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Sérgio Barroso: Subdesenvolvimento, ilusão e tragédia

15 de novembro de 2023

Sergio Barroso explica que o “desenvolvimento só tem sentido histórico e lógico se estiver a serviço da perspectiva de transição ao Socialismo”.

Por Sérgio Barroso

“50% da população brasileira vive com menos de 30 reais por dia!” (Marcelo Medeiros, 30 de outubro de 2023).[1]

Camaradas nossos, dignos dessa sinonímia de comunistas, em regra entroncham até hoje o nariz ao escutar deste raso escriba minha concordância com o conceito de subdesenvolvimento. Conceito lavrado, de uma ou de outra forma, por Raúl Prebisch, Celso Furtado, Paul Baran, Aníbal Pinto, Octavio Rodríguez, entre outros. E teorizado em angulares mais sofisticadas por João Manuel Cardoso de Mello, Wilson Cano, Maria da Conceição Tavares, entre outros(as) brasileiros (as) ilustres.

Evolutivamente, deve-se a Furtado o desvelamento, com maior nitidez, quanto ao caráter do subdesenvolvimento brasileiro, enquanto processo constitutivo da nossa formação econômico-social. Aliás, ainda em 1967, Furtado desvelou o manto das ingenuidades vestido por muitos que inventaram ser o Brasil um tal “capitalismo de desenvolvimento médio”. Ilusão à toa, parodiando aqui o nosso fabuloso compositor Johnny Alf.

Em “Teoria e política do desenvolvimento econômico” (1967), Furtado escoima a ideia de que não é possível haver aumento nas taxas de crescimento econômico nos países subdesenvolvidos. Sim – escreveu -, inclusive do PIB (Produto Interno Bruto) global e do PIB per capita, por “fases prolongadas”; mas sem reduzir-se o grau da dependência externa e a heterogeneidade estrutural.[2] Trata-se de trágica ilusão imaginar que mesmo um país de desenvolvimento médio não seja coabitado pelo subdesenvolvimento.[3] Para o economista paraibano, toda economia subdesenvolvida é necessariamente dependente, pois o subdesenvolvimento é uma criação da situação de dependência.

Apenas para contestar a categoria subdesenvolvimento, o escudo brandido servia, e ainda serve, para uma pretendida crítica “marxista”, vez que o conceito de imperialismo estaria sendo substituído indevidamente para dar conta do fenômeno global da dependência capitalista periférica. Tolices antigas.

Desse modo, os problemas cruciais da compreensão de boa parte da “questão nacional” vão direto à lata do lixo; nossas particularidades deste capitalismo servem apenas ao devaneio do conhecimento cosmético ou academicista.

A destruição neoliberal

Sem mais delongas, exemplifico que, no magistral “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, J.M. Cardoso de Mello e Fernando Novais dissecam a desestruturação neoliberal, sobreposta à crise devastadora dos anos 1980. Quase ao cabo do estudo, tomam a si a advertência do psicanalista Jurandir Freire Costa, acerca das transformações sociopolíticas no Brasil contemporâneo, e as síndromes de nossa patologia social, sintetizadas:

“Como o indivíduo está esmagado por engrenagens sociais que desconhecem, surgem para socorrê-lo pastores eletrônicos, magos, astrólogos, adivinhos etc.(…)Como não há justiça eficaz nem instituições sociais bem estruturadas, as pendências pessoais e os dramas individuais são expostos e ‘resolvidos’ nos programas do ‘mundo cão’”.[4]

Mello e Novais definem bem no que se transformara o Brasil no final dos anos 1990: entramos no círculo infernal da modernidade monstruosa que se reproduz! (idem, p. 103).

Recentemente, em “Austericídio fiscal e violência da moeda”,[5] comentei que:  1) no Brasil, entre 2014 e 2015, um acasalamento “estável” foi comemorado aos goles de champagne finíssima, na “Faria Lima”: chefetes da alta finança e operadores dos barões da mídia fabricaram o “teto de gastos”, transformado depois (2016) na PEC 95, aprovada em dezembro de 2016. Recursos públicos destinados à educação, previdência social, saúde foram esmagados, ao tempo em que, mais uma vez e sempre, a garantia religiosa ao pagamento dos juros, também surrupiados do Estado ficava assegurada para retorno de sempre aos financistas e rentistas parasitários. Comandado pela usurpação da grande finança e a manipulação de instituições do Estado brasileiro, agravou-se a enorme desigualdade social em favor do permanente rentismo parasitário nacional e internacional. 2) Mas acharam pouco: aprovada em 2017, no governo Temer, e concluída em agosto de 2021, no governo Bolsonaro, a “Reforma trabalhista” destroçou conquistas sociais de quase um século, além de retirar inúmeros direitos sindicais dos trabalhadores. O lobby descarado feito pela chamada grande imprensa, a serviço do passado escravocrata explicitou-se de maneira cínica, cruel. A tal “Reforma”, entre outras crueldades, cria uma modalidade de trabalho sem direito a férias, 13º salário e FGTS; cria outra modalidade de trabalho, sem carteira assinada (Requip) e sem direitos trabalhistas e previdenciários; o(a) trabalhador(a) recebe uma bolsa e vale-transporte; reduz-se o pagamento de horas extras para algumas categorias profissionais, como bancários, jornalistas e operadores de telemarketing; dificulta-se a fiscalização trabalhista, inclusive para trabalhos análogos à escravidão. 3) Mas ainda faltava o essencial à voracidade das classes dominantes brasileiras: em fevereiro de 2021, Bolsonaro sancionou a chamada “independência” de Banco central, camuflada na palavra “autonomia”. Escárnio total!  Em abril de 2022 o Brasil tinha 4 bancos dentre os 10 mais lucrativos do capitalismo global, e no quarto trimestre de 2022 esse lucro cresceu para R$ 96,2 bilhões, apenas para os 4 maiores bancos!

No terceiro trimestre de 2023, esse foi o resultado da rentabilidade bancária no Brasil:[6]

Simultaneamente, entre janeiro e setembro deste ano, o país viu oito commodities serem responsáveis por quase dois terços de suas exportações: segundo a Secretaria de Comércio Exterior (Secex), as vendas de soja, petróleo bruto e óleos combustíveis, minério de ferro, carnes, açúcar, milho, celulose e café totalizaram US$ 163,2 bilhões, representando 64,5% dos US$ 253 bilhões exportados no período (Valor Econômico, 20/10/2023). Evidentíssima a permanência da reprimarização da pauta de exportação brasileira, em termos gerais.

Mais: de acordo com o IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), no Brasil, a indústria de transformação recuou -1,5% no 2º trim/23 ante o 2º trim/22, e pesquisa mostra que os ramos de alta e média-alta tecnologia caíram -7,6%.[7]

Acordos sucessivos do governo Lula 3 – concessões

O resultado das eleições de 2022, é sabido paradoxo: uma vitória espetacular de Lula, mas uma diferença eleitoral quase microscópica. Vitória contra Bolsonaro, um tipo de psicopata neofascista cevado nas consequências político-ideológicas da tragédia neoliberal, em resumo; sua comprovada trama golpista não adveio por divisão na cúpula das Forças Armadas e pela resistência democrático-popular. Eleições aquelas em que o Congresso Nacional ficou quase repleto de neofascistas. O conhecido problema tático e estratégico da correlação de forças voltou como um cadavérico fantasma a espraiar os miasmas e o mau cheiro do fascismo, este, sem dúvida, antes sido limpado o terreno pelo o golpista Michel Temer. Novos dilemas ressuscitaram.

Sob o comando do Ministro da Fazenda Fernando Haddad – avalizado pelo presidente Lula -, acordos sucessivos gestaram: a) um “arcabouço fiscal” que desconstitucionaliza o criminoso e acima aludido “teto de gastos”, mas obcecado num obsceno déficit fiscal zero, em 2024; e montado numa “banda” para modular o superávit do abandonado “Consenso de Washington”; b) uma reforma tributária que apenas simplifica os impostos das empresas em geral, nomeadamente das grandes. Ficaram de fora a taxação das grandes fortunas, e a dos milionários, até agora; c) o Banco Central – cujo presidente possui fortuna em offshores -,[8] impôs uma redução da Selic de 0,5% ao mês, até dezembro de 2023, quando a taxa “diminuirá” para 11,75% ao ano, mais uma vez a maior do planeta!

Parece claro que os avanços sociais (reais) perseguidos pelo governo Lula serão funcionais e retroalimentador do capitalismo selvagem que aqui medrou, e assim continuará. Pior, cada vez mais mercenário: o controle de vastos territórios da nação brasileira, pela aliança entre o narcotráfico, o crime organizado, a corrupção policial e institucional que está destroçando a República. O ressurgimento do fascismo por aqui, a ascensão da extrema-direita, vinculam-se essencialmente às incursões das desgraças do capitalismo global financeirizado, socialmente cruel e exaurido.

Prólogo republicano

“O movimento [“jacobinismo”] tem, portanto, balizas cronológicas precisas;1893-1897. No espaço de tempo compreendido entre essas datas, os radicais da República agitam o cenário político, sem contudo conseguir impedir o agrarismo cafeicultor de atingir o objetivo que lhe fora subtraído no 15 de novembro: tornar-se realmente hegemônico” (Suely Robles, “Os radicais da República”).[9]

Essa encruzilhada republicana parece hoje se repetir. A poderosa burguesia do café foi como que clonada da inescrupulosa e gélida burguesia financeira. Como tragédia ou farsa, diria o grande Karl Marx.

De outra parte, é leviana a afirmação de que “os partidos de esquerda” não têm um programa, uma plataforma que enfrente os desafios para a superação deste capitalismo. O capitalismo brasileiro e suas complexidades enormes; suas dualidades que percorrem, a exemplo, a pujança e o fracasso social do agronegócio; a crônica defasagem tecnológica nacional, também imposta pelo sistema de relações internacionais do imperialismo; o já longo processo de desindustrialização precoce, que avançou por sobre nossa incompleta segunda revolução industrial; a manutenção de assimetrias profundas, a produtiva e a da renda, que se agravaram; o advento da financeirização, catapultado desde o “Plano Real”, a solapar a possibilidade do desenvolvimento social, tudo isso só pode ser enfrentado através de firme decisão política, sagacidade estratégica, à base da construção concreta do massivo apoio popular.

Sem reformas estruturais – afirma o PCdoB e muitos progressistas da sociedade – o capitalismo brasileiro será sempre o mesmo, e nesses dias que correm, cada vez mais piorado para os trabalhadores e o povo. A estupidez deliberada do sistema financeiro, a nova questão agrária, a saúde pública e a educação, a distribuição de renda e riqueza, a reforma do Estado, a regulamentação da voragem dos monopólios de comunicação, a defesa e proteção do meio ambiente, o combate estratégico ao racismo estrutural, à desigualdade e à descriminação de gênero, principalmente, têm que enfrentados para servir ao Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.

Desenvolvimento que só tem sentido histórico e lógico se estiver a serviço da perspectiva de transição ao Socialismo.  Nada menos que isso.


[1] Veja a entrevista do autor de “Pobres e ricos no Brasil”, aqui:  https://www.bbc.com/portuguese/articles/c99q4ewklvgo. Medeiros apresenta o consagrado estudo “Uma história da desigualdade. A concentração de renda entre os ricos no Brasil”, de Pedro H. G. F. de Souza São Paulo, Hucitec: ANPOCS, 2018.

[2] Observo que, “financeiramente”, essa dependência se reduziu muito, mas isto não ocorreu com a “heterogeneidade estrutural”, que em verdade ampliou-se. É preciso que se enfatize: nos governos de Lula e Dilma (2003-2016), ou seja, em 13 anos, nenhum dos problemas estruturais do Brasil foi equacionado. Alguns até se agravaram, como a ditadura implacável do sistema financeiro – mas não só. Esta veio se agravando a partir de Marcílio Marques Moreira (Collor), Gustavo Franco (FHC) e especialmente com Antônio Palocci (um traidor difícil de se encontrar igual na praça!).

[3] Ver: “Celso Furtado:100 anos do centenário de um grande brasileiro”, A.S. Barroso. Aqui: https://jornalggn.com.br/artigos/celso-furtado-centenario-de-um-grande-brasileiro-por-a-sergio-barroso/

[4] Op. cit.,Unesp/FACAMP, Campinas/ SP, p.102, 2ª edição.

[5] Ver aqui: https://grabois.org.br/2023/04/03/furia-da-moeda-e-austericidio-fiscal/

[6] Dados da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Bradesco, Itaú Unibanco, Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal fecharam juntos 2.563 agências bancárias de 2020 a 2022. (“O Globo”, 18 de out. de 2023, em: https://contec.org.br/cinco-maiores-bancos-do-pais-fecharam-mais-de-25-mil-agencias-em-3-anos-e-estao-mudando-as-que-ficaram/ ).

[7] Estudo completo Aqui: https://iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_1231.html

[8] Segundo revelou a revista Carta Capital (27/10), Campos Neto esteve à frente da gestão de quatro offshores por 15 meses durante sua presidência no BC: Peacock Asset, COR Asset, ROCN e Darling Corp. Elas estão localizadas nas Bahamas e nas Ilhas Virgens, ambos paraísos fiscais. A escandalosa bandidagem financeira de altos funcionários públicos do governo Bolsonaro não tem precedentes: https://www.poder360.com.br/economia/eu-nao-fiz-nenhum-investimento-financeiro-diz-campos-neto-sobre-offshore/

[9] Ver: “Os radicais da República. Jacobinismo: ideologia e ação”, S. R.R. Queiroz, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 265.

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