Quem quer o socialismo no Brasil?
Partidos como PT, PSB, PDT, PSOL e PCdoB defendem em seus programas e estatutos a construção do socialismo; para atingir esse objetivo, é preciso unidade e crescimento social, político e eleitoral
Por Theófilo Rodrigues
“Não deixem o socialismo avançar”, defendeu o presidente da Argentina, Javier Milei, na Conferência de Ação Política Conservadora realizada nos Estados Unidos na última semana. No entanto, a despeito do clamor do líder argentino, o socialismo avança no cenário internacional sob a liderança da China.
Como bem registra o intelectual marxista chinês, Yang Ping, o movimento socialista mundial passou por três grandes ondas em sua história. A primeira onda teve início na Europa do século XIX, passando pelo surgimento do marxismo, pela criação da Associação Internacional dos Trabalhadores – a I Internacional – e por revoltas como a Comuna de Paris. A segunda onda teve início com a Revolução Russa de 1917 e passou pela criação da União Soviética e pelos diversos movimentos de libertação nacional ocorridos ao longo do século XX. Por fim, a terceira onda é marcada pelo processo de reforma e abertura levado adiante por Deng Xiaoping, iniciativa que permitiu a ascensão do “socialismo com características chinesas” no século XXI (1).
É essa terceira onda que assusta Milei e os conservadores reunidos na recente conferência realizada nos Estados Unidos. Mas como o Brasil se posiciona nesse processo? Ainda que com programas heterogêneos e interpretações distintas sobre o significado do socialismo, há no Brasil pelo menos cinco partidos políticos com representação congressual que dizem defender a construção do socialismo no país: PT, PSB, PDT, PSOL e PCdoB.
PT: socialismo democrático
Como sabemos, o programa do PT mudou bastante entre a década de 1980 e os dias atuais, mas a perspectiva do socialismo democrático ainda aparece em seus documentos. Por exemplo, o Art 1. do Estatuto do Partido dos Trabalhadores (PT) estabelece o socialismo democrático como objetivo partidário. Diz o Estatuto:
“O Partido dos Trabalhadores (PT) é uma associação voluntária de cidadãos e cidadãs que se propõem a lutar por democracia, pluralidade, solidariedade, transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas, jurídicas e culturais, destinadas a eliminar a exploração, a dominação, a opressão, a desigualdade, a injustiça e a miséria, com o objetivo de construir o socialismo democrático”.
Além do presidente da República, o PT possui 4 governadores, 8 senadores e 68 deputados federais.
PSB: Socialismo Criativo, Ecossocialismo e Nova Economia do Projetamento
O Partido Socialista Brasileiro (PSB) acaba de atualizar seu programa político justamente para renovar o seu conceito de socialismo. Seu programa de 162 páginas menciona a palavra socialismo por 54 vezes. De forma inovadora, o partido propõe um novo conceito de socialismo: o “Socialismo Criativo”.
De acordo com o Programa, “o socialismo brasileiro defendido pelo PSB constitui-se em um sistema de economia planejada, conduzido por um Estado democraticamente forte, inclusivo, participativo e construído coletivamente, capaz de superar as profundas desigualdades sociais”.
Diz ainda que “o Socialismo Criativo corresponde, também, a uma nova Economia do Projetamento, que implica um forte planejamento e comporta as várias formas de propriedades públicas e privadas”. Há aqui um elemento curioso: a ideia de “nova Economia do Projetamento” tem sido propagandeada pelo intelectual do PCdoB, Elias Jabbour, a partir de teses do economista Ignácio Rangel. De certo modo, o PSB parece ter se apropriado do pensamento de Jabbour para formular seu conceito de “Socialismo Criativo”, embora não o cite.
Do ponto de vista da perspectiva ambiental, o Programa explica que “a opção defendida pelo PSB é aproximar-se do movimento do ecossocialismo por sua contestação ao modo de produção e consumo capitalistas”.
No cenário internacional, o partido defende que “o Brasil se posicione a favor do multilateralismo, por meio do fortalecimento do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), dos países de língua portuguesa e de outros blocos assemelhados”. Além disso, diz o programa, “o PSB repudia com veemência a adoção de políticas intervencionistas e de bloqueios econômico, científico e tecnológico, a exemplo dos praticados pelos Estados Unidos da América (EUA)”.
O PSB possui o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, 3 governadores, 5 senadores e 14 deputados federais.
PDT: trabalhismo democrático
O Partido Democrático Trabalhista (PDT) prefere adotar, na maior parte das vezes, o termo Trabalhismo Democrático em vez de socialismo. Mas o socialismo como objetivo aparece em alguns de seus principais documentos (4).
Em seu Manifesto, por exemplo, o PDT afirma que é “da essência do Trabalhismo Democrático promover a diversificação e democratização das relações produtivas na direção do socialismo”. Em outra passagem do Manifesto, afirma: “Somos um partido que defende a Democracia, o Nacionalismo, o Socialismo, um partido nacional e popular”. De acordo com esse documento, “somente a participação popular nas decisões da vida nacional pode levar a um nacionalismo e a um socialismo fraterno e em liberdade”.
Vale registrar que o PDT é o representante brasileiro na Internacional Socialista – a II Internacional -, principal fórum dos partidos socialdemocratas no mundo.
O PDT possui 2 senadores e 18 deputados federais.
PSOL: Ecossocialista, anticapitalista e antiimperialista
O programa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) disponível em seu portal é o mesmo de sua fundação. Para o PSOL, “a defesa do socialismo com liberdade e democracia deve ser encarada como uma perspectiva estratégica e de princípios”. Com forte inspiração trotskista, o programa critica as “experiências totalitárias dos regimes stalinistas e as capitulações à ordem no estilo da 3ª via social-democrata” (5).
Em 2021, o 7° Congresso Nacional do partido aprovou uma resolução política que aponta “o ecossocialismo como solução estratégica no combate à crise ambiental que atinge o planeta e em especial o Brasil”. Vale lembrar que um dos principais formuladores do ecossocialismo no mundo é o intelectual marxista Michael Lowy, sociólogo com grande identificação com o PSOL (6).
O PSOL possui atualmente 13 deputados federais.
PCdoB: a questão nacional como caminho para o socialismo
Dentre os partidos de esquerda com representação congressual, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) é o único que adota em seu estatuto o marxismo-leninismo. Já no Art. 1 do Estatuto, lemos: “Organização política de vanguarda consciente do proletariado, guia-se pela teoria científica e revolucionária elaborada por Marx e Engels, desenvolvida por Lênin e outros revolucionários marxistas”.
O PCdoB se orienta pelo Programa Socialista para o Brasil, aprovado em 2009 (7). “O objetivo essencial deste Programa é a transição do capitalismo ao socialismo nas condições do Brasil e do mundo contemporâneo”, diz o documento. O partido explica que o documento “não trata da construção geral do socialismo, mas da transição preliminar do capitalismo para o socialismo”.
O centro desse programa é a afirmação de que o fortalecimento da Nação é o caminho para a transição ao socialismo. Esse fortalecimento é possível por meio de Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. “Conforme indica a tendência histórica objetiva, a solução viável hoje é o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, caminho brasileiro para o socialismo”, argumenta o programa do PCdoB.
Mas como construir esse projeto? O programa do PCdoB esclarece:
“A conquista da hegemonia pelas forças interessadas na transição ao socialismo exige acumulação de forças de caráter revolucionário via reformas estruturais e rupturas. Tal processo tem dois eixos básicos: o político e o prático. O primeiro é o movimento pela aplicação deste Programa, pelo crescimento e fortalecimento partidário e de demais forças progressistas. O segundo, a interrelação de três tarefas fundamentais imprescindíveis que, conjugadas na evolução do pensamento do PCdoB, adquiriram um fundamento que orienta sua ação prática. Tais tarefas são: relacionar a atuação na esfera institucional – governos democráticos e parlamentos e a construção de frentes amplas – com a intervenção política que tem por fim a mobilização e a organização das massas trabalhadoras e do povo, fonte principal de crescimento do Partido e força-motriz fundamental das mudanças; e a participação criadora e permanente na luta de ideias, com a finalidade de responder aos desafios da luta presente e futura”.
O PCdoB possui 7 deputados federais.
Qual o programa para o socialismo?
Em 1976, o intelectual italiano Norberto Bobbio publicou um provocador livro intitulado “Qual socialismo?”. Nele, Bobbio argumentava que uma grande dificuldade no debate público sobre o socialismo era compreender sobre o que cada um estava imaginando. “O socialismo é como a felicidade: todos o desejam porque cada um pode imaginá-lo de acordo com seus próprios desejos”, sugeria Bobbio (8).
Com efeito, a observação dos programas dos partidos da esquerda brasileira mostra que cada um deles reivindica o socialismo a partir de diferentes características. Mas será que isso é mesmo um problema?
Um século antes de Bobbio, mais precisamente em 1875, Karl Marx foi chamado a dar sua opinião para o programa de fundação do Partido Social Democrata Alemão (SPD). Naquele momento, a diversificada esquerda socialista alemã procurou criar um partido único, com um programa político também único, para disputar as eleições que se abriam no país com a expansão do sufrágio. A percepção era a de que, se separados eram fracos para combater o regime de Bismarck, unidos acumulariam mais forças na disputa eleitoral. Principais referências do movimento socialista alemão e internacional, Karl Marx e Friedrich Engels foram convidados para participar do processo de formulação do programa unificado. Apesar das críticas e das reservas apresentadas naquele documento que mais tarde passamos a conhecer como “A crítica ao programa de Gotha”, Marx proferiu naquela ocasião uma de suas célebres frases: “cada passo do movimento real é mais importante que uma dúzia de programas”. Marx não ignorava a importância de um programa político. O que Marx queria dizer era que, apesar de não o considerar o melhor possível, aquele documento representava a possibilidade real de unidade do movimento socialista na Alemanha. E isso era o mais importante (9).
Como sugerem Marx e Engels, ressaltar as diferenças programáticas que separam esses partidos interessa menos do que encontrar os pontos em comum que os unem na luta pelo socialismo. Pois “cada passo do movimento real é mais importante que uma dúzia de programas”.
Unidade do campo socialista em torno de Lula
Desde 2022, os partidos políticos que compõem esse campo estão unidos em torno do nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2022, todos esses partidos apoiaram a candidatura presidencial vitoriosa de Lula no segundo turno. Com a exceção do PSOL, todos compõem o atual governo federal desde 2023. O PSOL não compõe oficialmente, mas há quadros do partido que participam do governo e no Congresso Nacional a maior parte da bancada tem votado conjuntamente com o governo.
Unido, esse bloco possui hoje o presidente e o vice-presidente da República, 7 governadores, 120 deputados federais e 15 senadores. Essa força ainda é insuficiente para o tamanho do desafio proposto.
Em 2022, esse bloco precisou construir uma frente ampla com partidos de outros setores do espectro ideológico para impedir a vitória eleitoral do fascismo. A tática foi acertada. É preciso reconhecer, no entanto, que a atual frente ampla para a defesa da democracia não construirá o socialismo.
A construção do socialismo no Brasil, no contexto da terceira onda do movimento socialista internacional, depende da unidade e acumulação de força desse campo político formado por esses cinco partidos. Afinal, nenhum partido isolado tem condições de levar adiante esse enorme projeto. Como ressalta o programa do PCdoB, a transição ao socialismo exige “crescimento e fortalecimento partidário e de demais forças progressistas”.
Eis a grande tarefa dialética de nosso tempo: por um lado, manter a frente ampla em defesa da democracia; por outro, empreender esforços para que dentro da frente ampla haja um crescimento social, político e eleitoral dos partidos progressistas que altere a correlação de forças no país.
Pouco antes de ser assassinada, no início de 1919, Rosa Luxemburgo teve a oportunidade de realizar um potente discurso no Congresso de fundação do Partido Comunista Alemão. Nessa intervenção, Rosa sustentou o seguinte: “para nós, agora, não existe programa mínimo nem programa máximo; o socialismo é uma única e mesma coisa – isso é o mínimo que temos de realizar hoje” (10).
Articulando um pouco de Marx com um pouco de Rosa, poderíamos clamar nos dias atuais: unidade no movimento real e acúmulo de forças em torno da luta pelo socialismo – isso é o mínimo que temos de realizar hoje.
Notas:
(1) A China pensa a “terceira onda” socialista: https://grabois.org.br/2024/03/05/a-china-pensa-a-terceira-onda-socialista/
(2) Estatuto do PT: https://pt.org.br/wp-content/uploads/2018/03/estatuto-pt-2012-versao-final-alterada-junho-2017.pdf
(3) Programa do PSB: https://www.autorreformapsb.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Manifesto_e_Programa_do_PSB.pdf
(4) Manifesto do PDT: https://pdt.org.br/index.php/estatuto/
(5) Programa do PSOL: https://psol50.org.br/partido/programa/
(6) Resolução do 7° Congresso Nacional do PSOL: https://psol50.org.br/e-preciso-frear-o-sistema-ecossocialismo-e-solucao-estrategica-no-combate-a-crise-climatica-no-brasil-e-no-mundo/
(7) PCdoB – Programa Socialista para o Brasil: https://pcdob.org.br/documentos/programa-socialista-para-o-brasil/
(8) BOBBIO, Norberto. Qual socialismo? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 107.
(9) MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
(10) LUXEMBURGO, Rosa. Textos escolhidos. Vol 2. São Paulo: Ed. UNESP, 2011. p. 352.
Theófilo Rodrigues é cientista político.