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João Quartim de Moraes: Orientalismo e colonialismo

20 de fevereiro de 2024

Artigo de João Quartim de Moraes

Há orientalistas, mas não ocidentalistas. Se o Oriente se tornou objeto de estudo, é porque tinha se tornado antes objeto de dominação dos ocidentais

Na Introdução de Orientalism, o livro publicado em 1978 que o tornou merecidamente célebre, o grande intelectual palestino Edward Said assume que muito do “investimento pessoal” em sua obra deriva da consciência de ser “oriental”. As aspas são carregadas de ironia, como bem sabem seus leitores. Nascido em 1935 numa família cristã, em Jerusalém, ainda bem garoto ele e seu povo conviveram com as atrocidades de que se encarregavam os esquadrões da morte facho-sionistas para roubar terras e casas de seus legítimos proprietários árabes.

Em 1948, consumada a tragédia da Palestina com a fundação do Estado de Israel, refugiou-se no Egito com a família. Seguiu depois para os Estados Unidos, onde desenvolveu brilhante carreira acadêmica, tornando-se um dos mais reputados professores de literatura inglesa do país. Nem por isso esqueceu a causa palestina.

Orientalism é uma crítica rigorosa e bem documentada do imperialismo e do colonialismo cultural e em especial da grande falácia ideológica contida na própria formação da disciplina acadêmica que leva esse nome. Afinal, o que é o Oriente? Nada mais do que o negativo do Ocidente. Eles se definem contraditoriamente, um pelo outro. Mas essa relação é assimétrica. Cada um é o outro do outro, mas uns são mais outros do que os outros. Se há orientalistas, mas não ocidentalistas, se o Oriente se tornou objeto de estudo, é porque tinha se tornado antes objeto de dominação dos ocidentais, como tão certeiramente mostrou Edward Said em seu livro.

Essa dominação transparece nas conotações ideológicas associadas ao termo. O idioma imperial dominante possui as palavras “Occident” e “West”. Deixando de lado o sentido meramente astronômico (a direção onde o Sol se põe), as duas denotam uma ideia-força da geopolítica da “guerra fria”. “West”, esclarece-nos o respeitado Webster’s New World Dictionnary, engloba “the U.S. and its non-Communist allies in Europe and the Western Hemisphere”. O mesmo vale para o francês: “Occident”, segundo o dicionário Robert, designa em seu sentido “político” “a Europa ocidental, os Estados Unidos e, mais geralmente os membros da Otan”.

Sintomaticamente, a definição de “Oriente” que encontramos nos referidos dicionários (bem como, em inglês, a de “East”) não tem conotação política explícita: é a direção onde o Sol se levanta. Ironicamente, o Japão, que lá se encontra (é o “país do sol nascente”), está geopoliticamente vinculado ao sol poente, desde que, por força de duas bombas atômicas, tornou-se satélite estadunidense. Os dicionários têm de ser pragmáticos: o sentido lógico dos termos importa-lhes menos do que o uso que deles é feito pelas ideias dominantes.

A despolitização do termo “Oriente” confirma a crítica de Said ao colonialismo cultural: o Ocidente considera-o um objeto, exatamente por considerar a si próprio o sujeito da história mundial. Embora tenham saído fisicamente de suas antigas colônias, os países imperialistas hoje agrupados na Otan conservaram em larga medida o controle não somente de seus mercados mas também de sua ideologia. Quem resiste ao Ocidente deve ser neutralizado e se possível, subjugado.

Outra não é a motivação do longo e constante apoio imperialista ao sionismo. Vale lembrar que Theodor Herzl, fundador e primeiro ideólogo desse movimento, atribuiu ao futuro Estado judeu a missão de “fazer parte de uma muralha defensiva da Europa na Ásia, um posto avançado da civilização contra a barbárie”. Também vale lembrar que a segunda metade do século XIX foi marcada pela partilha territorial da Ásia e da África entre as grandes potências do imperialismo europeu em expansão.

Foi inspirados nessa vaga colonialista que os militantes sionistas decidiram resolver às custas dos árabes o problema das perseguições que sofriam no continente europeu, reunindo todos os judeus num único território, a Palestina. A inspiração colonialista deste programa trazia implícito o desígnio de tratar os árabes como os imperialistas cristãos europeus tratavam os “nativos” da periferia colonial: a ferro e fogo. O fato colonial que deu origem a Israel é baseado na força, muitas vezes no uso premeditado do terrorismo de massa.

Em Orientalism, Edward Said evocou, entre outros numerosos exemplos da mentalidade arrogantemente colonialista dos sionistas, o pensamento de Chaim Weizmann, que se tornaria o primeiro presidente de Israel (1948-1952). Instalado na Inglaterra em 1906, sua alta competência na química, notadamente na síntese da acetona utilizada em muitos explosivos, valeu-lhe, a partir de 1914, estreito contato com o aparelho de Estado e a máquina bélica britânica.

Para golpear o Império Otomano, aliado da Alemanha durante a primeira grande guerra, o governo inglês, confirmando a secular tradição de cinismo e perfídia que constituem marca registrada da diplomacia britânica, prometeu a independência aos árabes (que na época, constituíam 92% da população da Palestina), se eles se erguessem contra o jugo turco. Os árabes confiaram na promessa e, cumprindo sua parte no acordo, lutaram de armas na mão contra a dominação otomana.

Mas em 1917, o ministro do Exterior do Império Britânico, um certo Lord Balfour, atendendo à pressão da poderosa alta finança judaica, nomeadamente de Lord Rothschild, chefe do ramo inglês da célebre família de magnatas, prometeu também aos  sionistas um “lar nacional” na Palestina. Sem dúvida, os bons serviços prestados por Weizmann ao esforço bélico britânico terão também contribuído para essa funesta decisão.

Agradecido, o futuro presidente de Israel enviou a Balfour em 30 de maio de 1918 observações carregadas de preconceitos racistas: “Os árabes […] têm um só culto: poder e sucesso[…]. As autoridades britânicas, conhecendo[…] a natureza traidora dos árabes, […] devem vigiá-los cuidadosa e constantemente. Quanto mais correto tenta ser o regime inglês, mais arrogantes se tornam os árabes. […] O presente estado de coisas tenderia necessariamente em direção da criação de uma Palestina árabe se houvesse um povo árabe na Palestina. Esse resultado não será atingido porque o fellah está atrasado no tempo pelo menos quatro séculos e o effendi (termo turco que podemos traduzir por dignitário) é desonesto, mal-educado, ganancioso e tão impatriótico quão ineficiente”.

Elogiar o “correto regime inglês” (que havia solertemente atribuído a mesma terra a dois povos), além da bajulação, confirma que o sionismo desde o início associou-se ideologicamente e fez o possível para associar-se politicamente, na qualidade de sócio menor, ao colonial-imperialismo. Mas se a Inglaterra mentira aos árabes para ajudar os sionistas, mentiu principalmente para ajudar a si própria. Em 1916, enquanto os árabes da Palestina iniciavam o levante contra os turcos, o governo inglês, que lhes tinha prometido independência, assinou com a França o acordo secreto Sykes-Picot, dividindo os países árabes em “zonas de influência”. Os chefes sionistas conseguiram, entretanto, com a Declaração Balfour, ser incluídos, ainda que como papagaios de pirata, nestas trapaças colonialistas.

*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular)