocorreu na Galícia, província que o império austro-húngaro anexara em 1772, na primeira partilha da Polônia entre ele, a Prússia e o Império russo. Na parte ocidental da Galícia, a população era majoritariamente polonesa; na parte oriental, majoritariamente ucraniana. Os poloneses recusavam-se a aceitar a autonomia administrativa ucraniana na Galícia oriental, a despeito do caráter multinacional do império austro-húngaro, mas Carlos I, o último Kaiser de Viena, decidira atender à demanda dos ucranianos, prometendo promovê-la quando terminasse a guerra desencadeada em 1914. A derrota de 1918 impediu-o de cumprir a promessa, mesmo porque seu império foi desmantelado.
O reconhecimento da independência da Polônia e da Ucrânia pela “Entente” franco-britânica vitoriosa precipitou o acerto de contas entre as duas nacionalidades que disputavam o controle da província. Em 1º de novembro de 1918, foi proclamada a República nacional (ou popular “narodna”) da Ucrânia Ocidental, com Lwow por capital. Os poloneses reagiram, apoderando-se de Lwow em 21 de novembro. Dando livre curso a seu ódio xenófobo, eles comemoraram a conquista com um pogrom nos bairros judeus (que foram incendiados), massacrando centenas de civis desarmados, judeus e ucranianos.
Mais bem armadas, as tropas polonesas prevaleceram no terreno, sobretudo a partir de maio de 1919, quando entrou em ação o “exército azul”, treinado, equipado e enquadrado por oficiais franceses. Em princípio, a missão desse exército, comandado pelo general Jozef Haller, era defender a ordem burguesa ameaçada pelos bolcheviques, enfrentando-os na Ucrânia Oriental. Mas Josef Pilsudski, pragmático audacioso, enviou-o para aniquilar as forças nacionalistas da Ucrânia Ocidental, que eram tão anticomunistas quanto ele.
Os governos da “Entente” reclamaram “pro forma” desse desvio de função, mas o comando polonês ignorou a reclamação e prosseguiu na ofensiva. No final do mês, enfim, após ter rompido as defesas ucranianas, Jozef Haller atendeu aos franco-britânicos, estacionando na linha de frente. Em junho, os ucranianos voltaram a avançar com certo êxito, mas faltavam-lhes munições. Josef Pilsudski assumiu no final de junho o comando das forças polonesas. Duas semanas de intensos combates bastaram-lhe para se apoderar de toda a Galícia, jogando uma pá de cal em cima da República nacional da Ucrânia Ocidental, cujo governo refugiou-se em Viena, de onde preconizou em vão a formação de uma República abrigando ucranianos, poloneses e judeus.
Em novembro de 1919, reunido em Paris, de onde ditava a política dos vencedores, o Alto Conselho da Conferência de Paz conferiu um verniz de legalidade à conquista polonesa da Galícia. Fixou “pro forma”, um plebiscito para um quarto de século depois e reconheceu o direito dos ucranianos à autonomia na região oriental onde eram majoritários. A Polônia sabia que esse afago dos impérios liberais no povo que ela tinha vencido não era para ser levado a sério. Josef Pilsudski, entrementes, dera início, desta vez com pleno apoio dos governantes de Paris e de Londres, a uma nova e decisiva etapa de seu projeto expansionista: a invasão da Ucrânia oriental e da Bielarus.
*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular)
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