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Cida Pedrosa: ‘Queria colocar os guerrilheiros no colo das pessoas’

28 de setembro de 2023

Autora de “Araras Vermelhas”, lançado pela Companhia das Letras e premiado pela APCA, recusa o rótulo de “poeta regional”: ‘Quero muito descolonizar isso na minha palavra, na forma como ajo, na minha luta’

A poeta Cida Pedrosa tem vivido um momento especial da carreira literária. Em 2020, tornou-se o primeiro nome de Pernambuco a ganhar o “Livro do Ano” do Prêmio Jabuti por “Solo para Vialejo” (Cepe, 2019). O livro de poesia reconstrói a diáspora de negros, índios e pessoas oprimidas que saíram do Litoral de Pernambuco em direção ao Sertão.

Araras Vermelhas“, seu lançamento mais recente, foi publicado pela Companhia das Letras (2022) e já amealhou o APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, um dos prêmios mais respeitados do setor, como Melhor Livro de Poesia.

A obra é um longo poema lírico-épico que resgata um episódio controverso da história recente brasileira: a Guerrilha do Araguaia, movimento comunista existente na região amazônica brasileira entre as décadas de 1960 e 1970, na ditadura militar.

Em 140 páginas, Pedrosa mescla memórias pessoais, detalhes históricos e referências culturais em uma narrativa longa, recheada de diversos tipos de composição poética.

A escritora recebeu o JC em seu gabinete na Câmara do Recife, onde exerce mandato de vereadora pelo PCdoB – partido, inclusive, que é diretamente relacionado à temática do livro: “E queria colocar guerrilheiros e guerrilheiras no colo das pessoas, no coração das pessoas. Para que as pessoas entendessem de fato o que aconteceu”.

Como surgiu a ideia para tratar da Guerrilha do Araguaia em um livro de poesia? Você já lia e pesquisava sobre o tema?
Estava querendo muito fazer algo nessa linha porque o PCdoB fez 100 anos em 2021. Já a Semana de Arte Moderna também fez 100 anos em 2022, quando eu escrevi o livro. Comecei a pensar sobre a chance de escrever sobre a Guerrilha, pois foi um episódio pouco contado e que geralmente é repassado com preconceito também. Até mesmo na própria esquerda, por muito tempo, se colocou a guerrilha debaixo do tapete, como se a luta armada fosse algo pecaminoso, principalmente entre a esquerda mais cristã. Um dos grandes preconceitos com o PCdoB era justamente por ele ter pego em armas durante a ditadura.

Só que, na minha cabeça, o que aconteceu foi um genocídio. As pessoas não foram apenas mortas, foram torturadas, executadas e desapareceram de forma proposital. Os militares não queriam, em hipótese alguma, que qualquer faísca dessa história ficasse evidente. Tanto que foi necessário desaparecer com os corpos. Não bastava matar: tinha de aniquilar a ideia.

Já tinha ouvido muito sobre o Araguaia, mas consultei fontes quando fui escrever, pois existem detalhes muito específicos. Também vi muitos documentários, filmes e li um livro do PCdoB que foi publicado com os relatórios do Ângelo Arroyo, que sobreviveu e morreu dois anos depois da Chacina da Lapa. É o que existe de mais próximo para entender, já que foi escrito por quem viveu. Me debrucei sobre esse tema, pois queria fazer algo com muita empatia. Eu queria que os leitores do livro tivessem empatia pela história e não se sentissem assustados. Queria colocar os guerrilheiros e guerrilheiras no colo das pessoas, no coração das pessoas, para que elas entendessem de fato o que aconteceu. Não sei se passei isso mas, foi a intenção.

Em relação à composição poética, esse livro traz algo de novo para a sua produção?
Já estou desde algum tempo nas narrativas maiores. O “Solo para Vialejo” é uma longa narrativa, mas é toda em poesia e prosa poética. Neste livro, eu aprofundo essa quebra entre os diversos tipos de composição. Abro o livro com duas décimas e um martelo agalopado, fecho com sete estrofes em sete sílabas poéticas e abro cada canto em linguagem quase jornalística. Dentro desses cantos, eu trabalho várias formas de escrever poesia. Utilizo muita imagem, que é a poesia processo, poesia visual, além de quebra de verbos, como foi feito na Semana de 22. Do ponto de vista estético, essa é uma homenagem à Semana de Arte Moderna. Já do ponto de vista temático, faço um tributo à luta dos comunistas. Juntei as duas coisas.

Como tem percebido a repercussão?
O livro foi lançado no final de 2022. Em janeiro desse ano, ele saiu nos melhores livros do ano da retrospectiva da Folha de São Paulo. A lista não separava por categorias. Já no final de janeiro, ganhou o APCA, que, do ponto de vista crítico, é um dos mais importantes do Brasil. Participo de muitos clubes de leituras, pois você divulga a obra e consegue conversar com os leitores. O livro tem tido uma recepção muito bonita, porque esse livro é mais entendível que o “Solo”, que muita gente teve dificuldade de entender, já que trata-se de uma viagem do mar ao Sertão. De uma certa forma, é algo muito mais próximo de nós (de Pernambuco).

Você foi o primeiro nome da literatura de Pernambuco a ganhar o prêmio de Livro do Ano no Jabuti. Acha que ainda falta uma representatividade regional em prêmios como esse?
Acho que o Jabuti tem alargado muito. Era muito fechado, mas está cada vez mais aberto. Tem melhorado. Mas, acho que ainda é pouco. Quando fui pra APCA, só tinha de fora do eixo Rio-São Paulo eu e um escritor do Pará que ganhou em Romance. Fora isso, mesmo os nordestinos que ganharam estão com alguma coisa em São Paulo ou no Rio. A categoria de Teatro ganhou, mas tem um monólogo lá. Acho que ainda é distante.

Quando eu ganhei o Jabuti, o “Roda Viva” chamou quase todos os premiados da linguagem. Eu não fui chamada por essa coisa de “estar aqui”. Ainda existe um bloqueio muito grande. Acho que se eu morasse nesse lugar onde a visibilidade rola, já teria deslanchado muito mais. Mas, eu sou resistente e acredito e tenho feito uma grande luta.

Não existe apenas a colonização nos temas, existe uma colonização territorial. E eu estou denunciando isso em todo canto que vou. Não é ‘nordestinês’, não. O que acontece na Europa é o universal para a academia. O que acontece no Rio e em São Paulo é o universal para o Brasil. O que acontece no Recife é o que seria universal se estivéssemos considerando Bodocó, no interior. E isso é uma ideia colonizadora. Quero muito descolonizar isso na minha palavra, na forma como ajo, na minha luta. Por que um texto sobre a Avenida Paulista é universal, mas um sobre Bodocó não é? O que é que me faz ser uma escritora regional? Eu não sou. O que é regional, afinal? Tenho ‘peitado’ muito isso. Porque não é regional eu ‘estar aqui’. O Brasil é um só, apesar de se usar o conceito de regional quando se fala de nós do Nordeste. É como se minimizasse a nossa literatura.

Existe uma contraposição muito boa sobre isso: onde está o cânone da literatura? São os nordestinos. Temos Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Clarice Lispector… Esse povo nasceu onde? Esse povo fala de quê? A Semana de Arte Moderna teve um enfoque extremamente paulista. Temos de refletir sobre isso criticamente. O escritor mais moderno daquele período foi o Ascenso Ferreira. O Mário de Andrade disse isso em um artigo maravilhoso. Foi o nosso Ascenso quem conseguiu dar uma forma brasileira à poesia, mas ele morava aqui. Quem explodiu na Semana de Arte? Foi Oswald.

O seu ativismo também tem uma verve política. Você acha que esse é o seu livro mais político?
Faço uma literatura política sempre. Nunca deixo as questões sociais, mesmo quando falo do íntimo. Quando uma mulher faz um poema erótico, isso é revolucionário e político, pois o corpo da mulher é um espaço político. A luta pelo erotismo, pela sexualidade da mulher é uma luta revolucionária e independente de libertação. Quando eu escrevo sobre poesia erótica em “As filhas de Lilith”, é político. Quando escrevo sobre a diáspora contrária dos negros e indígenas para o Sertão, é político. Quando escrevo “Araras Vermelhas”, ele não é só político, como ele apresenta um lado de uma história política que aconteceu na nossa história. Acho que isso é muito forte. É uma história que se deu no momento mais terrível que o Brasil viveu, que foi a ditadura militar, e que mostra o quanto o Estado pode ser matador se estiver nas mãos erradas.

É desafiador exercer, ao mesmo tempo, a política e a literatura?
Demais. Mas, há muito tempo, essas são as duas vertentes da minha personalidade: palavra e discurso. Não existe palavra sem discurso ou discurso sem palavra. Essas coisas estão juntas, mesmo quando você estiver falando da linguagem de sinais. Então, eu não consigo separar o campo da luta política da literatura, embora eu não faça literatura panfletária, sempre me recusei. Faço poesias para amigos em campanha, mas as não publico. Trato-as como peças publicitárias.

Porém, eu faço literatura engajada, o que é diferente. A minha literatura tem função social e vai ter a vida toda, mesmo se eu estiver falando das coisas mais íntimas. Se eu estiver falando de amor, vai ter uma função social. Eu fiz um poema sobre solidão, sobre o ser humano só na cidade grande, que é um tema político.

Você tem produzido algo atualmente? Pode adiantar?
Eu escrevi um livro novo esse ano, que são as minhas memórias de infância do 0 aos 10 anos, trazendo a minha vivência em Bodocó, mas também as minhas primeiras experiências no Recife. São textos pequenos, mas recontando tudo. Eu pretendo fazer uma trilogia. Produzo quando estou no sítio. Não posso falar muito, porque estou concorrendo com ele em um concurso.

Tem um outro livro do qual posso falar mais. Estou escrevendo um novenário. A ideia é contar a história de nove santos a partir de um olhar mais social. Inclusive, estou terminando de escrever sobre Maria Madalena com uma ideia de desmistificar. Jesus entregou o seu ressurgimento nas mãos de uma mulher. Jesus apareceu para uma mulher, mas ela não era considerada apóstolo pela igreja. Só agora o Papa Francisco transformou o dia dela em um dia de festa. Ela não era só discípula, ela era apóstola. Os escritos dela que são considerados apócrifos, pois dizem que não existe, mas ela escreveu também. Então, estou falando sobre essa mulher que lia, escrevia, que era culta e que para muitos era considerada prostituta.

Fonte: JC