Ana Prestes: A Porto Alegre submersa já foi o sonho de um Outro Mundo Possível
O Forum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, já havia apontado para o risco do aquecimento global. “Será preciso derrotar o coração do sistema capitalista para que o Outro Mundo Possível, sonhado nas tardes ensolaradas do Guaíba naquela Porto Alegre de 2005, se realize”.
Por Ana Prestes
Um Outro Mundo é Possível. Foi sob essa consigna que, sob o sol escaldante de janeiro em Porto Alegre, em 2001, se reuniu pela primeira vez o Fórum Social Mundial. O evento era um contraponto aos Fóruns Econômicos Mundiais de Davos, na Suíça. Por isso, inclusive, ocorriam nas mesmas datas como forma de mostrar ao mundo que outra concepção de mundo, não capitalista, era possível. Ocorria em uma cidade exemplo para o mundo por sua gestão democrática, responsável e solidária. A cidade dos orçamentos participativos. Corriam os tempos áureos do evento, realizado até 2003 na PUC de Porto Alegre, em 2004 em Mumbai, na Índia, e com um retorno triunfal para Porto Alegre em 2005, para um dos maiores e mais potentes eventos do FSM já ocorridos até os dias de hoje.
Naquele ano, entre os dias 26 e 31 de janeiro, a orla do Guaíba se transformou por alguns dias no Território Social Mundial. Foram mais de 2500 eventos, divididos em 11 eixos temáticos, espalhados em 4 dias e organizados em um território de tendas cobrindo cerca de quatro quilômetros de gramado na margem das águas. A marcha de abertura contou com cerca de 200 mil pessoas e o acampamento da juventude recebeu 35 mil jovens. Tudo isso em um evento monumental para o qual se inscreveram 155 mil pessoas, 6872 organizações de 151 países. A estimativa da brigada militar gaúcha à época foi de que cerca de 500 mil pessoas circularam pelo território durante os dias do FSM.
Um dos eixos de debates que se demonstrou mais forte e estruturante das primeiras edições do FSM se concentrava justamente na questão ambiental e climática, com destaque para os eventos em torno da Agenda 21 Global. Um documento gerado pela ECO 92 no Rio de Janeiro, com a participação e assinatura de 179 países. A Agenda 21, segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA) do Brasil, foi criado como um “instrumento de planejamento para a construção de sociedades sustentáveis, em diferentes bases geográficas, que concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica”.
No FSM de 2005, na orla do Guaíba, a então Ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, participou do 1o Seminário Internacional da Agenda 21, organizado pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento[1] (FBOMS) com uma audiência e participação impressionantes. Havia uma preocupação generalizada com as questões ambientais e as preocupantes previsões para o futuro da humanidade caso os impactos ambientais não fossem revertidos. O século 21 iniciava sob o mau presságio das mudanças climáticas e seus efeitos devastadores sobre populações e territórios. Na época, já haviam ocorrido duas COPs importantes, a inaugural, de Berlim, na Alemanha, em 1995 e a paradigmática de Kyoto, no Japão, em 1997.
No mesmo evento em que estava Marina, do FSM de 2005 em Porto Alegre, foi também realizado o relançamento da Carta da Terra, ratificada por vários países no ano 2000 e reconhecida pela ONU em 2001. O teólogo Leonardo Boff, representante da América Latina na Comissão Internacional da Carta da Terra, foi um dos mais ativos participantes dos debates ambientais em 2005. Nas palavras de Boff, a Carta da Terra, “considera a pobreza, a degradação ambiental, a injustiça social, os conflitos étnicos, a paz, a democracia, a ética e a crise espiritual como problemas interdependentes”, tratava-se de “um grito de urgência face às ameaças que pesam sobre a biosfera e o projeto planetário humano”. Lá se vão mais de duas décadas desde que a Carta foi elaborada.
Enquanto escrevo este artigo, leio do resiliente Boff, em sua conta no X, antigo Twitter: “Pelo que estudo e lendo grandes nomes da mudança climática, já estamos dentro dela. A Terra está buscando um novo equilíbrio. Por isso o que ocorreu no RS e está ocorrendo mundo afora é apenas o começo. Temo que em breve possa acontecer em outras cidades ribeirinhas do nosso país.”
Quando vi as imagens de Porto Alegre, submersa nas águas do Guaíba, neste maio de 2024, me vieram imediatamente as lembranças dos Fóruns Sociais Mundiais. Havia então um sentimento de urgência e uma esperança de que era possível construir uma agenda transformadora para pressionar os governos nacionais e locais. Uma expectativa da construção da governança global responsável com o futuro da humanidade. Um quarto de século após aqueles primeiros debates nas salas da PUC e quase vinte anos após a tomada do Guaíba pelo Território Social Mundial, fica mais forte a certeza de que não bastaram a Rio-92 e a Rio +20, as inúmeras COPs, como as paradigmáticas de Kyoto e Paris, a Carta da Terra e os inúmeros FSMs. Será preciso derrotar o coração do sistema capitalista para que o Outro Mundo Possível, sonhado nas tardes ensolaradas do Guaíba naquela Porto Alegre de 2005, se realize.
[1] O FBOMS foi criado em junho de 1990, na USP, em São Paulo. Seu objetivo inicial era facilitar a participação da sociedade civil na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92. Na sequência, continuaram organizados e tiveram bastante incidência nos primeiros Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre.