Taxa de juros alta não é culpa do povo e austeridade não é solução
Artigo de Diogo Santos e Iago Montalvão
Um coro uníssono se formou contra o governo federal envolvendo empresários de diversos setores da burguesia, seus representantes no congresso e porta-vozes na imprensa e na intelectualidade. O recado é: o governo deve deixar de ser perdulário e começar a cortar gastos para atingir as metas de resultado primário, não há mais espaço para aumento de receitas; somente assim, com um compromisso claro com a austeridade, haverá redução da taxa de juros. Como esperado, os alvos dos cortes propostos são aposentadorias, benefícios assistenciais, saúde e educação. Ou seja, o erro do governo seria insistir em manter os pobres no orçamento. É preciso enfrentar essa ofensiva, pois, no momento, essa é a batalha mais importante para definir os rumos do governo Lula.
Em primeiro lugar, é bom relembrar que outras reformas institucionais liberais já foram realizadas com a mesma promessa, não cumprida, de que a taxa de juros se reduziria estruturalmente. O teto de gastos do governo Temer, uma imposição de um regime fiscal severamente rígido e sem precedentes no mundo, foi vendido como o remédio definitivo para equilibrar as contas públicas e assim derrubar as taxas de juros. Já a redução das metas de inflação, realizada em 2017, serviria para aumentar a credibilidade do país diante do mercado financeiro, o que também, em tese, resultaria em uma redução das taxas de juros. Além disso, a blindagem do Banco Central em relação ao voto popular, chamada de autonomia, aprovada em 2021, foi sustentada sobre os argumentos de que “as melhores práticas internacionais” mostram que Bancos Centrais independentes conseguem entregar inflação na meta com menor custo, ou seja, com taxas de juros mais baixas. Nenhuma destas previsões se confirmaram.
Todas essas medidas partem do mesmo equívoco de que moldar o regime macroeconômico para a garantir segurança, liberdade e rentabilidade aos agentes financeiros, os levariam a retribuir cobrando menos do governo e das empresas para financiar suas atividades. Essa é a grande falácia do neoliberalismo que ainda nos domina. Na verdade, quanto mais poder de controle sobre a política econômica se concede ao setor financeiro, mais este impõe suas condições. Quanto menos instrumentos o Estado dispõe para contrabalancear o poder estrutural do setor financeiro, mais terá que ceder às pressões deste setor, sendo assim, mais capturado a cada nova reforma liberal. Isso é verdade, sobretudo, em países subdesenvolvidos, pois suas economias e seus Estados são estruturalmente mais vulneráveis aos movimentos dos agentes financeiros.
O desfecho não seria outro, caso fossem realizadas as medidas cobradas de austeridade fiscal como desvinculação entre as despesas de saúde e educação e receita, por um lado, e a desindexação de aposentadorias e benefícios assistenciais ao salário mínimo, por outro. A redução das despesas provocadas por essas medidas em pouco tempo se tornaria um novo normal e o mercado financeiro já estaria novamente exigindo por novos superávits primários e mais poder sobre a política econômica e o orçamento, assim como ocorreu com as reformas realizadas anteriormente. De fato, é esse o sentido estratégico do teto de gastos, não alterado fundamentalmente pelo novo arcabouço fiscal: dilapidar o pacto social da Constituição de 1988, sem se dar ao trabalho de uma nova constituinte, afinal de contas, todas essas propostas de cunho liberal atentam contra os direitos do povo e teriam forte reação negativa. A lógica deste regime fiscal é empurrar os governos, de direita ou de esquerda, para a revisão dos direitos sociais que são o pilar fundamental de proteção das classes populares contra a iniqua desigualdade gerada pelo capitalismo subdesenvolvido brasileiro. Na atual conjuntura histórica do país, retroceder aquém da Constituição de 1988, é o caminho para a barbárie.
Dadas as condições estreitas do regime fiscal, o governo vem adotando a tática menos nociva ao povo, ao buscar recompor as receitas do Estado, especialmente erodidas nos últimos governos. No entanto, qualquer proposta que busque realizar uma redistribuição progressiva das alíquotas de imposto de renda, ou mesmo a taxação de dividendos, transferências bilionárias e heranças, são fortemente rechaçados pela burguesia. Ou seja, todos os setores da burguesia que defendem a imposição de um duro controle de gastos ao poder Executivo, só aceitam equilíbrio fiscal se a conta for cobrada dos mais pobres.
O mesmo vale para os parlamentares, em sua maioria representantes desses setores da burguesia. Por um lado, impuseram ao povo um regime fiscal mais rígido que a proposta original do governo, que já havia sido demasiadamente tímida. Por outro lado, buscam se livrar das amarras dos limites de despesas ao obrigarem o Executivo a executar as emendas parlamentares bilionárias e o proibindo de incluí-las nos contingenciamentos de despesas. Agora abraçam o pedido dos empresários e da imprensa para que o governo se volte para o corte de gastos como caminho para atingir as metas fiscais, na ilusão vendida pelo mercado financeiro, de assim alcançar a redução das taxas de juros.
É preciso também atacar na raíz a fundamentação teórica que sustenta as falsas premissas da ideia de austeridade fiscal. Os juros são estruturalmente altos no Brasil por fatores distintos dos supostos pela ideologia liberal. Em primeiro lugar, há um fator conjuntural de grande peso que são as maiores taxas de juros nos EUA em mais de duas décadas. Isso direciona grandes fluxos de recursos financeiros para aquele país, em detrimento da semiperiferia do capitalismo. Consequentemente ocorre uma desvalorização do real diante do dolar, levando a uma pressão inflacionária no Brasil. A alta taxa de juros, nesse sentido, busca preservar os ganhos dos agentes financeiros que aplicam no Brasil principalmente para especulação.
Em segundo lugar, há um conjunto de fatores institucionais que refletem o elevado poder do setor financeiro no Brasil, construído ao longo de décadas, e o baixo poder do setor não financeiro, principalmente industrial, que fazem do Brasil um país particularmente submetido à coação da burguesia financeira nacional e internacional. Entre estes fatores estão a elevada desregulação da entrada e saída de capitais, que favorece as estratégias especulativas de aplicação financeira no Brasil para propiciar ganhos de curto prazo, impondo taxas de juros mais elevadas para atrair esses capitais; as limitações impostas ao BNDES e aos demais bancos públicos para efetivamente atuarem para diminuir as taxas de juros de mercado, o que funcionou durante o governo Dilma, em que pese as condições extremamente adversas à época e a enorme reação política que essa medida despertou, as amarras da institucionalidade e a condução da política monetária exageradamente tutelada pelo mercado financeiro, até mesmo para os padrões neoliberais.
Sob pressão de todos os lados, o governo passou a sinalizar na direção da revisão dos pisos constitucionais da saúde e educação e da desindexação de benefícios assistenciais. É preciso realizar uma pressão popular no sentido oposto. A lógica do teto de gastos é uma grande armadilha para as forças progressistas, pois nos coloca em oposição aos interesses das classes populares. Ceder às pressões da burguesia não resultará em benefícios em termos de redução da taxa de juros e aumento de investimento.
A maior parte dos países do centro do capitalismo promovem seu desenvolvimento econômico por meio de políticas econômicas fortemente expansionistas, quando não por meio das guerras e da expansão e controle imperialista, pelo caminho do intenso endividamento, e isso tem sido cada vez mais documentado e demonstrado teórica e empiricamente. Portanto, seria um erro, por princípio e estratégico, flexibilizar pisos constitucionais em áreas centrais, tanto em termos sociais quanto em termos econômicos, como educação e saúde. Isso não levará ao êxito do governo Lula. Além disso, não é admissível a redução de gastos destinados às classes populares garantidos pela Constituição, sem antes se realizar uma reforma tributária da renda. Nem tampouco essa estratégia promoveria desenvolvimento econômico justo e soberano com desenvolvimento de forças produtivas nacionais e e uma distribuição de renda menos desigual. Neste momento, enquanto não há força político-institucional para alterar esse regime fiscal, o governo deve reforçar a busca por recompor receitas, especialmente por meio da tributação progressiva, e intensificar a revisão de gastos com subsídios e desonerações de empresas e setores, atacando a subtributação de setores como o setor financeiro, além de impulsionar o crescimento econômico com distribuição de renda e retomada de um projeto nacional de desenvolvimento.
Essa batalha se tornou decisiva para manter a aliança entre o campo progressista e os setores populares. A necessidade de se elevar a capacidade de pressão e mobilização popular talvez nunca esteve tão evidente neste governo como agora. Nesse cenário, o papel do governo e da liderança do presidente Lula são indispensáveis. Vivemos uma época de intensa disputa ideológica, cuja gestão do governo federal se torna um instrumento importante para, não só promover as essenciais entregas necessárias para melhorar a vida do povo, mas também de abrir terreno na esfera ideológica, igualmente fundamental para criar mais espaço político para reconstruir o Brasil.
Desde o início estávamos – ou deveríamos estar – cientes de que as margens institucionais para realizar a reconstrução nacional estão estreitas, e portanto, a consequência lógica é que essas margens precisam ser ampliadas por outros caminhos, pois se não forem, continuarão se estreitando. Até aqui, o movimento de construção de uma frente democrática tem sido crucial para frear anseios fascistizantes do bolsonarismo. Entretanto, diante das divergências inerentes a essa frente, não tem sido suficiente para superá-los nem tampouco para evitar as pressões do mercado financeiro. Portanto, para alterar a correlação de forças institucional adversa, é necessário que as forças progressistas intensifiquem seu esforço para reconquistar maioria social e assim imprimir sua liderança no interior da frente ampla.