Theófilo Rodrigues: A redução da jornada semanal de trabalho para quatro dias
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, propôs que o Brasil adote a jornada de 4 dias; Espanha e Portugal já caminham nessa direção.
“Hombre que trabaja pierde tiempo precioso” (Proverbio cubano)
“Sejamos preguiçosos em todas as coisas, exceto em amar e beber, salvo por preguiça” (Lessing)
Na última segunda-feira (09/10), o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, levantou o debate sobre a redução da jornada de trabalho no país para quatro dias úteis. Se, por um lado, a notícia agrada aos trabalhadores, por outro, causa apreensão entre alguns empresários. Uma pesquisa realizada no ano passado mostrou que 81% dos profissionais são a favor da jornada de 4 dias, mas apenas 4,9% das empresas a apoiam[1].
A proposta do ministro marinho não é uma jabuticaba ou um raio em céu azul. Em 2019, a Microsoft resolveu fazer uma experiência em seus escritórios no Japão. Ao longo do mês de agosto, os 2.280 funcionários da empresa trabalharam apenas quatro dias na semana, de segunda-feira até quinta-feira. O resultado? A produtividade aumentou 40%, os custos com energia elétrica diminuíram 23% e a satisfação foi de 92%[2]. A ação da Microsoft não é isolada. Awin na Alemanha, Unilever na Nova Zelândia e dezenas de outras empresas são exemplos de como esse tipo de experiência corporativa vem ganhando espaço nesse início de século XXI. Afinal, trabalhadores mais felizes, satisfeitos e com maior qualidade de vida realizam um trabalho melhor. Algo que parece óbvio, mas que o capitalismo demorou para perceber.
Trajetória histórica da redução da jornada de trabalho
Ao longo da história, a forma como encaramos o tempo de trabalho mudou bastante. Na Idade Média cristã, a preguiça era vista como um dos sete pecados capitais. Trabalhar pouco era uma questão moralmente inaceitável pela Igreja Católica (CHAUÍ, 2021). Com a Revolução Industrial no século XVIII e o despertar do capitalismo, a preguiça passou a ter uma conotação pejorativa dupla: era um problema moral para a ética protestante, mas também um problema econômico para a produtividade exigida pelo espírito do capitalismo (WEBER, 2004). A consequência direta dessa nova ética era a exploração do trabalho pelo capital que fazia com que a jornada fosse de 16 horas diárias e que até mesmo crianças trabalhassem nas fábricas insalubres. Mais do que isso, nesse momento da história a jornada semanal era de 6 dias – o descanso ocorria apenas no domingo, para que os trabalhadores católicos pudessem cumprir com seus compromissos religiosos. Isso é o que Marx (2013) chamava de exploração da mais-valia absoluta, ou seja, a acumulação do capital a partir da intensidade da jornada de trabalho.
Contudo, no século XIX alguns intelectuais começaram a criticar esse modo de pensar. Os primeiros a trazerem essa abordagem provavelmente foram Marx e Engels. Para eles, o sistema capitalista era baseado em uma exploração do trabalho que corroía todo o tempo dos trabalhadores. No futuro comunista, diziam os autores, os homens poderiam caçar pela manhã, pescar à tarde e filosofar após o jantar (MARX e ENGELS, 2007). Ou seja, na sociedade considerada ideal a jornada deveria ser menor para que os homens e as mulheres pudessem desfrutar de outras atividades ao longo do dia. Marx (2011, p. 588) explicou como isso ocorreria: o desenvolvimento tecnológico e a automação permitiriam “o livre desenvolvimento das individualidades e, em consequência, […] a redução do trabalho necessário da sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à formação artística, científica etc. dos indivíduos por meio do tempo liberado […]”. Graças à inovação, o trabalho seria automatizado, o que permitiria a redução da jornada.
Cubano radicado na França, Paul Lafargue publicou alguns anos depois, em 1880, um pequeno manifesto intitulado O direito à preguiça. Genro de Marx, Lafargue levou ao extremo a tese do sogro contra a exploração do trabalho promovida pelo sistema capitalista do século XIX. O que para uns era uma vocação religiosa e para outros uma necessidade econômica, para Lafargue não passava de uma insanidade. “Essa loucura traz em seu rastro misérias individuais e sociais que, durante séculos, torturaram a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada ao esgotamento das forças vitais do indivíduo […]” (LAFARGUE, 2021, p. 59).
Marx, Engels e Lafargue expressavam em seus livros aquilo que os trabalhadores reivindicavam nas ruas e nas fábricas. Um marco nesse processo foi a histórica greve dos trabalhadores de Chicago, nos Estados Unidos, em 1 de maio de 1886, que ocuparam as ruas em defesa da jornada diária de 8 horas. Três anos depois, em 1889, no congresso de fundação da Segunda Internacional Socialista, em Paris, os trabalhadores definiram o dia 1o. de maio como a data internacional em defesa da redução da jornada.
No século XX, essa reflexão alcançou outras matrizes intelectuais. Na década de 1920, Henry Ford, um dos principais industriais dos Estados Unidos, reduziu a jornada semanal para cinco dias e oito horas diárias (GOMES, 2022). Mas, para alguns, isso ainda era muito. Keynes (1984), que nasceu em 1883, mesmo ano em que Marx morreu, chegou a advogar na década de 1930, em um ensaio intitulado As possibilidades econômicas de nossos netos, que no futuro do capitalismo a jornada diária poderia ser de 3 horas ou semanal de 15 horas. Em 1935, foi a vez do filósofo inglês Bertrand Russell publicar O elogio ao ócio. Para Russell (2002), se a jornada fosse de quatro horas por dia, haveria o suficiente para todos e não haveria desemprego.
As ideias de todos esses autores não se perderam com o tempo. Nesse início de século XXI, Olivier Besancenot e Michael Löwy (2021, p. 20-21) recuperaram Marx para defender a ideia de que “a redução da jornada de trabalho é a condição fundamental da verdadeira liberdade humana, do tempo livre, durante o qual os seres humanos poderão desenvolver todas as suas potencialidades, mediante atividades cujo único objetivo é o florescimento humano”. Besancenot já foi candidato presidencial na França em duas ocasiões, o que mostra que a proposta tem entrada também no mundo da política. Na Itália, o sociólogo Domenico de Masi (2000a e 2009) tem sido uma das mais veementes vozes em defesa da jornada diária de três horas. No caso de Domenico de Masi (2000b), há uma profunda crítica teórica da idolatria do trabalho e uma defesa daquilo que define como “ócio criativo”.
Portugal, Espanha e Chile
Em Portugal, o economista da Universidade de Londres, Pedro Gomes (2022), tem advogado em favor da jornada de quatro dias. Gomes, inclusive, foi o responsável por coordenar a experiência-piloto da semana de quatro dias, organizada pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social em Portugal em 2023. O economista argumenta que a redução da jornada é uma vantagem competitiva. “A semana de quatro dias pode ser uma alternativa a aumentos salariais por parte de pequenas e médias empresas que não têm a capacidade financeira para competir com salários mais elevados pagos pelas grandes empresas”, explica Gomes (2023). Na Espanha, a iniciativa partiu da ministra do Trabalho, a comunista Yolanda Díaz, que construiu um mecanismo de subsídio governamental para empresas que adotassem a jornada de 4 dias. Já no Chile, a redução da jornada de 45 para 40 horas foi uma iniciativa da ministra do Trabalho, a comunista Jeannette Jara. Esses países têm em comum o fato de serem governados pela socialdemocracia e, no caso de Espanha e Chile, de terem membros do Partido Comunista no gabinete ministerial. Ou seja, um cenário político bem parecido com o do Brasil.
E o Brasil?
Esse é um processo certamente difícil na medida em que ainda vigora no mainstream capitalista a noção de extrair o máximo possível dos trabalhadores em nome do lucro. Basta dizer que apesar da Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomendar de forma conservadora que a jornada semanal seja de 40 horas, apenas 15 nações respeitam essa orientação. No Brasil, por exemplo, a jornada semanal é de 44 horas, conforme o Art. 7º. da Constituição de 1988.
A questão central não é exatamente se a jornada de trabalho ideal é a de quatro dias por semana, como tentam Microsoft, Awin, Unilever e os projetos do governo de Portugal e da Espanha, de três horas por dia como preferem Keynes e De Masi, ou de quatro horas diárias como sugere Russell. O ponto fundamental é oferecer alternativas para que os trabalhadores possam trabalhar cada vez menos e viver cada vez mais. Uma sociedade democrática é aquela que entende que a qualidade de vida do trabalhador está acima do lucro exorbitante dos acionistas. E uma forma de se garantir essa qualidade de vida é com a redução da jornada de trabalho. O debate que o ministro Marinho propõe é alvissareiro. Cabe agora ao presidente Lula e ao Congresso Nacional a responsabilidade de colocar o Brasil na vanguarda da agenda trabalhista que o século XXI exige.
* Theófilo Rodrigues é cientista político. Esse texto faz parte de uma seção do livro “Capitalismo e sustentabilidade” que será lançado em 2024.
Notas:
[1] Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2022/11/10/81percent-dos-profissionais-sao-a-favor-da-jornada-de-4-dias-mas-apenas-49percent-das-empresas-apoiam-diz-pesquisa.ghtml
[2] Disponível em: https://vocerh.abril.com.br/futurodotrabalho/semana-de-4-dias-de-trabalho-ganha-forca-com-aumento-da-produtividade/
Referências:
CHAUÍ, Marilena. Prefácio. LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Veneta, 2021.
DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Brasília: Ed, UNB, 2000a.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000b.
DE MASI, Domenico. Por que não trabalhamos só três horas por dia? Revista Época. 20 fev. 2009. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT55109-15230,00.html Acesso em: 27 jun. 2023.
GOMES, Pedro. Sexta-feira é o novo sábado. Lisboa: Relógio D‘Água, 2022.
GOMES, Pedro. Série Semana de Quatro Dias (4): uma vantagem competitiva para as empresas. Público. 6 jan 2023. Disponível em: https://www.publico.pt/2023/01/06/opiniao/opiniao/serie-semana-quatro-dias-4-vantagem-competitiva-empresas-2033869 Acesso em: 27 jun. 2023.
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Veneta, 2021.
LÖWY, Michael; BESANCENOT, Olivier. A jornada de trabalho e o “reino da liberdade”. São Paulo: Ed. UNESP, 2021.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. O Capital. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2004.