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Regular as big techs antes que seja tarde demais: um debate marxista

14 de abril de 2024

O modelo econômico das grandes empresas multinacionais da internet é a grande agenda de fronteira a ser debatida pelo marxismo no século XXI. A regulação das plataformas digitais é uma urgência. O arquivamento do relatório Orlando Silva foi uma derrota conjuntural. Ainda é possível reverter esse processo?

Por Theófilo Rodrigues

Os recentes ataques do bilionário Elon Musk contra a soberania nacional ativaram na esfera pública brasileira a percepção sobre a necessidade de regulação das chamadas big techs, as grandes empresas multinacionais que concentram capital pelo manejo das plataformas digitais baseadas em algoritmos.

Mas, ao mesmo tempo em que Musk ativou na sociedade civil e no governo federal a urgência dessa regulação, a decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, de engavetar o relatório formulado pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB) em torno do PL 2630/2020 foi um grande balde de água fria nas pretensões regulatórias democráticas.

Longe de um mero debate conjuntural, a reestruturação produtiva promovida pelas plataformas digitais está reorganizando modos de produção nos países ocidentais nesse primeiro quarto do século XXI. Esse, aliás, é um dos grandes temas de fronteira da literatura marxista, como indicam os debates entre Yannis Varoufakis, Cédric Durand, Jodi Dean e Evgeni Morozov, entre tantos outros.

A regulação do setor econômico das big techs é uma urgência. Mas como fazer para que o Congresso Nacional, com uma ampla maioria pertencente ao espectro político da direita, assuma essa responsabilidade?

A regulamentação nunca realizada dos meios de comunicação no Brasil

É preciso dizer que o histórico de regulação das comunicações no Brasil nunca obteve muito sucesso. Como já tive a oportunidade de argumentar alhures, embora os constituintes tenham apresentado na Constituição de 1988 a preocupação com os limites necessários aos meios de comunicação, ainda hoje os principais artigos – arts. 220 ao 224 – não foram regulamentados pelo Congresso Nacional de modo a serem efetivados (1). 

O Art 221 da Constituição, por exemplo, sustenta que toda a produção cultural na televisão e nos rádios deveria ser regionalizada. Ou seja, o habitante do Acre deveria ter o direito de ter na televisão e no rádio programas produzidos naquele estado; mas não é o que acontece, pois o que impera é a reprodução sudestina por todo o país. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB) chegou a apresentar o Projeto de Lei 256/1991para regulamentar esse artigo. Mas, como era de se esperar, ele nunca foi aprovado devido ao lobby dos grandes meios de comunicação do país. O mesmo vale para o artigo 223 que trata da complementariedade entre os serviços público, privado e estatal de comunicação e para o artigo 220, que estabelece a proibição do oligopólio da propriedade dos meios de comunicação no país. A antidemocrática falta de regulamentação da comunicação é o que vale no Brasil.

Esse cenário de desregulação que fazia com que televisão, rádio e imprensa realizassem intervenções antidemocráticas na política brasileira se tornou mais evidente nos últimos anos com o papel das fake News nas redes sociais. Mas o debate não é apenas sobre um novo instrumento de disseminação assimétrica e antidemocrática de informações: o que está em curso é também uma reestruturação produtiva do capital no século XXI.

O capitalismo informacional de Castells

Foi provavelmente o sociólogo espanhol Manuel Castells o primeiro a observar o surgimento do capitalismo informacional no cenário global. Em seu clássico A sociedade em rede, livro de 1996, Castells percebeu que o processo de reestruturação produtiva empreendido a partir da década de 1980 organizou um novo sistema econômico e tecnológico que pode ser caracterizado como capitalismo informacional. A ideia central era a de que a revolução tecnológica da informação garantiu ao capital uma transnacionalização da produção e, posteriormente, um aprofundamento da exploração do trabalho e da produtividade. Castells estava olhando para os novos sistemas de computadores utilizados nas fábricas e para o advento da internet na década de 1990 (2).

Mas Castells não poderia imaginar naquele momento como o capital se reorganizaria a partir da internet no século XXI, em particular com os algoritmos das big techs. Mais do que uma nova forma de concentração de capital, o que começou a ser construído de forma acelerada foi uma nova gestão ideológica de consciências, um contingenciamento democrático nunca visto.

O debate marxista sobre a economia política dos algoritmos

Esse novo mundo de controle dos algoritmos sobre a democracia tem gerado enormes debates no seio do marxismo.

Para alguns, como o economista grego Yannis Varoufakis, o economista francês Cédric Durand e a cientista política estadunidense Jodi Dean, trata-se de um tecnofeudalismo ou neofeudalismo. Ou seja, trata-se de um novo modo de produção que está em processo de substituição do capitalismo. Para esses autores, a mão invisível das big techs promove uma regressão feudal, onde a nova terra que aprisiona os servos é o mundo digital. “Se o feudalismo foi caracterizado por relações de dependência pessoal, então o neofeudalismo é caracterizado pela dependência abstrata e algorítmica das plataformas que fazem as mediações em nossas vidas cotidianas”, explica Dean (3).

Esse tecnofeudalismo supera o capitalismo, mas é parasitário do capital. Como argumenta Varoufakis, “assim como o capitalismo precisava do feudalismo para garantir o abastecimento de alimentos, o tecnofeudalismo é parasitário, atraindo apoio essencial do setor capitalista para se sustentar”. Esse é um processo que aprofunda o conflito: “A tomada do capital das nuvens – a suplantação do capitalismo pelo tecnofeudalismo – está tornando nossas sociedades mais cheias de conflitos”, avalia o economista grego (4).

Claro, nem todos concordam com esse fim do capitalismo. Para o bielorusso Evgeni Morozov, por exemplo, o que estamos vivendo é o capitalismo de sempre agindo sob novas formas. “O capitalismo está se movendo na mesma direção de sempre, alavancando quaisquer recursos que possa mobilizar – e, nesse aspecto, quanto mais barato, melhor”, diz Morozov em sua Crítica da razão tecnofeudal. No lugar do tecnofeudalismo, Morozov prefere o termo tecnocapitalismo ou neoliberalismo digital (5).

Seja como for, o que todos concordam é que esse modo de produção precisa ser regulado.

Regular as big techs: o relatório Orlando Silva

Mas como regular? Para Durand, “é preciso dar aos poderes públicos, de uma escala local a uma transnacional, os meios para uma regulação do novo capital digital” (6). O mesmo é dito por Morozov: “Não há motivo para que os modelos comerciais das Big Techs, que se inseriram na esfera pública, não sejam sujeitos à regulação. Nós regulamos companhias telefônicas, firmas de televisão, jornais, e não há motivo por que companhias que claramente ganham muito dinheiro e podem arcar financeiramente com a regulação não possam aceitar um pouco mais de responsabilidade” (7).

No Brasil, a principal tentativa de regulação dessas big techs surgiu com o relatório construído pelo deputado federal comunista Orlando Silva (PCdoB). 

Em 2020, o Senado aprovou o PL 2630/2020 que ficou conhecido como PL das Fake News. O projeto então foi para a Câmara dos Deputados, sob a relatoria do deputado Orlando Silva. Marxista, com uma visão estrutural e de longo alcance do problema, Orlando rapidamente compreendeu que a regulação não poderia ser apenas das ditas fake News, mas sim de toda a estrutura das plataformas digitais das big techs.

O deputado reuniu os mais diversos especialistas no tema e as mais variadas organizações da sociedade civil para construir um relatório coletivo e com profundidade. Após dois anos de muito debate, esse relatório foi apresentado publicamente em 2023. Como era de se esperar, a reação das empresas multinacionais como Twitter, Google e Facebook foi imediata.

As quatro polêmicas em torno do relatório Orlando Silva

Como já registrei em outra ocasião, foram quatro as principais polêmicas em torno do relatório apresentado por Orlando Silva em 2023: a própria necessidade de regulação; a remuneração dos veículos jornalísticos; a imunidade parlamentar; e a agência regulatória (8).

A primeira polêmica foi certamente a própria necessidade da regulação. Aqui, dois diferentes atores se encontram: as big techs – isto é, empresas multinacionais como Google, Facebook e Twitter – que não querem ser reguladas e a extrema-direita que utiliza das fake News como prática cotidiana. Esses dois atores adotam o mesmo argumento supostamente liberal de que o PL estaria infringindo a liberdade de expressão. Argumento frágil, afinal, mesmo o liberalismo – vide John Stuart Mill em seu clássico “Sobre a liberdade” – entende que a liberdade de expressão precisa ser limitada quando possa oferecer danos aos demais. Não é possível que em nome da liberdade de expressão essas empresas de comunicação permitam a indução de assassinatos em escolas, promovam suicídios ou prejudiquem a saúde da população entre tantos outros fatos absurdos que são relatados diariamente. Por óbvio, assim como ocorre com qualquer outra empresa no mundo capitalista, as big techs também precisam ser reguladas.

Uma segunda polêmica gira em torno do mecanismo de remuneração dos veículos jornalísticos. Aqui, ao lado das big techs e da extrema-direita, soma-se um terceiro grupo formado por alguns poucos veículos da mídia progressista que adotam uma linha esquerdista e que discordam da estratégia da frente ampla. De acordo com o art 32., “os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores produzidos em quaisquer formatos, que inclua texto, vídeo, áudio ou imagem, ensejarão remuneração às empresas jornalísticas […]”. A crítica é dupla: por um lado, as big techs não querem ter esse custo adicional; por outro, a extrema-direita e uma minoria da mídia progressista acreditam que esse mecanismo servirá apenas para favorecer empresas que produzem notícias como a Globo. De fato, a Globo, pelo tamanho que possui, será beneficiada. Mas esses críticos esquecem de dizer que pequenos veículos independentes também receberão recursos que nunca receberam. No mundo ideal, todos esses recursos seriam pagos pelas big techs para um fundo – que tal chamarmos de “Fundo Setorial da Democratização da Informação” ? – que garantiria o financiamento da pluralidade de informação no país. Mas, no mundo real, o lobby e poder de agenda (agenda-setting) das grandes empresas de jornalismo não pode ser desconsiderado e nem subestimado.

A terceira polêmica trata da imunidade parlamentar no meio digital. Conforme o art. 33, detentores de mandatos eletivos dos Poderes Executivo e Legislativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderão ser alvos da fiscalização dessa lei. Especialistas entendem que isso seria um problema, na medida em que muitas vezes parlamentares da extrema-direita abusam da imunidade parlamentar para repercutir fake News.

Por fim, a quarta polêmica tem se dado em relação ao tema da autoridade regulatória. Alguns especialistas e pesquisadores acreditam que deveria ser criada uma agência reguladora própria para operacionalizar a nova lei. A Coalizão Direitos na Rede, por exemplo, entende ser necessária uma entidade autônoma de supervisão, que teria “o papel central de fiscalizar o cumprimento da Lei, em parceria com o Comitê Gestor da Internet, que fica responsável pela emissão de diretrizes”. As big techs, como era de se esperar, discordam dessa possibilidade. Em carta aberta divulgada no dia 27 de abril, o Google foi claro na crítica: “O PL 2630 coloca em risco o livre fluxo de informações na web ao prever a criação de uma “entidade reguladora autônoma” pelo Poder Executivo com funções de monitoramento e regulação da internet”. Uma terceira alternativa foi colocada no debate pelo presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Carlos Baigorri. Para Baigorri, a Anatel poderia ser essa entidade autônoma de supervisão do PL das Fake News. A Coalizão Direitos na Rede, contudo, divulgou uma nota pública no dia seguinte (28/04) contestando essa possibilidade. Importante lembrar que Baigorri foi indicado para a ANATEL pelo então presidente Jair Bolsonaro em 2021. Para reduzir os ataques ao PL, o relator considerou melhor retirar o artigo sobre o órgão regulador.

Sem interesse em enfrentar essas polêmicas, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, decidiu retirar a relatoria do projeto das mãos do deputado Orlando Silva em 2024 e passar para um novo gripo de trabalho.

Reação contra o arquivamento do relatório Orlando Silva

A reação da sociedade civil contra o arquivamento do relatório formulado pelo deputado Orlando Silva foi imediata. O Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé publicizou em 10 de abril de 2024 uma nota intitulada “Contra a ditadura das big techs e em defesa do PL 2630/2020: regular não é censurar as redes”. Na opinião do Barão de Itararé, organização liderada pelo jornalista Altamiro Borges, a decisão de Arthur Lira foi um “retrocesso gravíssimo”. A nota sustenta que a “decisão representa não apenas um retrocesso legislativo, mas também um desrespeito às inúmeras discussões qualificadas que ocorreram nos últimos quatro anos sobre o tema” (9).

A Coalizão Direitos na Rede, principal organização da sociedade civil brasileira a tratar dessa temática, também emitiu um posicionamento. Em sua nota, a Coalizão registrou a importância do relatório Orlando Silva:

“É fundamental ressaltar e destacar os esforços do relator Orlando Silva (PCdoB) na busca de um texto que dialogue com as diversas preocupações manifestadas pela sociedade civil. O parlamentar tem demonstrado um engajamento significativo na construção de regras que garantam direitos na rede, desde o Marco Civil da Internet, com reconhecida dedicação em ouvir as diversas vozes da sociedade e encontrar medidas adequadas para regular o ambiente digital de forma equilibrada e justa. Seu compromisso com a pauta, conhecimento do texto e capacidade de articulação são elementos que sustentam sua importância e nossa defesa de mantê-lo como relator do PL” (10).

Já o Comitê Gestor da Internet (CGI), sob a liderança da jornalista e pesquisadora Renata Mielli, divulgou uma nota recomendando que “a Câmara dos Deputados não abandone o legado, resultado destes 4 anos de debate, com participação da sociedade, e que considere como base para qualquer discussão a última versão do texto do PL2630/2020, assegurando, assim, a sua tramitação natural, garantindo a estabilidade e coerência no histórico de discussões em andamento” (11).

Que fazer?

O arquivamento do relatório Orlando Silva foi uma derrota conjuntural para o movimento pela regulação das plataformas. Mas isso não significa uma derrota final. Para reverter esse processo, pelo menos três ações precisam ser realizadas:

Em primeiro lugar, é preciso que o governo federal assuma a construção dessa regulação como uma agenda de Estado prioritária. Uma das causas da derrota do relatório Orlando Silva foi a falta de esforço do governo federal em assumir esse relatório como seu.

Em segundo lugar, como uma agenda de fronteira, não é possível que a regulação das plataformas seja uma prioridade apenas das organizações da sociedade civil que trabalham a questão da mídia. Toda a sociedade civil brasileira precisa pressionar pela aprovação dessa proposta.

Em terceiro lugar, contra o poder descomunal das big techs, é necessária a organização de uma enorme frente ampla. Isso significa fugir dos debates estreitos e sectários e somar aliados na burguesia brasileira e em seus representantes no Congresso Nacional e nos meios de comunicação.

A luta do deputado comunista contra o poder da maior organização do capital no século XXI foi heroica. O desfecho dessa batalha, que ainda não terminou, definirá o que será da democracia brasileira nas próximas décadas.

Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Iuperj/UCAM e organizador do livro “Democratizar a comunicação: teoria política, sociedade civil e políticas públicas”.

Notas:

(1) RODRIGUES, Theófilo; ORMAY, Larissa. Democratizar a comunicação: teoria política, sociedade civil e políticas públicas. Belém-PA: IOEPA, 2021.
(2) CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(3) Jodi Dean: https://newleftreview.org/sidecar/posts/same-as-it-ever-was
(4) Yannis Varoufakis: https://jacobin.com.br/2024/02/estamos-fazendo-a-transicao-do-capitalismo-para-a-servidao-tecnofeudalista/
(5) Evgeni Morozov: https://newleftreview.org/issues/ii133/articles/evgeny-morozov-critique-of-techno-feudal-reason
(6) Cédric Durand: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/616087-o-tecnofeudalismo-e-uma-especie-de-capitalismo-canibal-entrevista-com-cedric-durand
(7) Evgeni Morozov: https://diplomatique.org.br/lutar-por-soberania-tecnologica-sem-lutar-por-soberania-economica-e-inutil/
(8) Theófilo Rodrigues: https://grabois.org.br/2023/04/30/a-frente-ampla-em-torno-do-pl-das-fake-news/
(9) Barão de Itararé: https://baraodeitarare.org.br/site/noticias/sobre-o-barao/contra-a-ditadura-das-big-techs-e-em-defesa-do-pl-2630-2020-regular-nao-e-censurar-as-redes
(10) Coalizão Direitos na Rede: https://direitosnarede.org.br/2024/04/09/aprovacao-pl2630-fundamental-para-regular-plataformas-e-defender-democracia-brasileira/

(11) Comitê Gestor da Internet (CGI): https://www.cgi.br/esclarecimento/nota-publica-do-cgi-br-sobre-a-regulacao-das-plataformas-digitais-pelo-congresso-nacional-e-a-tramitacao-do-pl-2630-20/