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Luiz Gonzaga Belluzzo: Dúvidas do espírito de porco

10 de maio de 2024

Será que não há um pouco de precipitação nas conclusões irrefutáveis dos economistas sobre seus modelos?

Na edição de 29 de abril, em sua Página de Rosto (assim falavam os da antiga), o Estadão estampou a manchete: “Piora fiscal e cenário externo põem em xeque previsão de taxa de juros com um dígito”.

Essa advertência foi precedida, e segue acompanhada, por incisivos editoriais que fincam o pé na condenação dos gastos do governo, apresentados como a origem dos males que afligem a economia brasileira.

Em contundente editorial, a Folha de S.Paulo proclama: “Economia oscila entre o medíocre e o arriscado. Relaxamento de meta fiscal confirma recusa de Lula em rever gastos, o que limita expansão do PIB e torna País vulnerável. O afrouxamento precoce das metas para os resultados das contas do Tesouro Nacional não surpreendeu ninguém. Na verdade, nem mesmo se acredita que as novas metas serão cumpridas”.

A recente desvalorização do real ante o dólar também recebeu inquinações de irresponsabilidade fiscal. Ao constatar a valorização do dólar em relação a todas as moedas do planeta – aí incluídos o euro, a libra, o yen e o yuan chinês –, um amigo indagou sarcasticamente se o mundo não estaria diante de um perigosíssimo surto de Irresponsabilidade Fiscal Universal. Ao afligir todas as economias do globo, disse ele, essa febre de gasto imoderado e de endividamento público imprudente ameaça destroçar os pilares de sustentação das economias de mercado capitalistas.

Há razões para se suspeitar de que a economia global não vai bem das pernas. No entanto, seria precipitado atribuir ­suas mazelas aos vícios globais de irrefreável descontrole de gastos e de endividamento dos governos urbe et orbi.

Em uma carta endereçada aos assessores de Roosevelt, Keynes desfiou argumentos a respeito das relações entre gasto e formação da renda da sociedade.

“Nós produzimos a fim de vender. Em outras palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-se de gastar. Então, como eu disse, a resposta é óbvia.

“Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como, então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse pensamento desnorteia o público.

“No entanto, um comportamento que pode fazer um único indivíduo pobre, pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta, ele não afeta só a si mesmo, mas a outros. A despesa é uma transação bilateral. Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.”

Não espanta que, diante de tais apreensões e sobressaltos, a conservadora revista britânica The Economist tenha se abalançado a lançar precauções. Mas para a tradicional magazine da Pérfida Albion, as amea­ças não pareciam decorrer das incontinências fiscais universais, senão da recente valorização da moeda norte-americana:

“O dólar está numa fase exuberante. Como o crescimento americano se manteve forte e os investidores reduziram as apostas de que o Federal Reserve (Fed, o Banco Central americano) cortará as taxas de juro, o dinheiro inundou os mercados do país – e o dólar disparou. Subiu 4% este ano, medido em relação a uma cesta de moedas; e os fundamentos apontam para uma valorização ainda maior. Com uma eleição presidencial se aproximando e tanto os democratas quanto os republicanos determinados a promover a indústria americana, o mundo está à beira de um novo período de geopolítica de dólar forte.

“Essa situação se torna ainda mais difícil pelo fato de que a força da moeda reflete a fraqueza em outros lugares. No fim de 2023, a economia dos Estados Unidos era 8% maior do que no fim de 2019. As economias da Grã-Bretanha, França, Alemanha e Japão cresceram menos de 2% cada uma durante o mesmo período. O iene está em uma baixa de 34 anos em relação ao dólar. O euro caiu de 1,10 dólar no início do ano para 1,07 dólar. Alguns traders agora estão apostando que a paridade entre euro e dólar será atingida no início do próximo ano.

“Se Donald Trump vencer as eleições em novembro, o cenário estará pronto para uma briga. Um dólar forte tende a aumentar o preço das exportações americanas e diminuir o preço das importações, ampliando o persistente ­déficit comercial do país – um problema para Trump há muitas décadas.”

A citação é um tanto longa, mas necessária para sublinhar os riscos que afligem as economias do planeta diante do poder do dólar. A despeito das certeiras considerações da The Economist, em entrevista concedida ao jornalista Fernando Canzian, da circunspecta Folha de S.Paulo, Nouriel Roubini advertiu:

… “Como você apontou, o lado fiscal ainda não está sob controle. O Banco Central se saiu bem ao elevar as taxas cedo para combater a inflação, mas mais pressão sobre a moeda não será algo positivo. Definitivamente, um cenário global mais difícil implica que o Brasil tem de fazer mais ajustes macroeconômicos, especialmente no lado fiscal, para enfrentar ventos contrários”.

Seguramente, os riscos são ainda mais graves para os países que não frequentam os acarpetados ambientes das moedas conversíveis, como o euro, a libra e o yen japonês.

Mas o nheco-nheco fiscalista não refreia seus balbucios, mesmo diante das cifras parrudas do déficit fiscal e do endividamento público do emissor da moeda-reserva, também conhecido como Estados Unidos da América. O FMI informa: o déficit primário do vovô Biden está em 4,9% e o endividamento público, em 123,3% do PIB.

Diante de tais resultados, talvez pudesse ocorrer a um espírito de porco – sempre travestido com sua camiseta verde com um P no escudo ostentado no peito – indagar dos colegas e amigos economistas se não há alguma precipitação em suas­ conclusões definitivas e “irrefutáveis a respeito das relações que determinam os movimentos das variáveis em seus modelos de “Macroeconomia Aberta”?

Não se trata de desconfiança, mas apenas de uma pergunta, talvez ingênua. 

*Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.