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Prabhat Patnaik: O que o PIB esconde?

8 de fevereiro de 2024

O economista marxista indiano Prabhat Patnaik critica o conceito de Produto Interno Bruto

Artigo publicado originalmente na Monthly Review. em 07.02.2024.

Há problemas bem conhecidos associados ao conceito de produto interno bruto, bem como à sua medição. A inclusão do setor dos serviços no PIB é algo que Adam Smith teria combatido com base na ideia de que as pessoas empregadas neste setor constituíam “trabalhadores improdutivos”; certamente, na antiga União Soviética e nos países socialistas do Leste Europeu, não era o PIB, mas sim o produto material bruto, excluindo o setor dos serviços, que foi considerado a medida relevante.

Mesmo que o setor dos serviços seja incluído no PIB, há um problema conceitual associado à medição da sua produção, uma vez que o que constitui a prestação de um serviço é difícil de distinguir do que constitui um mero pagamento de transferências: afinal, uma pessoa pode ter satisfação em fazer um pagamento de transferências exatamente como tem satisfação com a atuação de um músico. Como então podemos incluir um e não o outro no âmbito do PIB? Mas, para além destes problemas conceituais, há também problemas associados à medição do PIB, problemas que decorrem, entre outros, devido ao vasto setor da pequena produção, para o qual não dispomos de dados confiáveis, regulares e oportunos. Na Índia, por exemplo, vários economistas sugeriram, embora por razões diferentes, que a medição da taxa de crescimento do PIB está superestimada.

Também é óbvio que o PIB não é um índice de bem-estar nacional; a razão mais saliente para este fato é que a distribuição do PIB pode ser extremamente desigual. Mas o funcionamento do imperialismo cria um tipo particular de dicotomia dentro de um país do terceiro mundo que torna o PIB totalmente inadequado para medir o progresso econômico; de fato, o PIB serve para camuflar esta dicotomia que até tem tendência a crescer ao longo do tempo.

O imperialismo tem dois efeitos distintos numa economia contemporânea do terceiro mundo. Uma vez que tal economia está tipicamente localizada nos trópicos, os países industriais exigem dela uma série de produtos agrícolas (além dos minerais) que só a terra tropical é capaz de produzir, ou de produzir durante o período em que as regiões temperadas frias do mundo, que constituem a base do capitalismo, estão congeladas. Assim, para além do trigo e do milho, o imperialismo necessita de toda uma série de produtos primários do terceiro mundo, que ele próprio não pode produzir em nenhuma estação do ano, ou que só pode produzir na sua estação quente, mas não no seu inverno. Estes produtos têm de ser importados; mas a extensão da terra tropical é limitada e, uma vez que as práticas de expansão da fronteira agrícola, como a irrigação e outras mudanças técnicas que elevem a produtividade da terra, requerem tipicamente um Estado ativista, e o capitalismo opõe-se a toda espécie de ativismo estatal que apoie e promova não a si próprio, mas sim a agricultura camponesa, esta expansão da terra não está disponível num grau adequado. Os produtos tropicais são exportados rumo às metrópoles, reduzindo assim a sua absorção interna no terceiro mundo. Portanto, o imperialismo impõe necessariamente ao terceiro mundo uma compressão dos rendimentos, o que implica uma compressão da procura.

Uma das principais funções do regime neoliberal é abrir o terceiro mundo à exportação sem restrições de tais commodities e, para o conseguir, impor a compressão da procura como algo rotineiro. Esta abertura exige que a escolha das culturas pelos camponeses não seja influenciada por considerações de auto-suficiência alimentar nacional ou por necessidades locais, mas exclusivamente pelo “mercado”, o que significa o poder de compra das metrópoles. Para assegurar isto, nos países do Sul todo governo deve suprimir sobretudo apoios aos preços dos cereais alimentares, assim como à armazenagem de culturas alimentares para sustentar o sistema de distribuição pública, além de alinhar os preços internos aos preços internacionais por meio da eliminação de todas as restrições comerciais quantitativas e da imposição de tarifas nulas ou mínimas. É exatamente isto que a Organização Mundial do Comércio procura assegurar. Simultaneamente, os países industrializados continuam a conceder subsídios diretos muito elevados aos seus próprios produtores agrícolas de cereais e de algodão, etiquetando-os como “não comercialmente distorcidos”.

Se houver oferta insuficiente das culturas que a metrópole pretende importar, verifica-se então a inflação. Para contê-la, exige-se habitualmente medidas de compressão da procura as quais restringem necessariamente a procura interna e conduzem a uma maior oferta para a metrópole. O efeito global do regime neoliberal, através de todos estes mecanismos, é reduzir a disponibilidade líquida de cereais per capita no terceiro mundo e fazer com que as terras cultivem, ao invés, produtos que são procurados pela metrópole. É exatamente isto o que observamos.

Há um segundo impacto do imperialismo sobre os países do terceiro mundo. Este decorre do fato de a desindustrialização colonial ter deixado estes países com enormes reservas de mão-de-obra que mantêm os salários reais num nível de subsistência, apesar de os salários reais nas metrópoles continuarem a aumentar mais ou menos acoplados à produtividade do trabalho. Devido a esta ampliação do fosso entre os salários das duas regiões, as corporações multinacionais das metrópoles estão agora dispostas a instalar fábricas no terceiro mundo para atender não o mercado local, mas sim o mercado mundial. Esta relocalização de atividades das metrópoles para o terceiro mundo, em especial de atividades “de baixo nível” ou menos intensivas em qualificações, não é numa escala que absorva as reservas de trabalho, de modo a que o rebaixamento dos salários reais continua, exacerbado pela compressão dos rendimentos já mencionada; mas torna-se uma fonte de crescimento urbano, incluindo o que, no contexto do terceiro mundo, constitui emprego de rendimento médio.

Estes dois efeitos do imperialismo criam entre si uma estrutura dualista no terceiro mundo. O colonialismo, que criou no Terceiro Mundo “enclaves” onde opera o capital estrangeiro, de certo modo, deu origem a essa estrutura dualista. O Estado pós-colonial no Terceiro Mundo, que emergiu com base numa luta anti-colonial, havia-se empenhado em ultrapassar este dualismo – mas a substituição do regime dirigista pelo neoliberalismo recriou esta tendência em direção o dualismo no Terceiro Mundo, com o fosso entre os dois lados a aprofundar-se ao longo do tempo.

É certo que o fosso entre os trabalhadores do segmento “moderno” em crescimento do terceiro mundo e a sua contrapartida do segmento estagnado ou em declínio, como a agricultura camponesa e a pequena produção, não aumenta. Ambos os conjuntos de trabalhadores são vítimas tanto das reservas maciças e crescentes de trabalho que mantêm baixa a taxa de salário real, como da compressão da procura imposta para extorquir as necessidades da metrópole a partir da massa de terra tropical sem gerar uma inflação significativa. Mas o fosso entre a grande burguesia local e os profissionais de rendimento médio alto que se dedicam ao segmento “moderno”, por um lado, e os trabalhadores que se dedicam tanto aos segmentos moderno como ao tradicional, por outro, aumenta nitidamente; e isto tem também uma dimensão espacial, que se exprime mais claramente numa dicotomia rural-urbana.

Esta crescente dicotomia rural-urbana é claramente visível nos próprios dados oficiais indianos. Se considerarmos a magnitude da pobreza nutricional, definida como o acesso a menos de 2100 calorias por pessoa por dia na Índia urbana e menos de 2200 calorias na Índia rural, então a proporção da população urbana abaixo desta norma aumentou de 57% em 1993-94 para cerca de 60% em 2017-18. Na Índia rural, pelo contrário, esta proporção aumentou de 58% para mais de 80% durante o mesmo período. (Os dados do Inquérito Nacional por Amostragem, a partir dos quais estes cálculos são efetuados por Utsa Patnaik num livro a publicar em breve, foram entretanto retirados pelo Governo da Índia devido ao que eles mostram). De fato, sob o governo da NDA, que tem seguido uma política neoliberal agressiva e desavergonhada, esta dicotomia aumentou consideravelmente.

Perante uma dicotomia tão drástica e acentuada entre dois segmentos da economia, a utilização de uma medida única como o PIB serve como um dispositivo de camuflagem. Não é apenas o fato de a crescente desigualdade de rendimentos tornar o PIB uma medida inadequada do bem-estar econômico, uma proposição que é facilmente aceita; mas o fato de esta crescente desigualdade ter uma dimensão espacial, recriando uma estrutura econômica dualista, sob a ascendência do neoliberalismo que representa uma reafirmação do imperialismo. A utilização do PIB serve, portanto, para esconder esta crescente dicotomia estrutural que o imperialismo introduz. Serve, em suma, para camuflar o funcionamento do imperialismo.

Mas isso não é tudo. Todas as estimativas preliminares do PIB na Índia são feitas com base nos dados do setor de grande escala e a taxa de crescimento do setor de grande escala é atribuída em muitos casos ao setor de pequena escala como um passo “provisório”. Mas isto implica partir do princípio de que o setor em declínio está a crescer tão rapidamente como o seu homólogo, o que é uma caricatura chocante da verdade.

Prabhat Patnaik é um economista indiano de orientação marxista-leninista. Entre seus livros estão Accumulation and Stability Under Capitalism (1997), The Value of Money (2009), e Re-envisioning Socialism (2011).