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Lukács: Posfácio do livro “Lênin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento”

5 de janeiro de 2024

Posfácio escrito por György Lukács, em 1967, ao livro de sua autoria: “Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento”.

Disponível em Verinotio revista on-line – n. 14, Ano VIII, out./2012

Este pequeno livro foi escrito imediatamente depois da morte de Lênin, sem trabalho preparatório algum, a partir da necessidade espontânea – que então me pareceu essencial – de captar de forma teórica o centro da personalidade intelectual de Lênin. Daí o subtítulo: “Sobre a coerência de seu pensamento”. Indica o fato de que não se tratava para mim de reproduzir o sistema objetivo, teórico de Lênin, senão de representar as forças motrizes, de caráter objetivo e subjetivo, que tornaram possível essa sistematização, a encarnação de tais forças na pessoa e nas ações de Lênin. Tampouco se pensou, de modo algum, em realizar uma tentativa de decompor a unidade dinâmica, de maneira extensivamente plena, de sua vida e obra.

O interesse atual – relativamente considerável – por escritos dessa índole se encontra, antes de tudo, condicionado pela época. Desde que se iniciou a crítica marxista do período stalinista, também surgiu um interesse pelas tendências de oposição dos anos vinte. Isso é compreensível, ainda quando – considerado desde um ponto de vista teórico objetivo –, com frequência, resulte exagerado. Pois, por muito equivocada que tenha sido a solução alcançada por Lênin e seus partidários para a crise da revolução que se desenvolvia naquele momento, não se pode pensar que, naquele tempo, alguém teria podido oferecer uma análise, uma perspectiva capaz de indicar uma orientação teórica também para os problemas das fases ulteriores. Quem queira contribuir hoje, produtivamente, com o renascimento do marxismo, deve considerar os anos vinte de maneira puramente histórica, como um período definitivamente passado do movimento operário revolucionário; somente assim se pode aproveitar adequadamente as experiências e ensinamentos daquela época para a fase atual, essencialmente nova. Precisamente a figura de Lênin, tal como costuma suceder com os grandes homens, encarnou sua época de tal modo que os resultados, antes de tudo, o método de suas declarações e ações, ainda podem possuir uma determinada atualidade, inclusive, sob circunstâncias, em grande medida, diversas.

Esse escrito é um produto puro de meados dos anos 20. Como documento acerca da maneira pela qual um setor, então nada insignificante do marxismo, vislumbrou a personalidade e a missão de Lênin, seu lugar no curso dos acontecimentos mundiais, seguramente não carece de interesse. Mas não há que se perder de vista que os argumentos estavam determinados pelas opiniões daquele período – incluindo as ilusões e os exageros – muito mais do que pela obra teórica do próprio Lênin. Já a primeira frase revela essa determinação temporal: “O materialismo histórico é a teoria da revolução proletária”. Indubitavelmente, expressou-se com isso uma importante determinação do materialismo histórico. Mas, de maneira igualmente indubitável, não se expressou o caráter único, a determinação de sua essência. E Lênin, para quem a atualidade da revolução proletária constituía o parâmetro de seu pensamento e de sua práxis, tinha protestado da maneira mais apaixonada contra a tentativa de simplificação e redução da riqueza metódica e de conteúdos do materialismo histórico mediante tal “definição”.

Uma crítica em acordo com o espírito de Lênin poderia ser aplicada a muitas passagens deste pequeno
livro. Contento-me em indicar meramente a justificação e direção de tal crítica, pois espero que aqueles leitores
que pensam com sensatez, espontaneamente, assumam uma distância crítica. O que me parece, sim, importante é
sublinhar em que ponto minha posição – inspirada na obra de Lênin – chegou a resultados que, como fatores de
oposição ao stalinismo, também hoje seguem conservando certa justificação metodológica; trata-se de resultados
nos quais, pois, a fidelidade do autor à pessoa e à obra de Lênin não conduziu, naquele período, a uma direção
errada. Com efeito, em algumas constatações sobre a conduta de Lênin, frequentemente se encontra, tacitamente,
uma crítica acertada ao posterior desenvolvimento stalinista; crítica que então somente começava a se expressar
de maneira velada, episódica, na condução da Internacional Comunista por parte de Zinoviev**. Pensemos na
crescente paralisia de todos os problemas organizativos sob Stálin; independentemente da situação histórica,
independentemente das exigências da política, a organização partidária – inclusive invocando a Lênin! – foi

convertida em um fetiche imodificável. A advertência de Lênin: “Não é possível separar mecanicamente o político
do organizativo”, aqui é citada e respeitada segundo o espírito de tal dinamismo político leniniano:
Por isso, todo dogmatismo na teoria e toda paralisia na organização são funestos para o partido. Porque,
como diz Lênin: “cada nova forma de luta, que está associada a novos perigos e novas vítimas, ‘desorganiza’
inevitavelmente as organizações que não estão preparadas para essa nova forma de luta”. É tarefa do partido
– também em relação consigo mesmo, e especialmente aqui – percorrer o caminho necessário, livre e conscientemente, transformando-se antes que o perigo da desorganização se agudize, e influir sobre as massas por meio
dessa transformação, transformando-as e estimulando-as. (Lukács, 2012, p. 74)*
Isso, por certo, não significava então, em termos objetivos, mais que um combate de retirada por parte da
concreta agitação revolucionária dos grandes anos, frente às iminentes formas burocráticas de uniformização e
mecanização.
Mas, se hoje o nivelamento dogmático deve ser eliminado com êxito em todos os âmbitos, as experiências
dos anos vinte somente podem proporcionar impulsos produtivos por meio de contornos, por meio do
reconhecimento de seu caráter pretérito. Para isso, é ineludível ter em vista, com clareza crítica, a diversidade
que existe entre o período em que vivemos e o dos anos vinte. É evidente que tal clareza crítica também deve
manter-se vigente ao confrontar-se com a obra de Lênin. E, para aquele que não queira fazer da obra leniniana uma
coleção “infalível” de dogmas, tais constatações não perdem nem mesmo sua grandeza secular. Hoje, sabemos,
por exemplo, que perdeu validade universal para o presente a tese leniniana segundo a qual o desenvolvimento
imperialista produz forçosamente guerras mundiais. Naturalmente que somente se ultrapassou o caráter necessário
desse desenvolvimento; mas sua redução à condição de possibilidade modifica tanto o sentido teórico como,
em especial, suas consequências práticas. Lênin também generalizou as experiências da Primeira Guerra Mundial
(“quão grande é o mistério em meio ao qual a guerra é engendrada”), estendendo-as às futuras guerras imperialistas;
mas o futuro produziu um quadro totalmente diferente.
Mencionei alguns exemplos dessa classe, justamente com o propósito de expor a autêntica peculiaridade de
Lênin, que não possui nada, absolutamente nada em comum com o ideal burocrático de uma estátua stalinista de
infalibilidade. Obviamente que uma caracterização da autêntica grandeza de Lênin se encontra já muito distante
deste livro. Ele se encontra muito mais condicionado pela época do que seu objeto. Em seus últimos anos de
vida, Lênin previu de forma incomparavelmente mais clara do que esta sua biografia, o iminente encerramento do
período iniciado em 1917.
No entanto, em alguns momentos, observa-se neste livro uma intuição da verdadeira fisionomia intelectual
de Lênin e, nas exposições seguintes, queríamos partir dessa sondagem, naquele período, ainda cega, em busca
da verdade. Ali se sustentava que Lênin não era nenhum especialista em economia, como eram, entre seus
contemporâneos, Hilferding e, antes de tudo, Rosa Luxemburgo. Porém, no momento de avaliação do período
como totalidade, Lênin foi muito superior a eles. Essa “superioridade de Lênin – e esta é uma façanha teórica sem
igual – consiste em que foi capaz de concatenar completa e concretamente a teoria econômica do imperialismo
com todas as questões políticas do presente, e fazer da estrutura econômica da nova fase um parâmetro para
todas as ações concretas em um contexto tão decisivo”. (Cf. Lukács, 2012, p. 79) Perceberam isso muitos de seus
contemporâneos, daí que tenham falado tanto – inimigos e partidários – sobre sua destreza tática, de sua destreza
no plano da realpolitik.
No entanto, com isso, não se alcançou nem de longe o centro da questão. Trata-se antes de uma “superioridade
puramente teórica ao julgar o processo total”. (Lukács, 2012, p. 80) Em Lênin, essa superioridade era teoricamente
profunda e ricamente fundada. A sua assim chamada realpolitik não era nunca a de um homem prático e empirista,
senão a culminação de uma conduta essencialmente teórica. Nele sempre culminava unicamente a captação do serassim sócio-histórico da situação respectiva em que era preciso atuar. Para o marxista Lênin, “a análise concreta
da situação concreta não é o oposto da teoria ‘pura’, senão que, ao contrário, é o ponto culminante da teoria
genuína, o ponto em que a teoria se cumpre autenticamente, em que – por isso mesmo – se converte em práxis”.
Poder-se-ia afirmar, sem exagero, que a última das “Teses ad Feuerbach”, de Marx – segundo a qual os filósofos
se limitaram a interpretar o mundo de distintos modos, mas do que se trata é de transformá-lo – encontrou sua
manifestação mais adequada na pessoa e na obra de Lênin. Marx expressou essa exigência e a realizou no campo
teórico. Proporcionou uma interpretação da realidade social como base teórica adequada para transformar essa
realidade. Mas somente em Lênin essa essência teórico-prática da nova cosmovisão se converteu – sem superação
ou desconsideração da teoria – em figura ativa no interior da realidade histórica.
Certamente, neste escrito, verifica-se somente um tímido ponto de partida para o conhecimento da verdadeira
peculiaridade de Lênin. Falta o alicerce profundo e amplamente fundado no plano teórico; assim como a imagem

de Lênin como tipo humano. Tudo isso pode ser apenas aludido aqui. Na cadeia de sublevações democráticas
da modernidade, o modelo de líder revolucionário se apresenta sempre polarizado: figuras como as de Danton e
Robespierre encarnam na realidade e na grande poesia (por exemplo, em Georg Büchner)*
os dois polos; inclusive
os grandes oradores populares da revolução operária, como Lassalle e Trotski, mostram certos rasgos dantonianos.
Somente a partir de Lênin, aparece algo totalmente novo, um tertium datur** diante dos dois extremos.
Lênin possui, até em suas reações nervosas espontâneas, a fidelidade aos princípios dos velhos grandes ascetas
da revolução; sem se ver afetado, quanto ao caráter, por nem sequer uma sombra de ascetismo. Possui alegria
vital, humor; desfruta de tudo o que a vida pode oferecer, desde a caça, a pesca e o jogo de xadrez até a leitura de
Púchkin e Tolstói, até a entrega aos seres humanos reais. Esta fidelidade aos princípios pode intensificar-se, durante
a guerra civil, atingindo a dura inflexibilidade, mas se mantém livre de ódio. Lênin se bate contra as instituições –
e, naturalmente, contra os homens que as representam –, e se necessário, até sua plena aniquilação. Mas considera
tal combate como uma necessidade humana deplorável, inevitavelmente objetiva, da qual não se pode subtrair-se
de nenhum modo – na situação concretamente dada. Gorki apontou suas palavras muito características, depois de
escutar a “Appassionata” de Beethoven:
“Não conheço nada mais belo que a Appassionata e poderia escutá-la todos os dias. Uma música maravilhosa,
já não humana! Penso sempre, com um orgulho talvez ingenuamente infantil: que bom que existam homens
que possam criar tal maravilha!”. Depois de entrefechar os olhos, sorrio e acrescento contrariado: “mas não
posso escutar música com demasiada frequência. Atua sobre os nervos, alguém quereria dizer tolices e acariciar
a cabeça de homens que vivem em um sujo inferno e que, apesar de tudo, podem criar semelhante beleza. Mas
hoje não se há de acariciar a cabeça de ninguém; ao contrário, lhe cortariam a mão de uma mordida. Devem-se
golpear as cabeças, golpeá-las impiedosamente; mesmo quando, idealmente, estamos contrários a toda violência
contra o homem. Hum, hum, nosso ofício é infernalmente árduo” (Lênin, apud Lukács, 2012)
Inclusive diante de uma declaração tão espontaneamente sentimental de Lênin, deve ficar claro que não há
lugar para um embate de seus instintos dirigidos contra seu “modo de vida”, senão que também aqui ele segue
estritamente seus imperativos, trabalhados ideologicamente. Décadas antes deste episódio, o jovem Lênin escreveu
artigos polêmicos contra os narodniks e contra seus críticos marxistas legalistas. Em uma análise sobre esses últimos,
mostra seu objetivismo ao demonstrar “a necessidade de uma série dada de fatos” e o perigo dali derivado de se
“adotar o ponto de vista de um apologeta desses fatos”. A única saída lhe parece a maior coerência do marxismo
no momento de captar a realidade objetiva, a descoberta dos autênticos fundamentos sociais nos próprios fatos.
A superioridade do marxista sobre o mero objetivista consiste nessa coerência: o marxismo “desenvolve seu
objetivismo de forma mais profunda e plena”. Somente desta intensificada objetividade deriva-se o que Lênin
chama partidarismo: “em cada valoração de um acontecimento, adotar direta e abertamente o ponto de vista de
um determinado grupo social”. (Lênin, apud Lukács, 2012) Assim, a tomada de posição subjetiva sempre surge da
realidade objetiva, em vista de a esta regressar.
Isso pode suscitar conflitos, se as contradições da realidade se intensificam até se converterem em antíteses
que se excluem mutuamente, e todo homem confrontado com tais conflitos deve dirimi-los dentro de si. Mas
constitui uma diferença de princípio que duas convicções e sentimentos fundados na realidade, nas relações do
indivíduo entrem em conflito, ou que o homem em conflito tenha que experimentar que sua existência humana
interna está posta em risco. Este último não ocorre com Lênin. Hamlet disse a Horácio como supremo elogio:
“Benditos sejam / os que têm o sangue e o juízo tão bem equilibrados / que não são flauta para que os dedos da
Fortuna / elejam o furo que lhes agrade”***. O sangue e o juízo: tanto em sua contraposição como em sua unidade,
somente procedem da esfera biológica como fundamento imediato e universal da existência humana. Em seu
desdobramento em direção ao concreto, ambos já expressam seu ser social: a harmonia ou dissonância de sua
posição frente ao instante histórico e, sem dúvida, tanto teórica como praticamente. Em Lênin, sangue e juízo se
mesclam de maneira adequada, já que seu conhecimento acerca da sociedade estava orientado, em cada instante,
para a atuação socialmente necessária, precisamente nesta conjuntura, já que sua práxis sempre era a consequência
necessária da soma e do sistema de conhecimentos verdadeiros até então reunidos.
Daí que, em Lênin, não se conheça nada que possa, por menor que seja, parecer uma mostra de egolatria;
nenhum êxito o envaidece, nenhum fracasso o abate. Nega que possa haver situações ante as quais o homem não
esteja em condições de reagir de forma prática. Conta-se entre os grandes homens que – precisamente na práxis vital
– conseguiram muito, o mais essencial. Sem embargo, ou precisamente por isso, dificilmente há alguém que tenha

refletido de maneira tão sóbria e tão desprovida de pateticismo sobre as falhas possíveis e reais: “Inteligente não é
aquele que não comente nenhuma falha. Não existem e nem podem existir homens tais. Inteligente é aquele que
não comente nenhuma falha demasiado essencial, e que sabe corrigi-la rapidamente, com facilidade”. (Lênin, apud
Lukács, 2012) Essa concepção sumariamente prosaica acerca da destreza na ação expressa mais adequadamente
sua posição essencial do que qualquer confissão carregada de pateticismo. Sua vida é atuação constante, uma luta
ininterrupta em um mundo no qual, segundo sua convicção mais profunda, não existe nenhuma situação sem
saída, nem para ele nem para o oponente. Daí que, em seu caso, valha como fio condutor da vida o seguinte: devese estar sempre preparado e disposto para a ação, para a ação concreta.
A sóbria simplicidade de Lênin teve, pois, um efeito arrebatador sobre as massas. Novamente, em
contraposição com os modelos anteriores de grandes revolucionários, é um tribuno popular sem comparação, que
também não se encontra afetado pela sombra do retórico (pensemos aqui também em Lassalle e Trotski). Na vida
privada e na pública, Lênin sentiu uma profunda repulsão frente a todo palavrório, frente a toda afetação, frente a
tudo que é exagerado. Mas, por sua vez, também é significativo que esse rechaço político-humano para com todo
o “exorbitante” receba nele uma fundamentação filosófica objetiva. “Pois toda verdade (…) quando é exagerada,
quando se superam os limites de sua validade real, pode-se converter num absurdo, e inclusive tem de se converter
inevitavelmente, sob tais circunstâncias, num absurdo”. (Lênin, apud Lukács, 2012) (?)
Isso significa ainda que, para ele, as categorias filosóficas mais universais nunca possuíam uma universalidade
contemplativamente abstrata, senão que, a cada instante, estavam disponíveis como veículo para a práxis, para sua
preparação teórica. Quando, no debate sobre o sindicalismo, combateu a posição mediadora, eclética de Bukharin,
apoiou-se na categoria da totalidade. É profundamente característico o modo pelo qual Lênin aplica essa categoria
filosófica: “Para conhecer autenticamente um objeto, há que se captar e investigar todas as suas facetas, todos
os contextos e ‘mediações’. Nunca conseguiremos isso plenamente; a exigência de totalidade, não obstante, nos
preservará de falhas e da estagnação”. (Lênin, apud Lukács, 2012) É instrutivo ver como uma categoria filosófica
abstrata – complementada por meio das reservas epistemológicas a respeito de sua aplicabilidade – serve aqui
puramente como imperativo para a práxis concreta.
Uma plasticidade ainda maior adquire essa conduta de Lênin, se isso é possível, nas discussões da paz de
Brest-Litovsk*
. Hoje, é lugar comum o fato de que ele tinha razão, em termos de realpolitik, frente aos comunistas
de esquerda, que propunham, sobre uma base internacionalista, o apoio à nascente sublevação alemã, propiciando
uma guerra revolucionária, dispostos a pôr em risco a existência da república russa de conselhos. No entanto, essa
práxis correta se baseava, no caso de Lênin, numa análise teoricamente profunda do ser-assim no processo total
de evolução da revolução. A prioridade da revolução mundial defronte a todos os acontecimentos individuais,
diz, é uma verdade genuína (e, por fim, prática), “se não se deixa de ter em conta o largo e árduo caminho para
o pleno triunfo do socialismo”. Mas, considerando o ser-assim teórico na situação concreta de então, acrescenta:
“Toda verdade abstrata se converte em palavrório quando se aplica a uma situação concreta qualquer”. (Lênin,
apud Lukács, 2012) A verdade, como fundamento da práxis, e o palavrório revolucionário se diferenciam entre
si segundo sua adequação ou não, teoricamente, ao ser-assim da situação revolucionária necessária e possível em
cada momento. O sentimento mais sublime e a entrega mais abnegada se convertem em palavrório se a essência
teórica da situação (seu ser-assim) não permite nenhuma práxis genuinamente revolucionária. Não tem por que
ser, necessariamente, exitosa. Na primeira revolução, depois da derrota da sublevação armada de Moscou, Lênin
combateu, apaixonadamente, o ponto de vista Plekhanov, segundo o qual “Não teriam que ter tomado às armas”,
já que ainda essa derrota favoreceria o processo total. Toda analogia, toda confusão entre o abstrato e o concreto,
entre o histórico-universal e o atual conduz a palavrório; daí a comparação entre a França de 1792-1793 e a Rússia
de 1918, que frequentemente apareceu no debate de Brest. De igual modo, aos comunistas alemães, que depois
do golpe de Kapp (1920) formularam teses muito inteligentes e autocríticas como linhas diretrizes para o caso da
eventual repetição desse fato, Lênin lhes perguntou: “como sabem que a reação alemã irá repeti-lo?” (Lênin, apud
Lukács, 2012)
Para poder atuar desta maneira, a vida de Lênin se converteu num processo de ininterrupta aprendizagem.
Depois da eclosão da guerra em 1914, e uma vez superadas diversas aventuras policiais, transladou-se à Suíça;
uma vez ali instalado, considerou que sua primeira tarefa consistia em aproveitar adequadamente estas “férias” e
estudar a Lógica de Hegel. Ou, depois dos acontecimentos de julho de 1917, enquanto vivia ilegalmente na casa

de um trabalhador, escutou-o elogiar o pão antes do almoço: “‘Eles’ agora, evidentemente, não se atrevem a dar
um pão de má qualidade”. Lênin se sentiu surpreendido e admirado por essa “valoração classista dos dias de
julho”. Pensou nas próprias análises complicadas destes acontecimentos, e das tarefas derivadas de tais análises:
“Não havia pensado no pão, eu, um homem que não havia conhecido a indigência (…) àquilo que está na base de
tudo, a luta de classes pelo pão, o pensamento chega através de análise política, fazendo um desvio inusualmente
complicado e intrincado”. (Lênin, apud Lukács, 2012) Assim aprende Lênin durante sua vida, sempre e em todas as
partes; à margem de que se trate da Lógica de Hegel ou do juízo de um trabalhador acerca do pão.
A aprendizagem permanente, o feito de sempre se deixar instruir novamente pela realidade é um traço
essencial da prioridade absoluta da práxis no modo de se conduzir de Lênin. Isso apenas, mas especialmente o
modo de aprender, abre um abismo insuperável entre ele e todos os empiristas e promotores da realpolitik. Pois não
somente em termos polêmico-pedagógicos, Lênin relembra a totalidade enquanto fundamento e parâmetro. Impõese a si mesmo exigências muito mais estritas do que a seus mais apreciados companheiros de luta. Universalidade,
totalidade e unicidade concreta são determinações decisivas da realidade em que é possível e preciso atuar; a
medida da proximidade de seu conhecimento fundamenta, pois, a genuína efetividade de toda práxis.
Naturalmente, a história pode produzir situações que contradizem as teorias conhecidas até o momento.
Podem-se produzir situações que tornam impossível uma ação de acordo com os princípios – verdadeiros e
reconhecidos como tais. Por exemplo, já antes de outubro de 1917, Lênin previu, de forma correta, que, na Rússia
economicamente atrasada, seria ineludível uma forma de transição como a da ulterior Nova política econômica. A
guerra civil e as intervenções, no entanto, obrigaram os soviets a adotarem o assim chamado comunismo de guerra.
Lênin se ajustava à necessidade do fático sem renunciar à sua convicção teórica. Levou adiante, na medida do
possível, tudo relacionado com o “comunismo de guerra” – tal como o exigia a situação – sem reconhecer, nem
por um instante, o “comunismo de guerra” – à diferença da maioria de seus contemporâneos – como genuína
forma de transição ao socialismo, com a firme decisão de retornar à linha teoricamente correta da Nova política
econômica, assim que concluíssem a guerra civil e a intervenção. Em ambos os casos, não foi nem um empirista nem
um dogmático, senão um teórico da práxis, um praticante da teoria.
Assim como Que fazer? é um título simbólico para toda a atividade de Lênin como escritor, assim também
a ideia fundamental desta obra, no plano teórico, é uma síntese antecipada de toda sua visão de mundo. Sustentou
que a luta de classes espontânea que supõe a greve, ainda que uma greve bem e rigorosamente organizada, somente
realiza no proletariado alguns germes da consciência de classe. Falta ainda “o conhecimento da irreconciliável
contraposição entre seus interesses (dos trabalhadores – G.L) e todo o regime político e social contemporâneo”.
(Lênin, apud Lukács, 2012) Uma vez mais é a totalidade o que proporciona a direção correta para a consciência de
classe orientada à práxis transformadora: sem orientação à totalidade, não pode haver uma práxis historicamente
genuína. Mas o conhecimento da totalidade não é espontâneo. Sempre deve ser trazido “desde fora”, a saber, develhes ser proporcionado teoricamente aos sujeitos que atuam.
A supremacia dominante da práxis somente pode ser realizada, pois, sobre a base de uma teoria orientada
para a captação do todo. A totalidade do ser objetivamente desdobrada, pois, tal como sabe com precisão
Lênin, é infinita; daí que não possa ser compreendida de forma adequada. Assim é que, a partir da infinitude do
conhecimento e a partir do imperativo sempre atual da ação correta imediata, parece surgir um circulus vitiosus*
.
O abstrato-teoricamente insolúvel pode – como no nó gordiano** – ser cortado na práxis. A única espada que é
apropriada para isto é um comportamento humano que somente pode ser designado apropriadamente, uma vez
mais, com palavras de Shakespeare: “só importa estar prevenido”***. Entre os traços positivos mais característicos de
Lênin, tem-se que este nunca cessou de extrair da realidade um ensinamento teórico e, ao mesmo tempo, sempre
esteve preparado para atuar. Isto define um atributo importante, aparentemente paradoxal, de seu comportamento
teórico: não considerou nunca sua aprendizagem da realidade como algo concluído, mas o que foi adquirido desse
modo se encontrava nele sempre ordenado e configurado de tal maneira, que a atuação era possível para ele em
qualquer instante.

Tive a sorte de assistir a um desses numerosos instantes de Lênin. Foi em 1921. A delegação tcheca, no III
Congresso da Internacional Comunista, estava dividida. As questões eram sumamente complicadas; as opiniões,
incompatíveis. Subitamente, Lênin entrou. Todos lhe pediram que expressasse sua opinião acerca dos problemas
tchecos. Negou-se a fazê-lo; tentou estudar conscienciosamente o material, mas lhe apresentaram assuntos de
estado tão urgentes que somente olhou superficialmente os dois periódicos que levava consigo, postos no bolso do
casaco. Somente depois de múltiplos pedidos se declarou disposto, ao menos, a comunicar suas impressões sobre
os dois números do periódico. Então, Lênin os sacou do bolso e começou sua análise totalmente assistemática,
improvisada, iniciando com o editorial e terminando com as novidades do dia. E esse esboço traçado sem
preparação prévia, foi a análise mais profunda sobre a situação de então na Tchecoslováquia e sobre as tarefas do
Partido Comunista.
Obviamente Lênin – como homem disposto e constante – nesta interrelação entre teoria e práxis, sempre
se decidiu a favor da prioridade da práxis. Fez o que fez de forma manifesta no fim de sua principal obra teórica
do primeiro período revolucionário, O estado e a revolução. Escreveu-a no refúgio ilegal depois dos dias de julho e já
não pôde concluir o último capítulo, sobre as experiências das revoluções de 1905 e 1917; o desenvolvimento da
revolução não o permitiu. No posfácio, Lênin escreveu: “É mais agradável e proveitoso participar das ‘experiências
da revolução’ do que escrever sobre elas”. (Lênin, apud Lukács, 2012) Isto está dito com a mais profunda sinceridade.
Sabemos que sempre se esforçava para retomar o trabalho inconcluso. Dependeu do curso dos acontecimentos, e
não dele, que não tenha podido fazê-lo.
Um câmbio importante no comportamento humano, durante o último século, é que o ideal de “sábio”
estoico-epicurista influiu sobre nossas perspectivas ético-político-sociais muito mais do que o aristotelismo. Essa
influência significou, ao mesmo tempo, uma transformação interior: o componente ativo-prático neste tipo de
modelo intensificou-se além do que na Antiguidade. A disposição permanente de Lênin é a última etapa deste
desenvolvimento, a mais alta e importante alcançada até o momento. O fato de que – em vista de a manipulação
devorar a práxis e a desideologização devorar a teoria – este ideal não goze hoje de alto prestígio entre a maioria
dos “especialistas” representa tão somente um episódio no interior da marcha da história universal. Ultrapassando
a importância de suas ações e obras, enquanto encarnação da constante disposição para atuar, a figura de Lênin
representa um valor impossível de erradicar: um novo tipo de comportamento exemplar frente à realidade.

Budapeste, janeiro de 1967.

Notas:

*
Posfácio escrito por Lukács, em 1967, ao livro de sua autoria: Lenin: estudio sobre la coherencia de su pensamiento. Publica-se aqui
de acordo com a edição argentina: György Lukács Sobre Lenin y Marx – 1a ed. – Buenos Aires : Gorla, 2012. Tradução do espanhol
de Lucas Souza e Silva. Revisão técnica de Leonardo Gomes de Deus.
** Grigori S. Zinoviev (1883-1936): desde 1901, social-democrata; desde 1903, bolchevique. Trabalhou em colaboração com Lênin.
Entre 1917 e 1927, trabalhou no departamento de política; entre 1916 e 1926, presidente do comitê executivo do Komintern. Depois da Revolução de Outubro, presidente do soviet de Leningrado. Durante a enfermidade de Lênin e depois da morte deste, conduziu o partido conjuntamente com Kamenev e Stálin. Em 1925, opôs-se a Stálin e compôs, junto com Trotski, a “Oposição Unida
de Esquerda”. Em 1927, foi expulso do partido. Em 1935, foi condenado a dez anos de prisão. Em 1936, foi julgado e condenado
à morte no primeiro processo de Moscou.

Todas as citações referem-se à edição argentina Cf. nota 1

  • Georg Büchner (1813-1837): dramaturgo e narrador alemão; autor de obras como Dantons Tod (A morte de Danton, 1835) e
    Woyzeck (1837). Lukács escreveu um conhecido artigo sobre Büchner: “Georg Büchner, el falseado pelo fascismo y el auténtico”.
    In: Realistas alemanes del siglo XIX. Trad. Jacobo Munõz. Barcelona: Grijalbo, 1970, p. 69-93.
    ** A terceira instância, superadora frente a dois extremos mutuamente excludentes.
    *** Shakespeare, William. Hamlet, ato III, cena 2. Trad. Rolando Costa Picazo. Buenos Aires: Colihue, 2004, p. 79.
  • Firmado entre a Rússia bolchevique e os impérios centrais, foi o primeiro dos tratados que puseram fim à Grande Guerra. Em
    que pese que Trotski tenha tratado de prolongar ao máximo as negociações, o ataque alemão, em fevereiro de 1918, desarmou as
    tropas da Rússia soviética. Lênin, para poder fazer frente ao exército branco na guerra civil, teve de ordenar a aceitação das duríssimas condições alemãs. A derrota alemã, em novembro, anulou esse tratado, e se criou uma situação de vazio em toda a antiga franja
    ocidental do império czarista. Por fim, os bolcheviques conseguiram recuperar alguns dos territórios a que tiveram que renunciar
    em Brest-Litovsk.)
  • Círculo vicioso.
    ** Quatro séculos antes do nascimento de Alexandre Magno, um oráculo anunciou, em Frígia, que um dia veriam chegar pela Porta
    do Leste seu verdadeiro rei e que poderiam reconhecê-lo porque, ao atravessar a porta, um corvo se apoiaria em sua carroça. Tempo
    depois, um pastor chamado Górdias dirigia-se à cidade e, ao passar pela mencionada porta, um corvo se apoiou na canga de seu
    carro de bois. Os cidadãos aclamaram Górdias o rei. Quando tentaram retirar a canga que jungia os bois à carroça do soberano, descobriram que era impossível desfazer o nó da correia de couro que o sujeitava ao timão. O oráculo então previu que quem lograsse
    desatar o nó, seria o dominador de toda Ásia. Alexandre Magno – que conhecia a lenda – vindo da cidade de Górdion se dirigiu ao
    templo de Zeus, onde lhe mostraram a canga com o nó intacto. Tentou desfazê-lo. Uma e outra vez buscou uma extremidade por
    onde puxar uma brecha na ligação, um ponto débil no endurecido couro, mas o nó resistiu a todas as suas tentativas. Com a paciência
    já esgotada e convencido de que um nó não haveria de deter suas conquistas, desembainhou a espada e cortou o nó.
    *** Hamlet, ato V, cena 2, p.157.