O curioso “socialismo com mercado” no Laos
País socialista, até há pouco o mais pobre da Ásia, segue o exemplo chinês e abre-se a capitais externos – sem renunciar a dirigi-los. Também gesta uma complexa interação entre Marx e Buda. Primeiros resultados parecem animadores
Por Fernando Marcelino, publicado originalmente em Outras Palavras
O Laos, conhecido como país mais pobre da Ásia, é também o mais bombardeado da Terra. Os EUA lançaram 270 milhões de bombas em seu território, durante a guerra com o vizinho Vietnã. Tem 7 milhões de habitantes. Sem litoral (o único nessas condições, no sudeste da Ásia) e sobre uma superfície extremamente montanhosa, faz fronteira como China, Vietnã, Camboja, Tailândia e Myammar. Lá se desenvolve um experimento político singular.
O país consistia em três reinos separados durante os séculos XIV a XVIII. Foi colônia francesa entre 1893 e 1954, quando os reinos de Champasak, Luang Prabang e Vientiane uniram-se. Tornou de fato independente em 1953, com uma monarquia constitucional que durou apenas duas décadas.
Teve papel importante na guerra da resistência vietnamita contra os EUA, por permitir que o exército norte-vietnamita enviasse soldados e suprimentos para seu território, ao longo da chamada “Trilha Ho Chi Minh”. Pagou caro. Além de se envolverem diretamente na expansão da Guerra Civil Laosiana, os norte-americanos despejaram 2 milhões de toneladas de bombas em seu território, mais do que todas as que caíram durante a Segunda Guerra Mundial.
Quando os vietnamitas derrotaram os EUA em abril de 1975, forçaram os EUA a sair de toda a região. Um novo regime, o Pathet Lao assumiu o poder em dezembro de 1975, sete meses depois de seus vizinhos vietnamitas. A União Soviética proporcionou a maior parte da ajuda externa, especialmente às forças armadas. O país foi renomeado República Democrática Popular do Laos (RDP do Laos), e o Pathet Lao foi reorganizado como o Partido Revolucionário Popular do Laos (PRPL).
A jovem República Popular do Laos herdou um conjunto de circunstâncias difíceis: 10% da população morta como resultado das guerras colonialistas francesas e estadunidenses; outros 20% feridos ou permanentemente incapacitados; cerca de 10% refugiados no exterior e pelo menos 50% foram deslocados de alguma forma das suas aldeias natais. A esperança de vida era pouco inferior a 46 anos, a alfabetização era inferior a 25% e milhões de bombas americanas não detonadas cobriam o campo.
Como Mao Zedong é o pai do Partido Comunista da China e da Nova China, e Ho Chi Minn é o destacado líder do Vietnam, Kaysone Phomvihane é o líder do Partido Revolucionário Popular do Laos e do país. Assumiu o governo como primeiro ministro em 1975 e conservou o poder até sua morte, em 1992.
No caso do socialismo laociano, é necessário considerar seu pensamento como uma espécie de “marxismo-leninismo adaptado às circunstâncias laocianas”. Phomvihane propôs, após a independência do país e a saída da monarquia em 1975, que o país deveria enfrentar cinco prioridades antes da construção do socialismo: 1. “normalizar” a vida das pessoas (em termos de alimentação, vestuário e abrigo); 2. consolidar o poder do Partido (enraizar-se nas zonas monarquistas); 3. estabelecer instituições estatais e abolir instituições feudalistas e coloniais; 4. projetar a governança do pós-guerra; 5. “construir” a nação e integrar as minorias (mais de sessenta diferentes comunidades étnicas vivem no Laos, das quais o grupo “Lao” é o maior, com cerca de 40% da população).
A força motriz fundamental do pensamento de construção partidária de Kaisan Phomvihane é a necessidade objetiva do partido dirigente proletário de melhorar sua capacidade de governar e manter seu status de governante. Durante o período da revolução democrática nacional, o Partido Revolucionário Popular do Laos resolveu com sucesso o problema de construir um país com amplo caráter de massa onde o proletariado era pequeno e os camponeses e a pequena burguesia representavam maioria da população. Nos primeiros dias de reforma e abertura, os membros do partido focaram em construir o socialismo de acordo com as condições nacionais do Laos.
Uma de suas singularidades da sua experiência é que, na esfera cultural, o regime é protetor do budismo. Mais de 60% da população adere ao budismo Theravada, enquanto o restaste é orientado para religiões étnicas locais. No Laos, o marxismo sofreu diversas adaptações ao se fundir com esta religião, uma experiência singular em que a liderança do partido assumiu o papel de protetora do legado histórico e espiritual do Laos (traçada desde o reino de Lan Xang, que existiu do século XIV ao XVIII). Usando o simbolismo e a ideia budista de comunidade (“sangha”), o Partido aumentou sua legitimidade. Construiu novas estátuas de reis históricos. As crianças aprendem sobre Sidartha, o Buda. O partido mantém o centralismo democrático como princípio de organização.
Em 1976, os militares mais uma vez tomaram o poder na Tailândia, fechando a fronteira, intensificando seu apoio tailandês às forças terroristas no Laos que atacaram fazendas coletivizadas, sabotando a produção e assassinando funcionários comunistas. Ao mesmo tempo, a deterioração das relações entre o Vietnã e o Camboja afetou o Laos. Em 1977, o Vietnã e o Laos retomam as relações, assinando um tratado de amizade de 25 anos, com assessores vietnamitas fornecendo conhecimentos necessários nas políticas governamentais e econômicas.
Depois de se tornar independente em 1975, o então Laos estabeleceu os controles sobre a economia por meio do governo socialista centralizado até 1985. Fez-se um esforço para estabelecer comunas agrícolas, mas as medidas foram abandonadas pelo alto grau de impopularidade. Em 1981, o Primeiro Plano Quinquenal visava a autossuficiência, mas o crescimento econômico “lento” (aproximadamente 5% ao ano) foi julgado insuficiente. Durante esse período, o governo viu que o desempenho da economia era incapaz de atingir os objetivos esperados A gestão econômica era fraca devido à falta de técnicos qualificados.
Foi então que o Segundo Plano Quinquenal de 1986-1990 implementou o Novo Mecanismo Econômico (NME), estratégia que visava integrar lentamente partes da economia laosiana com a economia mundial sem sacrificar a sua autossuficiência alimentar. Assim o Laos deu início ao “socialismo de mercado com características laosianas”, com a transição de uma economia de planejamento centralizado para uma “economia multissetorial” ou híbrida, definida como uma “economia de mercado regulada pelo Estado”. As restrições ao comércio interno foram removidas e um mercado livre foi introduzido para os produtos agrícolas. O governo também liberalizou o comércio internacional e buscou investimentos estrangeiros de seus vizinhos. Como na adoção de reformas socialistas de mercado na China e no Vietnã, essa transição ocorreu sem nenhuma liberalização política correspondente, mantendo o partido leninista no poder. No final do segundo plano quinquenal, a produção de arroz duplicou e a produção de açúcar aumentou 40%. Em agosto de 1991, a Assembleia Suprema do Povo (SPA) aprovou uma nova Constituição – a primeira, desde que a anterior fora abolida em 1975. Entre suas disposições está a afirmação do direito à propriedade privada e a expressão “democracia e prosperidade” substituiu “socialismo” no lema nacional. Em 2003, uma nova Constituição foi aprovada salientado que a economia opera de acordo com o princípio da economia de mercado.
Em 1989, as relações sino-laotianas voltaram ao normal. Durante a década de 1990 e 2000, uma série de medidas à moda chinesa foram introduzidas: eliminação de restrições microeconômicas que limitam a produção privada, legislação para encorajar o investimento estrangeiro direto (IED), leis comerciais, maior atenção à estabilidade macroeconômica com melhoria da política orçamentária e monetária, privatização e fusão da maioria das empresas estatais, com exceção das vinte, que foram designadas como “estratégicas para o desenvolvimento”.
O Laos busca usar o capital estrangeiro para desenvolver indústrias estratégicas, como mineração e hidrelétricas, além de prover necessidades da população. Graças às barragens de seus rios, o país hoje produz muito mais energia do que precisa. Tailândia, Vietnã e China são os maiores consumidores dessa energia.
Em 1998 e 1999, a crise econômica asiática atingiu o Laos, resultando em aumento dos gastos do governo, inflação repentina e desaceleração do crescimento que chocou a liderança do partido, o que levou neste breve período as reformas em direção a uma economia de mercado serem suspensas ou concordadas com relutância. Porém, a partir de 2000, com a retomada gradual das reformas houve um aumento constante do investimento, especialmente em energia hidrelétrica, mineração, agricultura comercial e turismo, com crescimento econômico em média 8% ao ano desde 2005.
Desde o início das reformas, o país fez progressos consideráveis. Na boa e velha fórmula de Lênin (Socialismo = soviets + eletricidade), fez um bem sucedido programa de eletrificação. Em 1990, o acesso à eletricidade era de apenas 15%, indo para 99% em 2020. Nas áreas rurais, as famílias possuem direitos ao uso da terra agrícola, que são transferíveis e herdáveis. Os preços passaram a ser fixados pelo mercado. A moeda nacional, o Kip, é conversível e os lucros de investimentos estrangeiros podem ser transferidos para o exterior. O Laos tornou-se amplamente integrado aos mercados regionais, inclusive desenvolvendo um mercado de capitais. O sistema bancário é relativamente forte e bem capitalizado, porém altamente dolarizado e, portanto, vulnerável em caso de crises financeiras.
O Laos seguiu seu vizinho chinês na criação de Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) como parte do novo motor econômico que permite políticas econômicas especiais e medidas governamentais flexíveis que conduzem a negócios que não existem em outras partes do país. Desde 2000, as ZEEs tornaram-se a principal estratégia empregada pelo governo para direcionar a economia a sistemas econômicos baseados no mercado e um atalho para a urbanização e o desenvolvimento de infraestrutura por meio de investimento estrangeiro. Atualmente, doze ZEEs foram concedidos a investidores estrangeiros, quatro dos quais são operados por empresas chinesas.
A crise financeira global de 2008 reduziu a quantidade de investimento originado do Ocidente, mas foi logo substituído por um maior investimento de nações asiáticas, especialmente Tailândia, China e Vietnã.
Na última década, a China tornou-se um dos maiores investidores nos países do Sudeste Asiático, sendo, em 2018, a fonte de quase 80% do investimento estrangeiro direto no Laos. As doze zonas econômicas especiais já atraíram investimentos de quase US$ 6 bilhões e criaram milhares de empregos para a população local. E o governo está planejando até 40 ZEEs nos próximos 10 anos.
O socialismo com mercado que está sendo praticado no Laos apresenta alternativas para países que não são polos regionais e ainda profundamente agrários. O país espera conquistar seus objetivos de longo prazo, pois continua preservando o atual sistema político e desenvolvendo a economia, realizando seu potencial nacional, elevando os padrões de vida, reduzindo drasticamente a pobreza, industrializando-se de acordo com os interesses nacionais, com a meta de se tornar um país de renda média até 2030.
China, Vietnã e Laos compartilham um legado de abertura a capitais privados combinada com planejamento econômico, coletivização da agricultura e empresas estatais dominantes. Todos os três países introduziram reformas de mercado na década de 1980, com Gaige kaifang (‘Reforma e abertura’, 1978/79), Doi moi (‘Renovação’, 1986) e Chin Thanakaan Mai (‘Novo Pensamento’ ou ‘Novo Mecanismo Econômico’ , 1986) representando o início oficial das transformações econômicas, respectivamente, na China, Vietnã e Laos. Os três têm um desempenho melhor do que países com nível semelhante de renda per capita em uma ampla gama de indicadores de desenvolvimento social e material.
A China atraiu grandes investimentos estrangeiros, especialmente em seu setor de exportação, mas também conseguiu desenvolver um forte setor de indústria doméstica e está se movendo em direção à alta tecnologia. O Vietnã enfrentou uma “transição estagnada” e conseguiu desenvolver principalmente um setor industrial de mão-de-obra intensiva liderado pelo IDE, que depende em grande parte da tecnologia estrangeira. Laos é, a este respeito, parte de uma situação mais desfavorável, com uma economia em grande parte agrária e exportadora de recursos, porém com redução de vulnerabilidades externas e internas.
As diversas iniciativas do Corredor Econômico da Península China-Indochina, um dos seis pilares na Nova Rota da Seda, ou Belt and Road Iniciative (BRI), geram uma nova sinergia entre os socialismos de mercado de China, Vietnã e Laos. São diversas artérias terrestres, com diversas camadas de transporte, telecomunicações, infraestrutura, indústrias, energias, finanças, comércio e projetos econômicos conectando os três países socialistas.
A ferrovia de alta velocidade que conecta Kumming, na província de Yunnan na China, até Vientiane no Laos, tem 420km e valor de 6 bilhões de dólares. Ela foi iniciada em 2016 e concluída em 2021, possui 72 túneis, 170 pontes e trens que circulam a 160km por hora. Em seguida, ela vai unir o sudeste da Ásia Continental até Cingapura.
No setor de energia, estima-se que o Laos tenha potencial para gerar 18.000 MW tecnicamente exploráveis – 1,3 vezes a potência da Usina de Itaipu. Para desbloquear esse potencial hidrelétrico, o governo do tem planos ambiciosos de construir 70 barragens ao longo dos afluentes do rio Mekong. Muitos deles estão sendo ou serão construídos por empresas hidrelétricas chinesas.
Em um mundo com extrema necessidade de novos modelos, as “economias de mercado socialistas” asiáticas podem oferecer uma alternativa realista para outros países em desenvolvimento? O modelo contém importantes lições para outros Estados, mas devido às suas características distintas, bem como às variações locais entre China, Vietnã e Laos, a economia socialista de mercado não representa um modelo facilmente transferido e copiado. Todas as experiências de socialismo de mercado são variações adaptadas às condições nacionais. Expressam um ordenamento econômico mais flexível e diferenciado, no qual a propriedade estatal dos recursos estratégicos e dos principais meios de produção – questão não negociável – convive com outras formas de propriedade pública não estatal, com empresas mistas nas quais alguns setores do capital privado se associem com corporações públicas ou estatais, e com cooperativas ou formas de “propriedade social” fora da lógica da acumulação capitalista.
A experiência do Laos mostra que é possível iniciar transições socialistas de mercado, mesmo em países onde inexistem as bases materiais para edificar o socialismo, com a articulação de um governo centralizado e diferentes formas de propriedade. Isso não está isento de problemas, mas é processo necessário para elevar as condições de vida das classes populares e orientar a economia e a sociedade no sentido socialista, o que exige uma elaboração mais audaz e rigorosa sobre o socialismo hoje, considerando as experiências reais.
Fernando Marcelino é analista internacional, doutor em sociologia na UFPR e militante do MPM – movimento Popular por Moradia