O pré-marxismo de Kohei Saito e a aporia japonesa
O economista Sérgio Barroso tece críticas ao pensamento do filósofo marxista japonês Kohei Saito; Reproduzimos também artigo dos pesquisadores Matt Huber e Leigh Phillips sobre a obra de Saito.
Por Sérgio Barroso
A nova – aparentemente sofisticada – vulgata da marxologia vem do Japão, com as teses de Kohei Saito. Seu “O ecossocialismo de Karl Marx” (2021 [2017]) [1] define logo sua pretensão gnosiológica, revelada no subtítulo do livro: “capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política”. Trata-se, a rigor, de pré-marxismo cheirando intensamente a mofo. Naturalmente a crítica dele é que é “acabada”, portanto dogmática – um escárnio à teoria do conhecimento.
1.Ora, desde pronto, a humanidade sabe que Marx sequer concluiu o Livro 3 de “O capital”, deixando a árdua tarefa para outro genial pensador alemão, Friedrich Engels.
Engels, notadamente, fez um esforço titânico para montar o livro 3, porque a quantidade de papeis que o Marx deixou, os manuscritos, segundo seu próprio companheiro, “eram caóticos”. Uma parte do material era 1861-64, outra parte era 1867-1868, e lá pelos anos 1870, o Marx faz uma nova redação, uma nova versão do livro três. Engels fala da grande dificuldade, quando Marx adoeceu; o período de 1861-1864 foi da fundação da Primeira Internacional, e ele estava redigindo o livro três, simultaneamente ao livro dois. Marx precisou encabeçar a fundação da AIT (Associação Internacional dos trabalhadores).
Para a elaboração textual sobre a polêmica questão da queda da taxa de lucros, por exemplo, Engels consultou o Samuel Moore, “o destacado matemático de Cambridge”, que já tinha ajudado no livro dois. Consultou para fazer os cálculos matemáticos imensos que o Marx fazia pra tentar equacionar os grandes dilemas, principalmente dos problemas da lei da tendência da queda da taxa de lucro (LTQTL). Com os capítulos que tratam das “contra-tendências” à queda da taxa, no Livro 3, Marx explicita o conceito materialista e dialético de lei, como bem identificou Lênin:
“A dialética materialista de Marx e de Engels contem, certamente um relativismo, mas não se reduz a ele, isto é, reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação a esta verdade”. [2]
Investindo contra os críticos fuleiros – e à sua moda -, o pesquisador alemão Michel Heinrich (MEGA2) e biógrafo de Marx, com certa razão, afirma que:
“Embora a obra de Marx tenha nos fornecido resultados importantes, temos que entendê-la principalmente como um programa de pesquisa inacabado: inacabado não no sentido banal de que a realidade é infinita e, portanto, qualquer pesquisa é inacabada, mas inacabada no nível categorial. [3]
2. Já afirmamos [4] que Domenico Losurdo impressiona ao localizar e criticar brilhantemente a ideia atualmente em voga do “decrescimento” (econômico) – para nós, também neomalthusiana -, concentrando-se numa tese nodal de sua elaboração: o decisivo desenvolvimento das forças produtivas. Eis o divisor de águas.
Losurdo chama a atenção para algo que passa despercebido ao olhar da grande maioria dos marxistas, sobretudo no Ocidente: a totalidade intrínseca entre ser humano x natureza em Marx. Algo que encerra um grande relevo de análise e construção de argumentos, conceitos e novos marcos teóricos no sentido de enfrentar o dogmatismo do ecologismo e da arbitrária separação entre ser humano x natureza.
Em Marx, e isso possui ênfase na obra de Losurdo, essa unidade e totalidade intrínseca nas relações entre ser-humano e natureza cria condições à própria superação do que se poderia chamar de esgotamento dos recursos naturais. Trata-se, portanto, de uma visão onde o progressismo é algo inerente ao desenvolvimento das forças produtivas e não seu contrário.
3. Afirme-se que a elevação da técnica às suas últimas consequências cria um recurso natural inesgotável ao processo de desenvolvimento. Esta possibilidade de um desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas é resgatada por Losurdo ao retomar, especialmente, a genial antecipação de Marx contida nos Grundrisse sob a titulação de “Fragmento sobre as máquinas” [5].
Formidável, é ali que Marx apresenta também o conceito de “intelecto geral” (“general intellect”), já identificando a tendência de autonomização da tecnologia da maquinaria, onde as “máquinas inteligentes”, a Inteligência artificial, a nanotecnologia, poderiam servir hoje claramente de exemplos. Ainda, escreveu Marx ali:
“A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, máquinas de fiar automáticas etc. Elas são produto da indústria humana; (…) Elas são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objetivada”. E mais adiante: “Há ainda outro aspecto em que o desenvolvimento do ‘capital fixo’[maquinaria] indica o grau de desenvolvimento da riqueza geral, ou o desenvolvimento do capital” (todos os grifos de Marx; p.589).
4. Reitere-se que o constructo teórico-epistemológico de Karl Marx se funda no materialismo dialético, que desenvolve uma nova e revolucionária interpretação da história a partir daí. O marxismo de Marx (de Engels e de Lênin), sua teoria, opera extremos esforços da inteligibilidade humana perseguindo “agarrar” o sempre rebelde movimento da matéria. Só o interpreta como dogma – a tal da crítica que deveria ser “acabada” – é quem subjetivamente o deseja. Entronizado na práxis política, orienta e organiza a ação transformadora. Esta teoria do conhecimento, caminha (estagna ou retrocede) conforme a dinâmica material das conexões internas do fenômeno: as contradições e sua acepção apreendida na totalidade; como iluminou Marx ao posfácio da 2ª edição alemã de “O capital”, distinguido – indelevelmente – o “oposto” de seu método, ao de G. Hegel.
Devastador, o método do qual irradia a configuração teórica de Marx não se presta a servir a devaneios subjetivistas e anticientíficos. Sim, Marx não só construiu a façanha de produzir uma síntese da economia política inglesa, da filosofia clássica alemã e do socialismo francês a cimentar os alicerces de sua obra, simultaneamente a uma fecunda e poderosa ruptura epistemológica.
A pretensão e o caráter paupérrimo dos novos (e velhos) críticos sempre foram de dar constrangimentos e pena. A acusação perene feita, particularmente aos comunistas, de esquerda “velha” vinha prosperando em nome de uma regressão ideológica e civilizatória à pré-modernidade. Um retorno ao pré-marxismo, agora alcunhado de teoria do “decrescimento econômico”.
De resto, a “estagnação secular” (ver gráfico abaixo do PIB 1975-2006), se existisse, existiria exatamente no país do professor Saito, sabidamente, desde a explosão da chamada “bolha imobiliária” em 1989-90. O que não evitou – nem poderia, pelas razões defendidas pelo autor, as desgraças do terremoto/acidente nuclear de Fukushima. O Japão persiste desde então em vigoroso “decrescimento econômico”, a aporia dos devaneios do marxólogo Saito.
5. O que acima foi dito é fartamente argumentado, noutros vieses, no longo artigo que segue, publicado na revista “Jacobin” (09/03/2024), dos pesquisadores Matt HUBER e Leigh PHILLIPS. O texto é uma crítica demolidora das teses da Saito, inobstante uma ou outra imprecisão, [6] o que em nada altera sua importância e seus objetivos: a refutação consistente da invenção desastrosa – e perniciosa – do “comunismo do decrescimento” do marxólogo nipônico.
Notas:
[1] Boitempo, 2021.
[2] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reacionária”, V. I. Lénine, Lisboa, Avante!, p.103.
[3] A conclusão é tautológica, óbvio: qual construção categorial é “acabada”? Heinrich, um crítico da organização de Engels do Livro 3, diz chegar à conclusão que Marx terminara com “dúvidas”, sobre suas próprias pesquisas da LTQTL. Ver aqui:
[4] Ver: “Losurdo: comunismo, teoría e história”, Aloisio Sérgio BARROSO e Elias JABBOUR em: https://grabois.org.br/2023/02/26/losurdo-comunismo-teoria-e-historia/
[5] O chamado “fragmento sobre as máquinas” pode ser encontrado no recém intitulado item “Capital fixo e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade”, da edição dos “Grundisse”, da Boitempo (2011, Capítulo do capital, às páginas 578 a 592).
[6] A exemplo da ideia de que não existiu (ou não existe) a “aristocracia operária”, profundamente analisada por Engels (especialmente: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1885/03/england-1845-1855.htm); por Lênin (“O imperialismo, etapa superior do capitalismo”, especialmente “Prefácio às edições francesa e alemã” (1920); ou em Hobsbawm (“O debate sobre a aristocracia operária”, no excelente: Mundos do trabalho, Paz e Terra, 1987, 2ª edição), quem utiliza a formulação “aristocracia do trabalho”, contornando a evidente constatação de Engels, no artigo acima, que o crescimento avassalador da economia britânica, e a diferenciação classista no trabalho deveu-se, sim, a empresa colonial-imperialista da Grã-Bretanha.
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“Começar do zero”: o comunismo de decrescimento de Kohei Saito
Por MATT HUBER e LEIGH PHILLIPS
A reescrita da teoria marxista por Kohei Saito sobre o decrescimento não é apenas incorreta — se tomada seriamente, levaria ao desastre político tanto a esquerda socialista quanto o movimento ambientalista.
Quase todos os dias, as manchetes apresentam algum novo episódio sombrio da inacessibilidade da vida cotidiana para milhões de pessoas comuns, desde a greedflation[1] à crise imobiliária, desde o aumento do custo da educação e dos cuidados de saúde até a forma como cerca de 60% dos americanos vivem com o pagamento contado. Em todo o mundo capitalista avançado, durante mais de quatro décadas, os trabalhadores sofreram com cortes nos serviços públicos, desindustrialização, empregos cada vez mais precários e, em muitos setores, salários estagnados ou em declínio.
E, no entanto, há um número crescente de ambientalistas que afirmam que, como resultado da crise ecológica — das alterações climáticas à perda de biodiversidade — até estes trabalhadores consomem demasiado. Eles precisam apertar o cinto para que a economia do Norte Global “decresça”, a fim de se manter dentro dos limites planetários. Para compensar estes trabalhadores ocidentais, haverá uma abundância de novos programas sociais e uma semana de trabalho mais curta, sublinham os defensores do decrescimento.
No entanto, no geral, como os trabalhadores dos países ricos são partícipes do “modo de vida imperial” — parceiros da classe capitalista na exploração dos trabalhadores e dos recursos do Sul Global — terão de, como o teórico japonês do “comunismo de decrescimento”, Kohei Saito, coloca, abandonar “seu estilo de vida extravagante”. Eles não são explorados e precários, mas, diz Saito, “mimados pela invisibilidade dos custos do nosso estilo de vida”.
À primeira vista, parece incoerente querer que os trabalhadores americanos (ou franceses, ou australianos ou japoneses) se organizem, potencialmente façam greves e ganhem salários mais elevados, ao mesmo tempo que lhes dizem que os seus estilos de vida não são apenas extravagantes, mas francamente imperialistas. Este entusiasmo pela ideologia do decrescimento não parece compatível com os objetivos socialistas, nem com o sindicalismo, nem com a crítica marxista clássica do capitalismo.
No entanto, as ideias de Saito — que defende não apenas um casamento entre o decrescimento e o marxismo, mas que Marx foi o teórico original do decrescimento, bem à frente de seu tempo — encontraram grande apoio entre a esquerda verde não-marxista e até mesmo entre autodenominados eco-marxistas.
Então, será que as tradicionais divergências socialistas com o malthusianismo (uma crença nos limites do crescimento) e os apelos marxistas clássicos pela “liberação da produção” dos constrangimentos irracionais do mercado estavam errados? Dada a popularidade de Saito, vale a pena interrogar tais ideias. Ao fazê-lo, descobrimos que a incompatibilidade entre o decrescimento e o marxismo clássico é muito mais profunda do que esta calúnia de que os trabalhadores do mundo desenvolvido são imperialistas cujas vidas cotidianas são o principal motor do “colapso ecológico”.
Slow Down
Kohei Saito é filósofo e professor associado da Universidade de Tóquio. Seu primeiro livro, Karl Marx’s Ecosocialism: Capital, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy[2], ganhou o Prêmio Memorial Isaac e Tamara Deutscher em 2018. Nessa publicação, Saito baseia-se nos cadernos científicos de Marx — em particular nas notas de Marx sobre um dos fundadores da química orgânica, o cientista alemão do século XIX Justus von Liebig, e sua influência na concepção de metabolismo de Marx, e no que ele chamou de “ruptura irreparável” entre os resíduos biológicos urbanos e o solo rural.
O principal argumento de Saito é que Marx ficou cada vez mais preocupado com os limites naturais do desenvolvimento capitalista da agricultura. O que não é mencionado no livro é que muitos desses presumidos limites foram posteriormente ultrapassados pelo desenvolvimento de fertilizantes de nitrogênio sintéticos, mas o argumento geral de Saito é que Marx estava mais preocupado com limites ecológicos do que as interpretações “prometeicas” do seu pensamento parecem reconhecer.
A notoriedade de Saito disparou recentemente. A sua publicação Capital in the Anthropocene vendeu quinhentos mil exemplares no Japão e acaba de ser lançada numa tradução inglesa sob o título Slow Down: The Degrowth Manifesto. Sua outra publicação, Marx in the Anthropocene (2022), estendeu muitos dos mesmos argumentos apresentados no seu primeiro livro e atraiu atenção significativa da esquerda.
Ao longo desses textos, Saito deixa claro que o objeto de seu ataque é o que ele chama de “socialismo produtivista”, ou uma suposta leitura equivocada do marxismo que defende uma defesa “’prometeica’ (pró-tecnológica, anti-ecológica) pela dominação da natureza.” A suposição de que se você é pró-tecnológico também é antiecológico se ajusta confortavelmente à ideologia ambiental à qual Saito pretende se alinhar.
Saito admite que não foram apenas os críticos ambientalistas não-socialistas do marxismo que pensaram que Marx abraçara o desenvolvimento econômico e tecnológico ilimitado, mas “mesmo os autoproclamados marxistas admitiram esta falha”. Inicialmente, aqueles a quem Saito chama de “ecossocialistas de primeira fase”, como Ted Benton, André Gorz e Michael Löwy, admitiram que o prometeísmo de Marx tinha sido um erro, ou que Marx tinha vivido numa época muito distante da compreensão atual das questões ambientais. Como resultado, o marxismo precisaria ser corrigido ou, pelo menos, complementado com uma análise “ecológica”.
Mas, na década de 1990 e no início da década de 2000, “ecossocialistas de segunda fase”, nomeadamente John Bellamy Foster e Paul Burkett, reexaminaram os textos de Marx e descobriram “dimensões ecológicas despercebidas ou suprimidas” no seu trabalho. Afinal, Marx não precisava ser corrigido!
Saito se vê como o próximo passo neste processo de retirada de cena do marxismo prometeico convencional, argumentando não apenas que há várias dimensões da compreensão ecológica, mas que, na década de 1870, Marx passou por uma ruptura tão radical na sua teorização do capitalismo que a compreensão ecológica dos limites tornou-se o próprio fundamento da sua crítica da economia política. Não só Marx não precisava ser corrigido com uma compreensão dos limites naturais, como toda a sua crítica se basearia nessa compreensão.
Em última análise, o objetivo principal de Saito é construir um novo tipo de marxismo (ou, como ele diria, recuperar o que Marx sempre pretendeu) que insista em reconhecer a existência e, crucialmente, a submissão a estes presumidos limites naturais fixados: “Como a Terra é finita, é óbvio que existem limites biofísicos absolutos para a acumulação de capital.” Mais tarde, ele se refere a estes como os “limites biofísicos objetivos da Terra” que a tecnologia pode retrasar “até certo ponto”, mas as leis da energia e da entropia são “fatos objetivos, independentes das relações sociais e da vontade humana”.
A adesão a limites naturais fixos deveria ser imediatamente reconhecida como uma espécie de neomalthusianismo — movimento do final da década de 1960 que estendeu as preocupações do economista clássico Thomas Malthus relativas às limitações alimentares e populacionais às preocupações sobre supostos limites naturais em geral.
O renascimento neomalthusiano foi iniciado pela publicação, em 1968, do best-seller racista de cair o queixo The Population Bomb de Paul Ehrlich — mortificado com tantas pulgas, mendicância agressiva, defecação pública e “gentalha, gentalha, gentalha” nas apinhadas favelas de Déli — que dizia que o crescimento da população humana estava ultrapassando a capacidade do mundo natural para nos sustentar e previu que a fome nas décadas de 1970 ou 1980, o mais tardar, mataria centenas de milhões, assim como o relatório do Clube de Roma de 1972, Os Limites do Crescimento.
Recentemente, estas preocupações foram reembaladas sob a bandeira de nove “fronteiras planetárias” críticas com base em argumentos apresentados por investigadores do Stockholm Resilience Centre (mudanças climáticas, poluição por nitrogênio e fósforo, mudança no uso da terra e muito mais), uma literatura a que Saito recorre fortemente para defender seu argumento em Slow Down.
Saito, como a maioria dos outros defensores do decrescimento, quer dispensar a tese da superpopulação de Malthus, mantendo, ao mesmo tempo, a sua noção central de respeito pelos limites: “Se [o reconhecimento dos limites] contar como malthusianismo, então a única maneira de evitar a armadilha malthusiana seria a negação dogmática dos limites naturais como tais.” Enquanto o mundo recuar face ao crescimento econômico, não será necessário haver restrições à população.
No entanto, a crença numa fixidez dos limites — sejam de população ou de recursos — compreende mal a condição da humanidade. Pois não é verdade que a humanidade e a nossa produção só se deparam com limites naturais para além de um certo ponto; em vez disso, a humanidade já está sempre e em toda parte cercada por limites naturais, por restrições sobre o que podemos, de fato, fazer.
São a ciência e a tecnologia, junto com o igualitarismo (ou, como disse o marxista de meados do século Hal Draper, “Prometeu mais Espártaco”), que nos permitem ultrapassar esses limites. Friedrich Engels criticou Malthus em 1844 pelo elemento que este tinha se esquecido de considerar: “A ciência — cujo progresso é tão ilimitado e ao menos tão rápido quanto o da população.” E o que é verdade para a ciência no que diz respeito à população, é verdade para a ciência no que diz respeito aos materiais e à energia que a população utiliza. (E, pode-se notar que na nossa era de viagens espaciais, a Terra também não é a única fonte possível de energia ou recursos materiais.)
Então, em termos concretos: um dos limites planetários do Stockholm Resilience Centre é um limite para a quantidade de gases com efeito estufa que podemos emitir, em grande parte como resultado da utilização de combustíveis fósseis para energia, antes de fazer com que as temperaturas globais médias excedam aquela ideal para o florescimento humano. Dito de outra forma, a fronteira climática representa um limite para a quantidade de energia proveniente de combustíveis fósseis que podemos utilizar sem danos graves. Este limite energético é muito real, mas também é contingente. Quando mudarmos totalmente para fontes de energia limpa, como a nuclear, a eólica e a solar, esse limite relacionado ao clima no uso de energia terá sido ultrapassado. Os únicos limites verdadeiros e permanentemente insuperáveis que enfrentamos são as leis da física e da lógica.
Como sabemos muito bem, essas mudanças não são automáticas. A questão para os marxistas, então, como veremos, é como as relações de produção podem inibir ou aumentar a transcendência dos limites.
Alienação da Natureza
Os escritos de Saito muitas vezes se apoiam e tentam ampliar o trabalho do editor de longa data da Monthly Review, John Bellamy Foster. Foster argumenta que, contrariamente à crença generalizada entre os marxistas de que Marx era um entusiasta da revolução industrial, o velho barbudo tinha, na verdade, desenvolvido uma teoria da “ruptura metabólica” muito mais crítica a ela.
A teoria da ruptura metabólica de Foster afirma que o modo de produção capitalista resultou numa ruptura no intercâmbio normal e saudável entre a sociedade e a natureza. Esta violação é a fonte de todos os problemas ambientais que enfrentamos então e enfrentamos agora. A evidência de Foster para a ideia de que Marx desenvolveu tal teoria vem de um punhado de notas de rodapé e passagens em cadernos de alguns textos de Marx, nomeadamente no final do terceiro volume de O Capital.
Marx faz referência às descobertas de Justus von Liebig sobre os impulsionadores da fertilidade do solo. Ele escreveu que o capitalismo produz “condições que provocam uma ruptura irreparável no processo interdependente do metabolismo social, um metabolismo prescrito pelas leis naturais da própria vida”.
Por outras palavras, a urbanização capitalista cria uma população concentrada cujos resíduos não podem ser reciclados de forma sustentável para renovar o solo. Liebig descreve este deslocamento como um roubo que leva à degradação final do solo.
A teoria da ruptura metabólica de Foster defende que Marx estendeu a epifania de Liebig sobre a fertilidade do solo a toda a relação entre a sociedade e a natureza. A teoria argumenta que a procura do capitalismo por um crescimento sempre em expansão resulta numa sobreexploração irreparável da fertilidade do solo, e o que se aplica à fertilidade do solo aplica-se a todos os processos naturais. O que leva o capitalismo a degradar a fertilidade do solo também impulsiona toda a degradação ambiental. O capitalismo perturbou assim os processos naturais, a forma como a natureza, ou a lei natural, quer que as coisas sejam — uma perturbação que funciona como uma separação, ou alienação, da humanidade da natureza, paralelamente à forma como os trabalhadores são alienados do produto do seu trabalho.
Saito, entretanto, amplia e inverte a posição de Foster. Enquanto, para Foster, a crítica de Marx ao capitalismo implica uma teoria da ruptura metabólica, para Saito o “conceito de metabolismo” de Marx é “o fundamento da sua economia política”. É o metabolismo até o fim.
Em Marx in the Anthropocene, depois de Saito ter estabelecido o “metabolismo” como o núcleo do marxismo ecológico, ele prossegue através do que só poderia ser descrito como uma revisão partisan de pensadores como István Mészáros, Rosa Luxemburgo, Georg Lukács e, sobretudo, Friedrich Engels. Saito avalia cada um em termos do quão bem eles apreciam a importância do metabolismo.
Saito anuncia Mészáros, em particular, como “ele deu uma grande contribuição para a compreensão adequada do conceito de metabolismo de Marx como a base de sua economia política”. Entretanto, Luxemburgo “compreendeu” a ruptura metabólica ao “nível internacional”, mas tropeçou no obstáculo final na medida em que “formulou a sua teoria do metabolismo contra Marx”, o que é desaprovado no projeto de Saito de provar que Marx é o profeta ecológico.
Engels, que Saito insiste que se desviou do despertar do decrescimento de Marx na década de 1870, é criticado por remover a palavra “natural” da passagem acima citada sobre a “ruptura irreparável” (o manuscrito original de Marx escreve um “processo entre o metabolismo social e o metabolismo natural”). Esta única excisão é a principal prova de Saito para afirmar que Engels estava suprimindo ativamente a centralidade da ecologia de Marx para o projeto marxista — resultando no surgimento de um abismo entre os dois pensadores. Num ensaio recente, mesmo Foster não está convencido: “é discutível que a remoção do ‘metabolismo natural’ tenha mudado substancialmente o significado da passagem original de Marx”.
Saito parece desinteressado no que mais esses pensadores têm a dizer – desde que afirmem a importância do metabolismo. Lukács é elogiado por mobilizar o conceito, mas na mesma página em que Saito o cita com aprovação, ele soa muito como os marxistas “prometeicos” que ele ridiculariza. Lukács proclama que “a sociedade socialista é… a herdeira de todas as tremendas conquistas que o capitalismo trouxe no campo da tecnologia.”
Ele também não está interessado nas dezenas, até centenas de outros pensadores-chave dentro do cânone marxista e do movimento socialista, de Vladimir Lênin a Leon Trotsky, de Sylvia Pankhurst a Nikolai Bukharin, para quem a tese de Marx de que o socialismo libertaria a produção dos grilhões do capitalismo era óbvia. Era elementar para os marxistas que, num certo ponto do desenvolvimento das forças produtivas (basicamente, conhecimento científico, tecnologia, trabalho, terra e recursos naturais), é limitado pelas relações de produção (a forma como a produção é organizada, o que sob o capitalismo significa, aproximadamente, proprietários de capital vendendo mercadorias nos mercados para obter lucro e contratando proprietários de força de trabalho em troca de salários).
A revolução social liberta então a produção dessas restrições. Isto é central para a teoria do materialismo histórico, mas não é uma abstração. Durante a pandemia, por exemplo, era do interesse de toda a humanidade produzir vacinas contra a COVID suficientes para inocular todo o mundo, mas o interesse do lucro restringiu irracionalmente a produção de vacinas. Assim, à medida que os mercados limitam a produção meramente ao conjunto de coisas que são lucrativas, o socialismo sempre prometeu ser muito mais produtivo do que o capitalismo. Mesmo para as alterações climáticas, é bastante claro que muitas das soluções existem, mas são insuficientemente lucrativas.
Mas mesmo a escolha seletiva de Saito do cânone marxista é uma falha secundária naquilo que está, na verdade, transformando Marx e o pequeno punhado de marxistas que Saito aprova em profetas, em vez de teóricos humanos falíveis que eram. Só porque eles disseram algo não significa que seja correto.
Ruptura metabólica do capitalismo?
Portanto, temos a consideração de Saito sobre a análise que Foster faz das notas de Marx acerca da descoberta de Liebig e, em outros lugares, o argumento de Foster foi amplamente aceito sem muitas considerações sobre o que Liebig disse, ou sem verificar o que os cientistas e bioquímicos contemporâneos do solo poderiam ter a dizer sobre a matéria.
Talvez valha a pena fazer uma pausa e considerar o que o metabolismo realmente significa dentro da bioquímica, o que Liebig descobriu sobre a nutrição do solo e o que os ecologistas e biólogos evolucionistas têm a dizer sobre se é mesmo possível haver uma ruptura na natureza ou com ela.
Tanto para Saito como para Foster, todas as passagens transcritas relevantes de Marx aqui se relacionam com a descoberta de Liebig de que os elementos químicos potássio, fósforo e, mais importante, nitrogênio são essenciais para o crescimento das plantas. Hoje, sabemos que em todos os organismos (não apenas nas plantas), através de uma série de reações químicas, o nitrogênio, juntamente com outros ingredientes-chave, são transformados em aminoácidos, que por sua vez são os blocos de construção dos ácidos nucleicos que formam o RNA e o DNA, e de proteínas, das quais são feitos praticamente todos os tecidos de um organismo. Nas plantas, o nitrogênio, junto com outras substâncias, se transforma em folhas e caules e em tudo o mais que constitui uma planta. Quando os animais comem essas plantas, o nitrogênio contido nelas é usado para produzir nossas próprias proteínas, DNA e também todo o resto de nossos tecidos.
Metabolismo, ou Stoffwechsel em alemão (literalmente “mudança material”), é um jargão da bioquímica que se refere a essas e a todas as outras reações químicas em um organismo. O metabolismo tem dois processos: catabolismo — quebra de moléculas, como acontece quando as bactérias rompem a resistente ligação tripla de uma molécula de N2 de nitrogênio — e anabolismo — construção de novas moléculas, como acontece quando plantas e outros organismos fabricam proteínas, embora todos os organismos o façam tanto catabolismo quanto anabolismo. O metabolismo é simplesmente a realização total de todas essas reações químicas.
Liebig descreveu o declínio na fertilidade do solo como um processo pelo qual estes nutrientes químicos no solo são absorvidos pelas plantas, e depois nós, humanos e os nossos animais domesticados, por sua vez, comemos. Portanto, se não houver retorno desses nutrientes para o solo a partir dos nossos excrementos, urina e corpos quando morremos, haverá apenas uma viagem de ida dos nutrientes para fora do solo: em essência, do campo para a cidade, para os esgotos e para os oceanos. Isto é o que Liebig, compreensivelmente, chamou de forma de roubo.
Embora Liebig seja um gigante da ciência natural e da química, Foster e Saito fazem um tipo diferente de afirmação sobre o “sistema de roubo”: é historicamente específico do capitalismo. Este é o fulcro de toda a sua abordagem do ecossocialismo: se pudermos descobrir em Marx uma teoria de como o capitalismo, por necessidade, destrói a natureza, teremos uma teoria propriamente marxista da razão pela qual o capitalismo deve ser substituído pelo (eco)socialismo.
O problema é duplo. Primeiro, não está claro que o que Marx ou Liebig descrevem possa ser visto como específico do capitalismo. A noção de roubo de Liebig descreve processos que surgem com a civilização urbana em que as elites comandam trabalho e recursos de uma periferia rural que existe há milênios. Pode-se encontrar esta dinâmica num contexto tão variado como o da Roma Antiga ou da civilização Maia (ambas se depararam com problemas ecológicos relacionados com a exploração urbana da periferia dos recursos).
Poderíamos argumentar de forma plausível que o capitalismo impulsionou a urbanização (com a sua característica de proletariado urbano), mas isto não identifica alguma força intrínseca ao capitalismo que explique os problemas ecológicos. É uma diferença de gradação em relação às sociedades anteriores.
Em segundo lugar, a teoria da ruptura metabólica sofre de uma crença não científica num equilíbrio da natureza, de que existe uma forma definida de a natureza existir e de que o capitalismo está perturbando esse equilíbrio. A história da vida na Terra não é apenas uma história de equilíbrio frágil, mas sim uma história de constante mudança dinâmica. Desde o primeiro evento de extinção em massa causado pela produção de oxigênio molecular pelas cianobactérias até múltiplos incidentes de aquecimento global impulsionados por vulcanismo massivo, o planeta nunca parou de experimentar condições de mudança, que, por sua vez, conduziram a mudanças evolutivas perpétuas e toda a extinção e especiação que isso implica.
Assim, no que diz respeito ao resto da natureza, tudo o que nós, humanos, fazemos, através do modo de produção capitalista ou de outra forma, desde a combustão de combustíveis fósseis até a invenção dos plásticos, é apenas o mais recente conjunto de novas pressões seletivas evolutivas.
O nosso comportamento — essas novas pressões seletivas — pode, no entanto, ameaçar-nos. Pode certamente haver uma perturbação dos serviços ecossistêmicos dos quais os seres humanos dependem. O declínio da fertilidade do solo agrícola, as alterações climáticas, a poluição por nitrogênio e assim por diante são ameaças para nós, humanos, mas não são, nem podem ser, uma ruptura com um equilíbrio da natureza que não existe. E, mais uma vez, a atividade humana que inadvertidamente prejudica os serviços ecossistêmicos não é exclusiva do capitalismo. Na verdade, a extinção em massa da megafauna do final do Pleistoceno, provavelmente devido à caça humana excessiva ou à competição por recursos — como os mamutes peludos, os tigres dente-de-sabre e a vaca-marinha de Steller — é anterior não apenas à civilização, mas eventualmente ao surgimento do Homo sapiens, uma vez que começou com nossos parentes hominídeos.
Além disso, há uma deturpação da história de Liebig. Dentro da ciência agronômica, Liebig é determinante, mas não para argumentos a respeito do roubo do solo. Em vez disso, ele é conhecido como o “pai do fertilizante”. Ele não se limitou a descobrir a natureza unidirecional do fluxo de nutrientes na produção agrícola, mas utilizou esta descoberta para saber como isso poderia ser corrigido.
Devido, em grande parte, ao desenvolvimento de fertilizantes à base de nitrogênio e, depois, na primeira década do século XX, ao desenvolvimento de Fritz Haber e Carl Bosch de seu processo que transforma o nitrogênio atmosférico em amônia, a fome retrocedeu como um problema recorrente na história da humanidade. Globalmente, como resultado da difusão destas inovações e técnicas associadas de irrigação, cereais de alto rendimento, mecanização, fertilizantes químicos e pesticidas da Revolução Verde, a fome na Ásia chegou ao fim em grande medida na década de 1950. A fome que existe hoje, principalmente em África, é inteiramente política e não a consequência de qualquer roubo do solo.
Os críticos da Revolução Verde condenam, com razão, o seu modelo sob controle corporativo e a devastação que causa na agricultura camponesa de pequena escala. No entanto, o primeiro ignora a possibilidade que uma agricultura mecanizada que poupa trabalho poderia assumir sob diferentes relações de produção (socialistas), e o último negligencia como isto é exatamente o que Marx previu como um precursor do socialismo (uma previsão que se tornou em grande parte mais verdadeira após a sua morte).
O processo Haber-Bosch pode consumir muito carbono, recorrendo ao gás natural como fonte de hidrogênio; o escoamento de nutrientes agrícolas, na ausência de regulamentação e infraestrutura apropriada, pode causar proliferação de algas nocivas no mar. Mas a solução de problemas cria novos problemas que precisam ser resolvidos. Para os marxistas clássicos, podemos identificar imediatamente como esta solução de problemas pode gerar problemas: se resolver o problema for rentável, então ótimo, mas se não for rentável, então, mesmo que a solução seja conhecida, não será levada a cabo.
A sociedade capitalista não é uma sociedade racional, onde a alocação de recursos é decidida democraticamente na busca da solução de problemas identificados coletivamente, mas pela busca da maximização do lucro. No entanto, esta análise não requer um adendo ou uma correção no que diz respeito ao crescimento econômico levar a qualquer ruptura metabólica.
Marx abandonou o materialismo histórico tradicional?
Em seus dois livros recentes, Saito passa um tempo considerável visando os partidários do que ele chama de novo “Socialismo Utópico”: os que, como Aaron Bastani, Nick Srnicek e Alex Williams, argumentam que o desenvolvimento tecnológico capitalista está abrindo caminho para um futuro socialista de abundância (muitas vezes apelidado de “Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado”). A ironia, como veremos, é que é Saito quem promove exatamente o que o próprio Engels chamou de “socialismo utópico” na agricultura localizada e no municipalismo ecológico.
Saito afirma que estes pensadores estão presos às primeiras versões do pensamento de Marx (ele culpa os Grundrisse de 1857-58 e o canônico “Prefácio” à Contribuição para a Crítica da Economia Política de 1859). Para fundamentar isto, Saito declara que Marx, na verdade, abandonou esta visão anterior do “materialismo histórico” quando da publicação do primeiro volume de O Capital em 1867 e na década de 1870.
Não é exagerado afirmar que são bastante ousadas estas afirmações de Marx in the Anthropocene. Saito declara que novas concepções “obrigaram Marx a abandonar sua formulação anterior do materialismo histórico”, que “ele não era mais capaz de endossar o caráter progressista do capitalismo” e que “Marx deve ter abandonado completamente o materialismo histórico como tem sido, tradicionalmente, compreendido.” Saito diz que esse abandono foi existencial para Marx — “Não foi uma tarefa fácil para ele. A sua visão do mundo estava em crise” — e mais tarde compara esta conversão dramática à noção controversa de Louis Althusser de uma “ruptura epistemológica” entre os primeiros escritos hegelianos e humanistas de Marx e o seu marxismo posterior, propriamente científico.
Saito entende corretamente que o conceito-chave nestes debates é o status das “forças produtivas”. O materialismo histórico tradicional reconhece que esta teoria da história presume que o capitalismo desempenha um papel progressista na história através das suas tendências intrínsecas para desenvolver as forças produtivas — aproveitando não só a maquinaria que poupa trabalho, mas também divisões do trabalho mais sociais e cooperativas e formas coletivas de conhecimento científico. Este desenvolvimento cria as condições materiais e os sistemas de produção socializados que poderão, pela primeira vez na história, começar a abolir a escassez e, assim, estabelecer as bases para a segurança e a abundância para todos.
A leitura que Saito faz dos textos de Marx em O Capital e, mais além — particularmente a noção da subsunção “real” do trabalho pelo capital —, depende do argumento de que Marx começou a compreender a tecnologia e a maquinaria como, puramente, um produto das relações sociais capitalistas. Consequentemente, o que Saito chama de “as forças produtivas do capital” será, na verdade, de pouca utilidade num futuro socialista. Saito afirma que eles “desaparecerão juntamente com o modo-de-produção capitalista”. Ele chega mesmo a dizer que, quando se trata de tecnologia, o socialismo terá de “começar do zero em muitos casos”.
Para ser justo, Saito também contradiz esta visão em pontos isolados do texto, com ressalvas que parecem afirmar a posição marxista mais padrão: “Marx sem dúvida reconhece o lado positivo da tecnologia moderna e das ciências naturais, que prepara as condições materiais para a estabelecimento do ‘reino da liberdade’”.
Essa incoerência insere uma negação plausível no texto. Permite a Saito dizer que não podemos continuar a usar tecnologias contaminadas pelas relações sociais capitalistas, pois as relações de classe estão congeladas dentro de tal tecnologia, e então, quando questionado sobre o primitivismo ao qual este argumento necessariamente leva, afasta tais preocupações, afirmando que é claro que algumas dessas tecnologias continuarão a ser utilizadas em qualquer sociedade justa. Mas se algumas tecnologias “capitalistas” podem de fato continuar a ser utilizadas após a Revolução do Decrescimento, então isto vicia a verdadeira tese de subsunção de Saito.
E mesmo ignorando essa contradição, quais seriam os critérios para decidir quais são as tecnologias que podem ser utilizadas e quais não podem? Saito confia na distinção de Gorz entre “tecnologias abertas” e “tecnologias ferrolho”. Aqui encontramos várias críticas antimodernas à tecnologia situadas fora da tradição do materialismo histórico (ou mesmo do Iluminismo) que datam das décadas de 1960 e 1970, de escritores de “economia budista”, como E. F. Schumacher — com argumentos como “pequeno é lindo” a favor da descentralização — vagamente definidas como “tecnologias apropriadas” ou de baixa tecnologia (uma concepção que exclui imediatamente qualquer sistema de saúde pública, com sua larga-escala e alta complexidade técnica), a teólogos como Jacques Ellul e Ivan Illich, com a sua oposição à medicina moderna e à sociedade industrial como um todo.
Caracteristicamente, Saito nos diz: “Um excelente exemplo de tecnologia ferrolho é a energia nuclear”; uma tecnologia que cada vez mais reconhece que deve desempenhar um papel crucial no combate às alterações climáticas e à poluição atmosférica.
No entanto, alguém comprometido com a democratização da produção pode perguntar: quem é Saito para determinar antecipadamente quais tecnologias são “abertas” e quais não são? Nisto, ele partilha o impulso crescente de outros pensadores do decrescimento ao declarar, antes da deliberação democrática, que algumas formas de produção são “necessárias” e outras “menos necessárias”. Mas isso não cabe aos ecoestrategistas acadêmicos.
No que diz respeito à reconfiguração da tradição marxista por Saito, devemos questionar as evidências que ele apresenta do abandono do materialismo histórico tradicional por Marx e a sua descrição da necessidade do desenvolvimento das forças produtivas. A resposta são: muito poucas. Ele aponta para uma passagem do prefácio de Marx ao Capital onde ele fala apenas do “modo-de-produção capitalista e das relações de produção que lhe correspondem” pela notável ausência da inclusão das forças produtivas (Saito sugeriria que Marx agora acredita que estas últimas estão subsumidas às relações sociais do capital).
Isto contrasta, de fato, com o famoso prefácio de 1859, no qual as relações de produção e as forças produtivas são vistas como dois conceitos distintos. No entanto, se Saito acredita que isto é uma prova de que Marx abandonou a visão de 1859, porque é que Marx, mais tarde, no Capital, cita o próprio prefácio de 1859 numa nota de rodapé, chamando-o de “a minha opinião”?
Na nota de rodapé, Marx menciona as forças produtivas, mas, depois, em O Capital, afirma frequentemente a sua centralidade para um futuro socialista. No Capítulo 24, ele discute como os capitalistas tendem a “estimular o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e a criação daquelas condições materiais de produção que, por si só, constituem a base real para uma forma superior de sociedade em que o desenvolvimento livre e pleno de cada indivíduo constitui o princípio dominante.”
Saltando o capitalismo
No entanto, o argumento mais proeminente de Saito não é que Marx abandonou o materialismo histórico em O Capital, mas sim que, após a sua publicação na década de 1870, ele se tornou um “comunista do decrescimento”. De novo, a evidência que ele apresenta para isso é incrivelmente fraca, ou como outra crítica colocou mais estridentemente: “Não há, para ser franco, nenhuma base para estas afirmações”.
Pode-se simplesmente recorrer à Crítica do Programa de Gotha, de 1875, para ver Marx continuando a articular com firmeza visões clássicas do materialismo histórico. Marx afirma que o comunismo só pode ser entendido enquanto “emerge da sociedade capitalista; que está, portanto, em todos os aspectos, econômica, moral e intelectualmente, ainda com as marcas de nascença da velha sociedade de cujo ventre emerge.” Mais tarde, Marx faz a famosa declaração:
Numa fase superior da sociedade comunista […] depois de as forças produtivas terem também crescido com o desenvolvimento global do indivíduo, e todas as fontes da riqueza cooperativa fluírem mais abundantemente — só então o estreito horizonte do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade!
Note-se que Marx continua a dizer que “só” depois de as forças produtivas estarem desenvolvidas o comunismo é possível.
Então, qual é a evidência de Saito? Há uma série de passagens de textos das áreas de geologia, botânica e agronomia que Marx copiou em cadernos demonstrando uma preocupação crescente com a perda de fertilidade do solo, mas a maior parte das afirmações de Saito baseia-se numa única carta de Marx a uma socialista russa, Vera Zasulich, perto do fim de sua vida em 1881, e após seu estudo mais amplo das comunas agrícolas russas ou sistemas mir.
Sempre que estudamos um novo tema, seja na escola, na universidade ou de forma independente, fazemos anotações em um caderno, muitas vezes transcrevendo grandes seções de outro artigo ou livro que são interessantes ou importantes para lembrar. O processo dessa transcrição é tanto um lembrete (pois a escrita auxilia na retenção dos conteúdos) quanto um recurso a ser utilizado posteriormente. Mas não se pode dizer que a mera transcrição seja um endosso do que é transcrito.
No entanto, Saito postula repetidamente as anotações de Marx sobre estes temas como prova do seu endosso, com muitos poucos comentários diretamente do próprio Marx complementares às transcrições que possam sustentar tal afirmação. Na ausência de Saito fornecer tais comentários suplementares (ou de os leitores dedicarem um tempo considerável para ler os cadernos por si próprios, nas suas várias línguas), como podemos saber se existe tal endosso?
É essencial que Saito forneça esta prova, pois afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias. Como o próprio Saito pergunta: “Se Marx realmente propôs o comunismo de decrescimento, por que ninguém o apontou no passado, e por que o marxismo endossou o socialismo produtivista?” Se todo o cânone marxista endossa o “produtivismo”, isto significa que a leitura dos escritos de Marx e Engels por milhares, na verdade milhões de socialistas durante cerca de 175 anos, estava errada.
Na carta de Zasulich, que passou por muitos rascunhos, Marx diz que as formas comunais de produção nas comunas agrícolas russas poderiam permitir à Rússia a transição direta para o comunismo sem a necessidade de passar pelo capitalismo. Deve-se notar que esta visão contrastava com interpretações talvez mais rígidas do materialismo histórico da época, sublinhando a necessidade de todas as sociedades passarem primeiro por fases pré-socialistas de desenvolvimento econômico.
No seu primeiro rascunho abandonado, Marx também afirma que o comunismo pode aprender com a propriedade comunal como uma “forma superior do tipo mais arcaico – produção e apropriação coletivas”. Mas Saito extrai uma inferência infundada da admiração de Marx pela comuna russa: porque estas comunas eram relativamente estáticas em termos de desenvolvimento — e representavam uma “economia estacionária e circular sem crescimento econômico” — Marx pensava que o comunismo também poderia abandonar o crescimento e abraçar o tipo de economia de estado estacionário defendida pelos malthusianos do século XX, como Herman Daly. A partir desta inferência, Saito dá o notável salto além em que “a última visão de Marx do pós-capitalismo é o comunismo do decrescimento”.
Mas, mais uma vez, a evidência de que a carta de Marx a Zasulich seria uma prova da viragem rumo ao decrescimento de Marx não é nada convincente. Ao examinar o primeiro rascunho da carta, descobrimos que Marx afirma que qualquer transição revolucionária para o comunismo na Rússia baseada na comuna teria que tirar vantagem do desenvolvimento capitalista das forças produtivas: “Precisamente porque é contemporânea da produção capitalista, a comuna rural pode apropriar-se de todas as suas conquistas positivas sem sofrer suas [terríveis] vicissitudes assustadoras.”
Para que não pensemos que Marx afirma que o comunismo implicará uma agricultura localista de pequena escala, ele também diz neste rascunho: “A comuna pode substituir gradualmente a agricultura fragmentada por uma agricultura em grande escala assistida por máquinas, particularmente adequada à configuração física da Rússia.”
Por outras palavras, o mir russo poderia ultrapassar o desenvolvimento capitalista porque o desenvolvimento capitalista tinha ocorrido em outros lugares, da mesma forma que muitos países pobres saltaram diretamente para a adoção de telefones celulares sem terem de passar pelas fases da telegrafia ou dos telefones fixos. Em nenhum momento de nenhum dos rascunhos, Marx sugeriu que a humanidade como um todo poderia ter seguido um caminho não-capitalista até o comunismo.
E tratar Marx como o cientista social que ele considerava ser e não como o profeta ecológico que Saito deseja que ele fosse, é tratar os seus argumentos da mesma forma que os de qualquer mero mortal: hipóteses a serem testadas contra evidências no mundo real. Na Rússia realmente existente, a pequena dimensão da classe trabalhadora e o atraso tecnológico do campesinato, do mir ou não, revelaram-se a maior barreira à construção do socialismo soviético.
Após a libertação final do campesinato da servidão feudal pela revolução de 1917, os camponeses não tinham incentivo para produzir um excedente suficiente para alimentar os trabalhadores na cidade. A sombria prodrazverstka durante a guerra civil, o regresso dos mercados sob a Nova Política Econômica, e a coletivização forçada Josef Stalin e as fomes resultantes foram diferentes esforços para superar este subdesenvolvimento. As evidências históricas mostram que, independentemente do que Marx pensasse sobre o mundo, ultrapassar os estágios históricos do desenvolvimento revelou-se impossível.
Deveríamos admitir que Saito apresenta uma visão de “abundância” no comunismo de decrescimento da qual nenhum socialista deveria discordar: definida principalmente por uma abundância de tempo livre para o desenvolvimento individual e social. Mas Saito minimiza o quão central era a visão de Marx de que tal abundância só era possível com base nas revoluções massivas nas forças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo — mais notavelmente na tecnologia poupadoras de mão-de-obra desenvolvida pelo capitalismo.
Sob o capitalismo, os ganhos de qualquer tecnologia que poupe trabalho foram quase exclusivamente reservados aos donos da produção: menos trabalhadores para a mesma produção (portanto, custos mais baixos e lucros mais elevados) em vez de mais férias para o mesmo número de trabalhadores para a mesma produção. No entanto, sob o socialismo, a sociedade poderia escolher democraticamente se, para o mesmo número de trabalhadores, queremos mais produção pelas mesmas horas, ou a mesma quantidade de produção por menos horas. Todavia o socialismo ainda precisa que essas tecnologias que poupam trabalho tenham sido desenvolvidas.
Não há necessidade de reinventar o marxismo
O que está acontecendo aqui? Parece que esta é uma tentativa desesperada de transformar Marx e o marxismo numa ideologia ambiental e de decrescimento pós-década de 1970. Para fazê-lo, temos de aceitar que tudo o que Marx e Engels escreveram juntos na década de 1840 (e, na verdade, as articulações mais populares de Engels nas décadas de 1870 e 1880), como a Ideologia Alemã e o Manifesto Comunista, é produto de um marxismo prometeico falho. Tudo o que resta nas suas cinzas são leituras idiossincráticas de O Capital, alguns cadernos esparsos que copiam passagens desconexas de textos agrícolas e a carta a Zasulich.
O marxismo clássico já oferece explicação suficiente da relação entre o capitalismo e os problemas ambientais. Não há necessidade de quaisquer alterações ou reinterpretações do marxismo através de uma arqueologia ilusória de notas de rodapé e cadernos.
Na produção de mercadorias, o que é benéfico nem sempre é lucrativo e o que é lucrativo nem sempre é benéfico. Se for rentável repor os nutrientes no solo, os capitalistas irão fazê-lo; se não for, eles não o farão. Qualquer produtor privado do item que causa problema ambiental tem incentivos para continuar a produzi-lo e impedir esforços legais ou sociais contrários.
É por isso que vemos empresas de combustíveis fósseis fazerem lobby contra a legislação de mitigação de emissões, financiarem a negação da questão climática e até mesmo — como no caso do dieselgate da Volkswagen — adotarem um comportamento criminoso.
Também não há incentivo para que atores privados desenvolvam ou produzam tecnologias que são sabidamente benéficas, mas que não são lucrativas, ou mesmo insuficientemente lucrativas.
No entanto, sob o socialismo, uma vez descoberta uma tal ameaça aos serviços ecossistêmicos resultante de uma determinada tecnologia, substância ou prática, a principal limitação à mudança de tais tecnologias é a rapidez com que os engenheiros podem conceber novas tecnologias que possam proporcionar o mesmo benefício, mas sem o dano.
Há uma série de setores industriais que são, ao mesmo tempo, vitalmente necessários, do ponto de vista social, e intensivos em carbono, como a produção de alumínio e de cimento, para os quais ainda não temos muitas alternativas limpas boas, ou pelo menos alternativas que cubram a totalidade desses setores. No entanto, os mercados são muitas vezes deficientes na investigação e desenvolvimento necessários para resolver estes problemas. Uma sociedade socialista, em princípio, é mais capaz de atribuir capacidade econômica a essa inovação, bem como de utilizar a política industrial para levar a inovação da bancada do laboratório até a implantação em larga escala.
Além disso, o mecanismo de preços nos mercados é fraco para resolver a coordenação socioeconômica. O objetivo é obter lucro e não resolver um problema identificado pela sociedade. A descarbonização requer uma reorganização radical da eletricidade, dos transportes, da indústria, da agricultura e dos edifícios ao longo de prazos semelhantes. A adoção de carros elétricos e bombas de calor têm de ocorrer em sincronia com a criação de nova produção de eletricidade limpa (para que não haja capacidade de produção de eletricidade excessiva nem insuficiente). Mesmo quando cessarmos a produção de petróleo para fins de combustão, ainda precisaremos de alguma produção de petróleo. Não poderemos abandoná-la amanhã. Os mercados lutam para fornecer o incentivo que mantenha a capacidade de extração e processamento adequada à medida que a procura diminui. Isto será especialmente verdadeiro à medida em que nos aproximarmos da emissão zero.
O caso em estudo aqui pode ser o das alterações climáticas, mas incompatibilidades semelhantes entre incentivos de mercado e solução de problemas de toda a sociedade ocorrem com todos os problemas ambientais. Na verdade, este desalinhamento entre os sinais de preços e os valores societais ocorre em todos os problemas, independentemente de estarem ou não relacionados com o meio ambiente (como, por exemplo, durante a pandemia, no que diz respeito à produção e distribuição de equipamentos de proteção individual e ventiladores, ao desenvolvimento e à produção de insumos para a produção de vacinas).
A solução para lidar de forma mais rápida e adequada com qualquer problema novo que encontremos, ambiental ou não, é afastar-se progressivamente da alocação de mercado e passar para o planejamento econômico democrático. Os defensores do decrescimento diagnosticam invariavelmente mal o problema central do capitalismo como “crescimento”, quando na verdade é a falta de controle social sobre as decisões de produção e investimento. Quando atingirmos esse controle, poderemos de fato optar por desenvolver muitas formas de produção socialmente úteis (e decrescer outras).
Enquanto o crescimento econômico, seja capitalista ou socialista, for considerado responsável pelos problemas ambientais, a ideologia neomalthusiana de Saito servirá como uma distração útil, para os capitalistas, da verdadeira fonte da incapacidade de lidar adequadamente com tais problemas: a anarquia do mercado. E a solução para tais problemas: o planeamento socialista.
Esta solução também levanta a questão: Que força na sociedade está melhor posicionada para provocar esta libertação?
Onde está a classe trabalhadora na transformação ecológica?
No final, deveria ficar claro que o fato de Karl Marx ser um “comunista do decrescimento” secreto não importa muito para enformar a nossa estratégia política hoje. A questão chave — tanto para os socialistas clássicos como nós ou para a visão de Saito de comunismo de decrescimento — é: que agente de mudança poderia realmente proporcionar as transformações que concordamos serem necessárias para enfrentar as alterações climáticas e outros problemas ecológicos?
Em Slow Down, Saito oferece a sua própria visão no capítulo final “The Lever of Climate Justice”, no qual elogia “movimentos de reforma municipal ecológica” como o da “Declaração da Emergência Climática” de Barcelona que aponta o crescimento como o principal culpado (não é surpresa que Barcelona seja o epicentro acadêmico do decrescimento). Saito também propõe uma vida urbana enraizada na “criação de uma economia focada na produção local para consumo local” (através de um perfil no New York Times aprendemos que o próprio Saito cultiva jardins em uma fazenda urbana local “cerca de um dia por mês”) e cooperativas de trabalhadores de pequena escala.
Saito também vê isto principalmente não como uma batalha entre classes de trabalhadores e capitalistas, mas entre regiões globais: “a injustiça das pessoas socialmente vulneráveis nos países do Sul Global que suportam o peso das alterações climáticas, embora o dióxido de carbono tenha sido emitido, na sua maior parte, pelo Norte Global, que provocou este desastre.”
Quando se trata de quem é o responsável no Norte Global, Saito é mais propenso a apontar para si mesmo e para os outros trabalhadores do que para o capital: “Os nossos estilos de vida ricos seriam impossíveis sem os recursos naturais saqueados e a força de trabalho explorada do Sul Global”. Em termos de poder organizacional para concretizar a transição de que necessitamos, Saito também olha para longe do Japão, em direção às organizações camponesas do Sul Global, como a Via Campesina e as campanhas pela “soberania alimentar”.
O capítulo parece uma longa lista de chavões da esquerda (em grande medida vazios) em voga na viragem do milênio: bens comuns, zonas autônomas, ajuda mútua e solidariedade horizontal.
A utopia urbanizada de hortas de pequena escala (que pesquisas recentes demonstraram ser seis vezes mais intensivas em carbono do que a agricultura convencional), ajuda mútua e habitação pública com painéis solares certamente soa bem para os prováveis leitores de Saito: moradores urbanos cosmopolitas e de classe profissional-gerencial. No entanto, surpreendentemente ausente deste capítulo, e na verdade dos dois volumes recentes de Saito, está qualquer menção ou papel para aquele que é o agente central da política marxista: a classe trabalhadora (em Slow Down a frase aparece apenas quatro vezes e de passagem).
Quando Saito menciona a classe trabalhadora, é muitas vezes com escárnio como participante do “modo de vida imperialista”. Mas são as massas precárias das classes trabalhadoras — demasiado exploradas e sobrecarregadas para encontrar tempo para as hortas urbanas — que constituem a grande maioria da sociedade e, portanto, a base de qualquer movimento político em grande escala para enfrentar a crise ecológica.
No capítulo final de Slow Down, Saito reconhece que os movimentos que celebra são pequenos, mas deposita a sua esperança na chamada regra dos 3,5%, baseada em um artigo que afirmava que os movimentos bem-sucedidos só precisam de 3,5% da população para alcançar o sucesso (um subterfúgio escolar para negar a necessidade da política de massas, se é que alguma vez existiu). No final, Saito espera simplesmente que um conjunto diversificado de ações resulte num poder de mudança mundial: “Uma cooperativa de trabalhadores, uma greve escolar, uma chácara orgânica — não importa a forma que assuma”. Não importa?
Embora a classe trabalhadora como um todo deva constituir a base para uma política ambiental de massas, também precisamos de uma estratégia direcionada que reconheça as alterações climáticas em particular, envolva um setor específico de trabalhadores sobre o qual Saito não diz quase nada: um grupo de trabalhadores interessados, com poder considerável e profundo conhecimento sobre os setores da energia, da extração, dos transportes, da construção, das infraestruturas e da agricultura que precisam de ser transformados. Ou seja, os trabalhadores industriais que os constroem, mantêm e operam.
Eles têm interesse em garantir que a transição limpa seja justa, que ninguém na linha da frente da produção fóssil seja deixado para trás. A maioria das projeções do volume de eletricidade nova e limpa necessária para descarbonizar totalmente a economia global situa-se entre a duplicação e a quadruplicação da geração atual. O volume de material extraído da terra provavelmente diminuirá à medida que descarbonizarmos (devido à gigantesca massa de carvão que é extraída em comparação com todos os outros recursos minerais), mas espera-se que o número de materiais extraídos e de trabalhadores das minas dispare.
Contanto nessas minas haja sindicatos militantes, que obtenham fortes normas de saúde e segurança, proteções ambientais locais e bons salários, haverá enorme benefício para os trabalhadores e para o desenvolvimento econômico das suas comunidades. Mesmo na aviação, talvez o setor mais difícil de limpar depois da produção de cimento, os caminhos para torná-la sustentável provavelmente incluem um maior número de controladores de tráfego aéreo, a reciclagem de pilotos e pessoal de terra para trabalharem com combustíveis limpos, segurança e manutenção de baterias, e alterações no voo horários dos atendentes. Saito, no entanto, não centra nos sindicatos, preferindo, em vez disso, cooperativas de trabalhadores. Na verdade, ele afirma abertamente que os sindicatos são frequentemente “subsumidos pelos capitalistas” nos seus esforços para se apropriarem de parte dos frutos do crescimento capitalista.
A ênfase nos trabalhadores industriais (incluindo os muitos contadores, zeladores, escriturários, carregadores de bagagem, funcionários do refeitório, agentes de reservas e motoristas — e os comissários de bordo mencionados acima – que inicialmente poderíamos categorizar erroneamente como trabalhadores de serviços) não se deve a algum romantismo masculinista, mas sim devido à pura prioridade estratégica. São estes trabalhadores que têm maior conhecimento sobre estes sistemas industriais relevantes para o clima (muitas vezes até mais do que os gestores destes sistemas) e, portanto, estão muito mais conscientes de quais políticas e tecnologias climáticas são suscetíveis de funcionar e quais são suscetíveis de ruir, do que o exército de profissionais acadêmicos, ONGs verdes, think tanks e mídia.
Mais importante ainda, eles têm o poder de incluir a descarbonização e exigências de transição justa nas suas negociações coletivas, apoiadas, se necessário, em cruzar os braços e declarar greve.
E isto significa todos os trabalhadores industriais que estão na linha da frente da transição ecológica: independentemente da raça, etnia ou região do mundo; não apenas “comunidades de justiça ambiental”; não apenas os povos indígenas; e não apenas os trabalhadores do Sul Global. Quando Saito (e outros) rejeitam os trabalhadores e os sindicatos do Norte Global por serem parceiros na exploração ecológica do mundo em desenvolvimento através da sua participação no “modo de vida imperialista”, estão se isolando de uma força fulcral que pode conduzir a uma transição limpa mais rápida, tanto nas urnas como através da negociação coletiva (apoiada pela ameaça de ação industrial).
É um erro básico acreditar que os trabalhadores do Norte Global exploram as pessoas do Sul Global, que existe um “modo de vida imperialista”. Isto é apenas uma repetição da teoria há muito desacreditada de uma “aristocracia operária”, a noção errada de que os trabalhadores nos países desenvolvidos são pagos pelos “superlucros” extraídos dos trabalhadores com salários mais baixos no mundo em desenvolvimento.
Na verdade, tem havido uma “guerra de classes global” do capital contra todos os trabalhadores em todo o planeta, todos esses trabalhadores têm muito em comum e um interesse compartilhado no combate ao domínio capitalista. Saito e outros trabalham para o capital ao criar cunhas geográficas rígidas que dividem a classe trabalhadora internacional contra si mesma.
Mas a crítica de Saito também é introspectiva e cheia de culpa. As páginas iniciais de Slow Down estão repletas de referências a “nossos estilos de vida ricos” e “nossas vidas confortáveis”. É claro que Saito vê a si mesmo e a seus leitores como parte do problema: “Nosso modo de vida é, de fato, uma coisa terrível. Somos cúmplices do modo de vida imperialista.”
Tudo isto então, desde a ênfase nas limitações dos mercados até o reconhecimento dos trabalhadores industriais e sua capacidade de cruzar os braços, deveria ser imediatamente reconhecido como derivado da concepção marxista da centralidade da classe trabalhadora na transformação política.
Não há necessidade de adicionar qualquer prefixo “eco” ao marxismo para explicar nossa questão. A explicação do marxismo clássico e sua correspondente orientação já são suficientes. Não há necessidade de passar para uma economia de estado estacionária, de abrandar o desenvolvimento tecnológico, de descentralizar a produção, de recuar a globalização para a “biorregião” local, de regressar a tecnologias mais “apropriadas”, de abandonar os “megaprojetos” ou a extração, ou criticar um “modo de vida imperialista” ou uma “ruptura metabólica” com o resto da natureza que não existe.
O marxismo já tem explicações suficientes para as causas dos problemas ambientais, tem também uma orientação de como resolvê-los e uma descrição de quem tem o poder e o interesse em realizar tais mudanças, ao passo em que jamais abandona o projeto socialista de libertação humana.
Sobre os autores
Matt Huber é professor de geografia na Syracuse University. Seu último livro é Climate Change as Class War: Building Socialism on a Warming Planet (Verso, 2022).
Leigh Phillips é escritor científico e jornalista sobre assuntos da UE. Ele é o autor de Austerity Ecology & the Collapse-Porn Addicts.
Publicado originalmente em Jacobin Magazine: https://jacobin.com/2024/03/kohei-saito-degrowth-communism-environment-marxism/?fbclid=IwAR3yudiku-Z5cmh2Nb83ICUFTx5y3PLguRhG98LeCz8-5LfIpgY2YoY859M (acesso em 16/03/2024)
Tradução do inglês: Mariana de Rossi Venturini
[1] N.T.: neologismo de composição que une os termos “greed” (ganância) e “inflaction” (inflação).
[2] Editado no Brasil pela Boitempo (2018) sob o título Ecossocialismo de Karl Marx (pp.352).