Sustentabilidade: Não existe desastre natural (novamente…)
A tragédia do Rio Grande do Sul não pode ser considerada um desastre natural; Foi um desastre social, construído pelo homem e pelo capitalismo; O Plano Clima pode reverter esse processo; Mas é preciso que o pré-sal financie a transição ecológica.
Por Theófilo Rodrigues
Em 2006, o geógrafo marxista escocês Neil Smith publicou um célebre artigo sobre o impacto do furacão Katrina na região sul dos Estados Unidos que havia acontecido no ano anterior. Naquela ocasião, mais de 1800 pessoas morreram, a maior parte formada por negros e pobres. Intitulado “Não existe desastre natural” – There’s No Such Thing as a Natural Disaster, no título em inglês -, o artigo argumentava que em todo desastre a diferença entre quem vive e quem morre é um cálculo social. Smith, que teve como orientador de doutorado na Universidade Johns Hopkins o famoso geógrafo marxista David Harvey, entendia ser preciso “colocar as ciências sociais para trabalharem como um contrapeso às tentativas oficiais de relegar o Katrina à lata de lixo histórica dos inevitáveis desastres “naturais”” (1).
Em 2022, logo após a tragédia que deixou mais de 200 mortos na cidade de Petrópolis-RJ, Bruno Xavier Martins publicou na Le Monde Diplomatique a tradução do texto de Smith (2). Na excelente apresentação que abre a tradução, Martins explicava que a pertinência para o contexto brasileiro era suficientemente óbvia. Afinal, um desastre só é um desastre na medida em que há uma ocupação humana irracional construída socialmente naquela localidade. Em Petrópolis, assim como em New Orleans, o desastre tinha mais a ver com o capitalismo e a assimetria social do que com a natureza.
Infelizmente, os recorrentes avisos de que “não existe desastre natural” ainda não surtiram os efeitos necessários. Pelo menos isso é o que assistimos agora nas notícias sobre a catástrofe gaúcha. “Entenda as prioridades diante de um desastre natural como as enchentes no RS”, diz a manchete da CNN (3). “Enchentes no Rio Grande do Sul: veja o trabalho incansável de quem faz resgates das vítimas ilhadas no maior desastre natural do estado”, podemos ver na manchete do Fantástico (4). Para a mídia, em geral, não há culpados, não há responsabilidades. Ou melhor, a responsabilidade é do acaso, é da natureza. Na famosa expressão de Engels, tudo caiu como um raio em dia de céu azul.
No momento em que escrevo (08/05), a Defesa Civil do Rio Grande do Sul registra que 1.456.820 pessoas foram afetadas. Desse total, 163.720 estão desalojadas e 66.761 foram levadas a abrigos temporários. De acordo com a Defesa Civil, há 372 feridos, 128 desaparecidos e mais de 100 pessoas mortas (5). Não, não foi a natureza quem matou essas pessoas. Entre as verdadeiras responsáveis estão a lógica de produção de nossa sociedade e a forma como organizamos nossas relações sociais e estabelecemos a ocupação urbana. Em outras palavras, a culpa é do capital. Mas é também do Estado que não regulamenta esse capital e que não desenvolve políticas públicas para adaptação, mitigação e regeneração. Mas como tudo isso começou?
Separação entre homem e natureza
Podemos dizer que a separação entre o homem e a natureza promovida pelo capitalismo é uma forte pista demarcadora desse processo. Uma primeira interpretação sobre a separação entre homem e natureza potencializada pelo capitalismo foi apresentada por Karl Marx e Friedrich Engels no século XIX. Na Ideologia alemã, texto escrito entre 1845 e 1846, Marx e Engels alertaram para a falta de sentido desse divórcio, pois “enquanto existirem homens, história da natureza e história dos homens se condicionarão reciprocamente” (6). Engels, na sua Dialética da Natureza, discutia essa relação e acreditava, inclusive, em uma futura vingança da natureza. Seu parceiro intelectual, Marx, tinha claro para si que a separação entre homem e natureza era uma consequência da propriedade privada. Em suas palavras, o capitalismo “desvirtua o metabolismo entre o homem e a terra” (7). Somente a suprassunção positiva da propriedade privada, dizia Marx, seria “a verdadeira dissolução do antagonismo do homem com a natureza e com o homem” (8).
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Marx concordava com o jovem Engels, para quem a sociedade do futuro deveria promover “a reconciliação da humanidade com a natureza e consigo mesma” (9). Utilizando dados de um famoso químico alemão do início do século XIX, Justus von Liebig, Marx denunciou a forma como a produção capitalista na Inglaterra destruía a fertilidade permanente do solo e para isso importava elementos agrícolas como terra e fertilizantes de outros países. “Todo progresso da agricultura capitalista”, concluía Marx, “é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo” (10). Sobre isso, Engels também já havia registrado como a monopolização da terra por um pequeno número, a comercialização do solo e a exclusão da grande maioria da sua condição de vida, eram ações antiéticas. Pois a terra, dizia Engels, “é a única e primeira condição de nossa existência” (11).
Ao tornar a natureza seu objeto utilitário, o modo de produção capitalista produziu intervenções drásticas no planeta. E isso está amplamente documentado pela ciência.
Antropoceno ou capitaloceno?
A ciência começou a mensurar a temperatura média do planeta logo após o início da Revolução Industrial. De lá para cá, a ciência comprovou de forma consensual que houve um aumento dessa temperatura média em 1,2 ºC. Pode parecer pouco, mas isso já é o suficiente para o aumento de tempestades em alguns lugares, secas em outros, perda de biodiversidade etc. A mesma ciência também já comprovou de forma relativamente consensual que o principal responsável por esse aquecimento global é o ser humano. Isso ocorreu pelas emissões geradas pela economia capitalista de carbono – petróleo e termoelétricas de carvão – e pelos desmatamentos crescentes. Isso tudo está mais bem descrito no relatório de 2021 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, IPCC na sigla em inglês, o mais importante órgão das Nações Unidas voltado para a ciência do clima.
A ciência já tem, até mesmo, um nome para essa trágica fase de transformações da natureza causadas diretamente pelo homem: Antropoceno. Na escala de tempo geológico, o Holoceno é a época do planeta que teve início há cerca de 12 mil anos, logo após o fim do último período glacial. Contudo, as várias transformações radicais pelas quais a natureza passou nas últimas décadas fez alguns cientistas considerarem a hipótese de que estaríamos em uma transição para uma nova época, qual seja, o Antropoceno. Originalmente, o termo surgiu na década de 1980 com o biólogo Eugene Stoermer, mas foi o ganhador do Prêmio Nobel em química, Paul Crutzen, quem popularizou a ideia de Antropoceno, no início dos anos 2000, como uma nova idade geológica marcada pela intervenção humana na natureza.
Que a ação humana é a responsável por essas transformações da natureza não há dúvidas. O que ainda não é consensual é se a melhor conceituação desse processo é o Antropoceno. Com alguma razão, uma parcela da literatura apresenta alguns questionamentos acerca da generalização do Antropoceno. Afinal, como constata o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “se somos todos responsáveis, ninguém é” (12). Então, quem é o homem responsável por tudo isso? São todos os homens? Os homens e mulheres das tribos indígenas do Amazonas são também responsáveis? Ou seriam os Krenak no Rio Doce em Minas Gerais? Qual a parcela de culpa dos Maori na Nova Zelândia e dos inuítes no Ártico? Ou dos Daasanach na Etiópia?
Essas perguntas provocadoras apontam para uma incômoda verdade: não são todos os homens os culpados pela crise socioambiental em que nos metemos, mas sim aqueles que gerem ou geriram, nos últimos três séculos, o modo de produção capitalista. Seguindo os passos de Chico Mendes, Eduardo Galeano aponta para o problema: “a ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles”. Em outras palavras, a culpa é dos empresários e dos acionistas que colocaram o lucro e a acumulação de riquezas acima de tudo, mas também dos Estados que permitiram que isso ocorresse sem regulamentações mais sérias. Essa foi a razão pela qual o sociólogo estadunidense Jason Moore forjou, em 2013, o termo Capitaloceno no lugar de Antropoceno (13).
O que fazer? Adaptação, mitigação e regeneração
Em síntese, o surgimento do capitalismo promoveu uma separação entre o homem e a natureza, uma ruptura metabólica na natureza, nas palavras de Marx. Esse processo fez com que o homem gestor do modo de produção capitalista tornasse a natureza seu objeto utilitário. Em decorrência desse processo, intervenções drásticas na natureza foram sendo acumuladas ao longo dos últimos séculos. A implicação foi o aquecimento global, as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade. A consequência de tudo isso é o que estamos vendo no Rio Grande do Sul nesse exato momento.
Mas como reverter esse processo? A literatura especializada aponta para três eixos de ações que precisam ser desenvolvidos concomitantemente e com urgência.
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O primeiro eixo é o da adaptação. Adaptar significa reconhecer que o problema das mudanças climáticas já está colocado, já é uma realidade. O que nos cabe, portanto, é preparar nossas cidades para que desastres não ocorram. De acordo com a plataforma AdaptaBrasil, criada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, 66% dos 5.570 municípios brasileiros têm capacidade baixa ou muito baixa de adaptação a eventos climáticos extremos (14). No caso da prefeitura de Porto Alegre, a imprensa tem mostrado como a prefeitura da cidade não investiu em manutenção do sistema de prevenção de enchentes.
O segundo eixo é o da mitigação. Mitigar significa diminuir os danos causados pelo nosso modo de produção, ou seja, reduzir as emissões de carbono, evitar desmatamentos etc. Como sabemos, nada disso foi feito pelo governo do estado do Rio Grande do Sul. Ao contrário, em seu primeiro ano de mandato, em 2019, o governador Eduardo Leite promoveu uma grande flexibilização de toda a legislação ambiental do estado. O governador fomentou o desenvolvimento econômico em detrimento da natureza.
O terceiro eixo é o da regeneração. O que fica cada vez mais claro para a ciência é que talvez já seja tarde demais para apenas adaptarmos e mitigarmos. É preciso regenerar. Regenerar significa gerar impacto socioambiental positivo. Impedir o desmatamento, por exemplo, é insuficiente. É necessária uma grande política pública de florestamento, fazer com que áreas desertificadas voltem a ter árvores, que rios voltem a ter águas, que florestas voltem a ter vida.
Plano Clima: a velha economia de carbono precisa financiar a transição ecológica
Para reverter esse processo é muito importante que o governo federal dê prioridade ao Plano Clima conduzido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com apoio técnico-científico do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. O objetivo do Plano Clima – Plano Nacional sobre Mudança do Clima -, é orientar a política climática do Brasil até 2035.
Mas a verdade precisa ser dita. O Plano Clima só será efetivo se tiver financiamento anual bilionário à sua disposição. A pergunta que fica é: de onde tirar esses recursos?
O governo federal já demonstrou seu interesse em explorar o petróleo na camada pré-sal na região conhecida como Margem Equatorial. É esperado para as próximas décadas um retorno bilionário em torno dessa exploração e produção. É esse recurso bilionário derivado do Fundo Social do Pré-Sal da Margem Equatorial que precisa ser redirecionado para o financiamento do Plano Clima.
O governo federal acaba de convocar a V Conferência Nacional de Meio Ambiente e Mudança do Clima para dezembro de 2024. Exigir que a velha economia de carbono financie a transição ecológica no Brasil deve estar no centro da agenda dessa Conferência. Do contrário, teremos apenas palavras ao vento.
Referências:
(*) Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM.
(**) Algumas passagens desse texto foram retiradas do meu livro “Capitalismo e Sustentabilidade”, que será publicado pela Editora Vozes no segundo semestre de 2024.
(1) https://items.ssrc.org/understanding-katrina/theres-no-such-thing-as-a-natural-disaster/
(2) https://diplomatique.org.br/nao-existe-desastre-natural/
(6) MARX, K. ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. (p. 86-87)
(7) MARX, K. O Capital. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013. (p. 572)
(8) MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. (p. 105)
(9) ENGELS, F. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021. (p. 167)
(10) MARX, K. O Capital. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013. (p. 573)
(11) ENGELS, F. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021. (p. 171)
(12) GALEANO, E. Os filhos dos dias.Porto Alegre: L&PM, 2012.
(13) MOORE, Jason. Antropoceno ou capitaloceno? Natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante, 2022.