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Newton da Costa, o pensador brasileiro da contradição

22 de abril de 2024

Artigo do diretor Científico da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), Cristiano Capovilla

É com grande pesar que soubemos através das redes sociais do falecimento do Profº Newton Carneiro Affonso da Costa, aos 94 anos. Matemático, lógico e filósofo da ciência, da Costa graduou-se em engenharia civil (1952) e matemática (1956) tendo concluído o doutorado em Análise Matemática e Análise Superior em 1961, todos pela Universidade Federal do Paraná. Embora tenha lecionado como professor visitante em instituições da Austrália, França, Estados Unidos, Polônia, Itália, Argentina, México e Peru, a sua formação acadêmica e carreira docente se deu em universidades brasileiras, sendo professor catedrático da UFPR, professor titular de matemática e de filosofia na USP, e professor titular na Unicamp.

O trabalho que projetou o profº Newton da Costa internacionalmente foi Sistemas Formais inconsistentes, de 1964, apresentado inicialmente como tese de cátedra na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFPR. Neste opúsculo, desenvolve um sistema formal que circunscreve o ancestral princípio da não contradição a um domínio particular de aplicação, revogando sua validade universal,  permitindo, a partir daí, inferências de proposições axiomáticas inconsistentes, mas não triviais. Tal lógica, nominada de “paraconsistente” pelo filósofo peruano Francisco Miró Quesada, se situa no âmbito das lógicas não clássicas (também chamadas de não aristotélicas), obtendo várias aplicações em diferentes áreas da ciência, como computação, matemática, física das partículas, teoria da informação, entre outras.

Lógica clássica, consistência e não contradição

Os impactos das lógicas paraconsistentes foram imediatos, pois que reavaliavam um dos mais poderosos cânones do pensamento racional ocidental: a exclusão a priori da contradição como condição da validade e consistência dos sistemas formais.

Como sabemos, na tradição atribuída a Aristóteles, a lógica, como organon,  trata dos princípios que condicionam o raciocínio correto, sendo eles o da identidade: se uma proposição é verdadeira, então ela é verdadeira (A→A) ; o da não contradição: dada uma proposição e sua negação, pelo menos uma delas é falsa (~ (A ˄ ~A)) e o do terceiro excluído, formalmente: dada uma proposição e sua negação, pelo menos uma dela é verdadeira (A v ~A). Em seu conjunto, essas “leis do pensamento” constituíram o cerne da legislação racional que conduziu os desenvolvimentos da lógica por mais de dois mil anos.

O filósofo Immanuel Kant, ao conceber a meticulosa Crítica da Razão Pura, estabeleceu, no âmago da nossa faculdade de julgar ou entendimento, a lógica transcendental, que conforma o intelecto em que os objetos são conhecidos sem qualquer recurso à intuição sensível. Ela subdivide-se em analítica e dialética. A analítica trata da dissecação do entendimento nos princípios e conceitos que permitem a conjunção das intuições puras de espaço e tempo com os modos inerentes à faculdade de julgar, gerando um conhecimento que se refere a priori aos próprios objetos.

 A segunda parte da sua lógica, a dialética transcendental,  diz respeito à tentativa que a razão faz para conhecer pelo pensamento, mas toda vez que assim procede, submerge em contradições, antinomias e paralogismos, que seriam evidências definitivas da sua ilegitimidade no campo do conhecer. Ao buscar fazer valer seus direitos cognoscentes junto ao entendimento, a razão mergulha na “ilusão dialética”. O idealismo transcendental legou uma tradição de discurso sobre a cognoscibilidade que se realiza unicamente nos marcos da lógica clássica, resultando numa gramática teórica que implica na necessária exclusão da contradição.

Já na transição do século XIX ao XX, o matemático David Hilbert, conterrâneo de Kant, absorve essas determinações filosóficas e estabelece os parâmetros formalistas para os fundamentos da matemática que, em princípio, devem ser: completo, composto por axiomas independentes e consistente, isto é, livre de contradições. Mais tarde, nessa mesma senda, Karl Popper vai contestar o status lógico da dialética por normalizar a contradição, alegando o princípio clássico ex contradictione sequitur quodlibet, que uma teoria que tenha duas afirmações contraditórias, pode-se dizer o que quiser dela. Assim, qualquer sistema racional que implica em contradição é inteiramente inútil como teoria, pois que é trivial. Em todos esses casos havia a compreensão de que a lógica, em seu aspecto formalista, estava fundamentalmente completa, que seus princípios básicos estariam inalterados e idênticos a si mesmos desde Aristóteles e que a não contradição era a pedra de toque da axiomatização.

Incompletude, lógicas não clássicas e dialética.

No início do século XX, com a publicação do trabalho seminal de Kurt Gödel Sobre teoremas formalmente indecidíveis dos Principia mathematica e sistemas relacionados, em que apresenta seu teorema da incompletude, estabelecendo as limitações inerentes a quase todos os sistemas axiomáticos – que é amplamente interpretado como a demonstração da impossibilidade da tão sonhada consistência de Hilbert -, descortinou-se novos horizontes para os progressos realizados por Lukasiewicz (lógica não clássica multivalorada) e Vasilév (lógica tolerante à contradição), que mais tarde conduziu Jaskowski a elaborar um procedimento formal de cálculo de tolerância a inconsistência chamado de lógica discursiva, uma espécie de lógica paraconsistente no nível proposicional, e que hoje é considerada uma precursora teórica do trabalho de Newton da Costa.

É exatamente neste ponto crucial da compreensão científica que as contribuições originais de da Costa são vanguardistas, pois que estão situadas no mesmo estágio dos desenvolvimentos disruptivos da lógica-matemática, a saber, as geometrias não euclidianas e as lógicas não clássicas. Em sua  apresentação  à  reedição  de  Sistemas  Formais  Inconsistentes, Décio  Krause cita:

“Decorre que, sob os aspectos sintático e semântico, uma linguagem objeto onde aparecem contradições não pode ser a priori excluída. Neste caso, é evidente, não seria conveniente utilizar, na estruturação da linguagem em apreço, o cálculo lógico tradicional pois (…) isso a transformaria (…) em algo destituído de qualquer relevância. No entanto, se modificarmos convenientemente  as regras “lógicas” a utilizar, evitar-se-ia essa dificuldade e nada a diferenciaria, em essência, das linguagens consistentes. (DA COSTA, 1993, p. vii)”.

A lógica paraconsistente de da Costa dispõe de teorias formais consistentes e inconsistentes no mesmo domínio e por meio do desenvolvimento de um sistema dedutivo em que as contradições não precisam ser excluídas, visto que demonstra que a contradição não significa, necessariamente, trivialização do sistema lógico ou da teoria em que irrompe. Esse acolhimento da contradição na lógica, embora já tivesse sido exposto na filosofia, trazia mais uma vez à baila a relação entre a lógica e a dialética. Em entrevista a Revista Princípios, afirmou:

“Com o professor Robert G. Wolff tentei aplicar certos tipos de lógica paraconsistente na formalização de determinados aspectos da dialética. Simplesmente tomei alguns princípios de uma determinada concepção da dialética e procurei verificar se não seria possível transformar em algo logicamente sensato. (…) Mostrei que existem sistemas lógicos paraconsistentes extremamente fortes, o que contraria Popper, e que esses sistemas talvez sejam aplicáveis à dialética, pelo menos em alguma de suas interpretações. Então, a crítica de Popper, segundo a qual a presença de contradições “verdadeiras” inviabiliza logicamente a dialética – torna-se inviável. Não está correta. (DA COSTA, p. 71, 1997)”. 

Para a discussão filosófica, que acolhe as demandas oriundas das discussões científicas para pensá-las, mas não para resolvê-las, os paradoxos e as contradições originadas na linguagem natural também permeiam necessariamente as linguagens formais, pois que estão entremeadas com a realidade mutante do mundo. Se a matemática nos diz da realidade do mundo, então a realidade do mundo também nos diz da matemática. Como afirmou Profº da Costa (p. 71, 1997) “um sistema lógico pode ser utilizado como alicerce de concepções de mundo. Eles estão intimamente relacionados, por exemplo, com a ontologia. Logo, são básicos para a compreensão racional do mundo, do universo”.

Um pensador brasileiro.

Além das várias formulações que o professor Newton da Costa se dedicou ao longo da sua profícua carreira de pesquisador e orientador, está o fato de ter sido um pensador brasileiro, desempenhando papel fundamental na formação cultural, educacional e científica dos seus conterrâneos, sendo exemplo prático da elevação de uma tradição filosófica própria, enraizada na realidade social, cultural e histórica do Brasil. Como bem diz, em recente artigo sobre os trabalhos do Newton da Costa, a pesquisadora Katia Santos (2023, p.174):

Mais urgente do que nos tornarmos referência para outros países, é tornarmo-nos referência  para  nós  mesmos.  E  esse  objetivo  está  totalmente  ao  nosso  alcance,  uma  vez  que  temos uma enorme comunidade filosófica, além de filósofos e filósofas de grande importância e reconhecimento internacional”.

Newton da Costa, presente!

Referências.

Ciência, Contradições e Pensamento não-clássico. Entrevista concedida a Edvar Bonotto. Revista Princípios, São Paulo, nº 49, p. 68-73, maio-julho, 1998.

DA COSTA, N. C. A. Sistemas Formais inconsistentes. 2ª ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 1993.

SANTOS, Katia Cilene da Silva. Teses e conceitos de Newton da Costa. Argumentos – Revista de Filosofia. Fortaleza, ano 15, nº 30, p. 173-184, jul.-dez. 2023.