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O curioso caso dos comunistas da Áustria

15 de março de 2024

Em breve, eles poderão governar a segunda e a quarta maiores cidades de um país em que a direita permanece dominante. Vale examinar as políticas, práticas e tendências que permitiram esta façanha

Por Antonio Martins

Algo inusitado e digno de exame está se passando com o Partido Comunista da Áustria (KPÖ) em Salzburgo, quarta maior cidade do país, capital do estado do mesmo nome e berço do compositor Amadeus Mozart. No último domingo, Kay-Michael Dankl, o candidato do partido à prefeitura, obteve 28% dos votos, ficando a um passo de liderar a disputa e assegurando passagem para o segundo turno, em 27/3. Seu adversário será Bernhard Auinger, do SPÖ, social-democrata. O resultado local contrasta com duas realidades.

Primeira: o cenário austríaco segue hostil. Os dois partidos que hoje controlam o Parlamento – ÖVP, Partido do Povo Austríaco, de direita e FPÖ, Partido da Liberdade da Áustria, de ultradireita) estão juntos no governo e, segundo pesquisas, podem manter esta condição nas eleições legislativas previstas para setembro deste ano. O KPÖ jamais conseguiu, desde 1959, os 4% de votos necessários para estar no Parlamento. Segunda: também em Salzburgo, os comunistas estavam, até há bem pouco, enfraquecidos e isolados. Em 2019, obtiveram apenas 0,8% dos votos, passando a 5,4% nas eleições extraordinárias de 2023. Nas duas ocasiões, a direita foi a mais votada. Ou seja: o crescimento do KPÖ se deu no mesmo período em que a onda ultraconservadora mais se espraiava e fortalecia em toda a Europa. O que estará acontecendo? Que mudou no projeto e práticas do partido? Algo sugere que o cenário político lastimável reinante no Velho Continente pode se alterar?

Kay-Michael Dankl: no segundo turno em Salzburg, desafiando supremacia da direita

Aos 35 anos, o historiador e guia de museus Kay-Michael é uma das duas personagens centrais para explicar a ascensão notável do KPÖ. O site Euractiv descreve, em linhas gerais, seu programa e perfil. O tema central da campanha à prefeitura de 2024 foi habitação. Salzburgo tem os aluguéis mais caros da Áustria depois da capital, Viena. A especulação imobiliária pesa. Os interesses dos partidos tradicionais impedem-nos de confrontar o problema. A construção de novos apartamentos está emperrada há anos. Tanto o candidato do KPÖ quanto o do SPÖ propuseram enfrentar o problema – daí sua ascensão, e o declínio do ÖVP/FPÖ, antes hegemônicos em Salzburgo.

Kay-Michael agrega a esta batalha uma atitude rara, como político. Membro do conselho da cidade (equivalente às câmaras de vereadores brasileiras) desde 2019, ele age como uma espécie de assistente social, narra o Euractiv. Recebe, pessoalmente, em seu gabinete todos os que o procuram. Esta atividade tornou-se conhecida nas redes sociais. O partido integrou-se à vida social da cidade. Anexa à sede há um salão onde ocorre a maior parte das festas universitárias de Salzburgo. Kay-Michael orgulha-se de o KPÖ ter crescido em Salzburgo justamente no pleito em que o índice de comparecimento às urnas chegou ao recorde de 71%. O partido, conta ele, foi capaz de quebrar o “tabu do voto inútil” e levar às urnas boa parte dos que antes se ausentavam.

A 280 quilômetros de Salzburgo e também ao pé dos Alpes está Graz, segunda cidade mais populosa da Áustria. Capital do estado da Estíria, seu centro histórico foi denominado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. A prefeita, Elke Kahr, é uma precursora do projeto político que Kay-Michael tenta seguir. Comunista, elegeu-se em 2021, surpreendendo pesquisas que davam como certa a vitória do ÖVP. Governa desde então em aliança com verdes e social-democratas. Filha biológica de um estudante iraniano, foi adotada aos 3 anos por uma família da classe trabalhadora.

Elke Kahr, prefeita de Graz: quase 80% do salário doado a quem precisa

Em pouco mais de dois anos de mandato, mostra matéria na Jacobin, Elke foi capaz de mudar o cenário da cidade. A Habitação, também aqui, foi central. Houve instituição de aluguéis sociais e vasta construção de moradias pela prefeitura (inclusive para os imigrantes, antes excluídos pelo ÖVP/FPÖ). Além disso adotou-se, após batalha política, um “cartão social”, que garante acesso a um leque de serviços públicos (entre eles, transporte) por uma anuidade de 50 euros (R$ 270). Elke quer agora estendê-lo a todos os trabalhadores. A prefeita esforça-se agora para construir uma rede de jardins de infância públicos e gratuitos e por reduzir as tarifas sobre a água e o lixo.

Elke faz uma defesa muito concreta do Comum. “Acredito que tudo aquilo de que todos necessitam – casas, educação, saúde e todas os serviços de oferta geral, como a eletricidade, deve ser de domínio público. O movimento dos trabalhadores perdeu força, ao abrir mão destas conquistas”, diz ela. Diz buscar uma forma particular de transparência: “A sociedade precisa saber tudo o que se passa no Conselho, e este deve estar próximo dos dramas da população”. Já recorreu mais de uma vez a referendos. Todo o KPÖ adota, como norma, limitar os vencimentos de seus representantes em governos ou conselhos a 2400 euros (R$ 12.960). Todo o excedente recebido do Estado é doado a pessoas necessitadas, em distribuição pessoal segundo demanda. Alguns chamam o gesto de populismo. A população parece ver como um contraponto às benesses apropriadas pelos políticos.

No programa e nas práticas singulares do KPÖ parecem estar as raízes de sua surpreendente ascensão em Salzbur e Graz. Mas haverá também no ambiente político da Áustria e da Europa algo que favoreça uma nova ação de esquerda? Será possível interromper a ascensão da ultradireita, que parece contaminar todo o Velho Continente?

Assinada por Nikolaus Kurmayer, a análise do Euracity sugere que sim. [Em Salzburgo], Kay-Michael Dankl obteve 28% dos votos, enquanto a ultra direta, há pouco fortíssima, ficou abaixo de 10%”. Um satírico Partido da Cerveja está chegando a 8% dos intenções de votos.”. O autor conclui: “Um grande número de austríacos parece desesperado por ar fresco, por algo novo – venha da ultradireita ou da ultraesquerda. É nesse contexto que a volta dos comunistas precisa ser vista”.

Publicado originalmente em Outras Palavras.