O centenário da Revolução de 1924 – Parte 1
No momento em que lembramos do centenário da revolta de 5 de julho de 1924, a FMG reproduz a primeira parte do artigo de Sergio Rubens de Araújo Torres.
Publicado originalmente na Hora do Povo
1. Antecedentes
A marcha heroica dos 18 do Forte, arremetendo contra 4.000 mil soldados da força governista, encerrara a primeira Revolução Tenentista ocorrida nos estados do Rio de Janeiro e Mato Grosso, em 5 de julho de 1922.
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Dois anos depois, mais experientes e mais fortalecidos, os tenentes voltariam à carga, retomando a ofensiva. Desta vez o centro do levante seria a cidade de São Paulo. A oligarquia cafeeira que assumira o controle da República, com Prudente de Moraes, em 1894, não teria mais condições de exercer tranqüilamente o seu poder autocrático. Seguidamente contestada pelos movimentos cívico-militares, seria apeada do poder em 1930, levando de roldão o império da fraude eleitoral, do boicote à industrialização, da manutenção artificial dos lucros do café, da afrontosa submissão aos interesses do imperialismo inglês.
As articulações entre militares e civis, para a Revolução de 1924, começaram no primeiro semestre do ano anterior. Estimulados pela adesão do ex-presidente Nilo Peçanha, e empurrados pela perseguição do recém-empossado governo federal, os tenentes tecem as malhas de uma vasta conspiração, envolvendo principalmente os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, o Sul de Minas Gerais e o Rio de Janeiro.
Nos últimos meses de 1923, o capitão Joaquim Távora assume de forma incansável o comando das articulações. Estabelece contato com oficiais sediados no Sul, e percorre todas as unidades do interior de São Paulo, Mato Grosso e Rio de Janeiro.
Távora havia participado do levante de 1922, no estado do Mato Grosso. O tenente João Alberto, que o conhecera na prisão, onde conviveram de julho a dezembro daquele ano, assim o descreveu:
“Alto de porte, calva à mostra, juntava o vigor físico à bravura moral… Socialista ardoroso, explicava-nos os acontecimentos políticos à luz da economia. Já preparava, nessa época, a próxima revolução”.
2. Personagens
Em São Paulo, Joaquim Távora fora morar na casa do Tenente Custódio de Oliveira, do 2º Grupo Independente de Artilharia Pesada, de Quitaúna.
Transformada em autêntico quartel-general revolucionário, a residência da Rua Vauthier, número 27, sediava as reuniões dos líderes do levante. Freqüentavam-na o major Miguel Costa, do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar – denominada, na época, Força Pública Paulista –, e diversos oficiais do Exército que serviam em unidades sediadas em São Paulo como o major Cabral Velho (fiscal do 6o Regimento de Infantaria, de Caçapava), o capitão Newton Estilac Leal (chefe de material bélico da 2ª Região Militar), os tenentes Asdrúbal Gwyer e Castro Afilhado – ambos do 4o Batalhão de Caçadores, situado no bairro de Santana.
Outro aparelho utilizado para discussões sobre os planos revolucionários era a residência dos tenentes Ricardo Holl e Vítor César da Cunha Cruz, na Travessa da Fábrica, número 6. A exemplo de Joaquim Távora, ambos haviam se transferido para São Paulo. Outros militares que também se encontravam fora da tropa, em virtude dos processos judiciais originados pelo levante de 1922, tomaram opção idêntica, visando fortalecer o comando revolucionário. Entre eles, figuram os tenentes Joaquim Nunes de Carvalho, Otávio Guimarães, Eduardo Gomes, Juarez Távora – irmão mais novo de Joaquim – e os ex-alunos da Escola Militar de Realengo, Emídio da Costa Miranda e Diogo Figueiredo Moreira Jr.
A escolha de um militar de alta patente, que assumisse publicamente o comando das operações no momento da deflagração do levante, era considerada pelos revolucionários um elemento estratégico indispensável ao êxito do movimento. Fixaram-se em Isidoro Dias Lopes, general do Exército, reformado, que mantinha conversações com o ex-presidente Nilo Peçanha, desde 1923.
3. 1º Plano Geral de Campanha
O primeiro Plano Geral de Campanha, elaborado por Joaquim Távora, pretendia antecipar-se ao golpe preparado pelo governo federal contra J.J. Seabra, que procurava manter o controle sobre o governo da Bahia apoiando Raul de Leoni à sua sucessão. Seabra era o governador do estado – na época, o termo era presidente do estado. Fora candidato à vice-presidência da República, em 1922, na chapa encabeçada por Nilo Peçanha contra o candidato situacionista Artur Bernardes. A luta para impedir a vitória e, em seguida, a posse de Bernardes, resultado de um processo eleitoral estruturalmente fraudulento, fora o estopim da Revolução de 1922.
Segundo o plano, o movimento deveria ser deflagrado no dia 28 de março, com início simultâneo no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Sul de Minas, podendo, em seguida, receber o apoio de elementos das guarnições do Rio de Janeiro, Mato Grosso e Goiás. O núcleo principal era a cidade de São Paulo. As guarnições do Exército, circunvizinhas da capital, em ação conjugada com elementos da Polícia Militar, a tomariam, enquanto os corpos de tropa aquartelados no Vale do Paraíba, reforçados por elementos vindos do Sul de Minas, avançariam até Cruzeiro, abrindo as portas para a invasão do Rio de Janeiro. Às forças paulistas caberia também a missão de barrar, na costa Leste da Serra do Mar, a progressão das unidades contra-revolucionárias, partidas de Santos. A rebelião no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná visava, principalmente, impedir que o contingente situado em Porto Alegre marchasse contra São Paulo ou que o mesmo fosse feito por elementos desembarcados em Paranaguá e São Francisco.
O principal fator que bloqueou e adiou sine die a execução do projeto foi o que Juarez Távora denominou, diplomaticamente, de “resistência passiva de um dos conspiradores mais graduados e influentes entre as guarnições comprometidas”. Na verdade, a defecção do major Bertoldo Klinger
O mês de março, conta ainda Juarez, “findava, assim, com uma rajada de desalentos”. Klinger desertara, Seabra fora humilhado e forçado a abandonar o governo da Bahia, um dia antes de expirar seu mandato. Quase simultaneamente, se apagava do cenário nacional o vulto estimulador de Nilo Peçanha. Morto em 31 de março de 1924, Nilo foi enterrado levando sobre o seu coração um dos pedaços do pavilhão do Forte Copacabana, que o tenente Siqueira Campos havia dividido em 29 partes para que cada combatente pudesse tê-lo consigo no momento final da luta. Nilo não apoiara a insurreição de 1922, porém, logo no momento seguinte, desdobrou-se na defesa política e jurídica dos revoltosos, radicalizando paulatinamente suas posições.
4. 2º Plano Geral de Campanha
Mas os reveses não desanimaram os tenentes. Joaquim Távora trabalha com energia redobrada. No início do mês de maio, já está pronto o novo plano para a deflagração do movimento revolucionário.
Ao invés do levante simultâneo de unidades militares em diversos estados, como projetado anteriormente, a ação deveria iniciar-se pela tomada da cidade de São Paulo. As demais guarnições do Estado incorporar-se-iam num segundo momento. As do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais só revelariam sua adesão à revolução na medida em que fossem enviadas para combatê-la.
A primeira parte do plano, execução do levante em São Paulo, foi preparada em dois tempos:
1º – assédio e assalto do bloco de quartéis policiais da Luz (1º, 2º e 4º Batalhão de Infantaria, Corpo Escola, Cadeia Pública e Regimento de Cavalaria – este previamente comprometido com a revolução). A ação seria executada pelo 4º Batalhão de Caçadores e pelo Regimento de Cavalaria, com apoio de fogo do 2º Grupo de Artilharia Pesada, de Quitaúna. Isso conseguido, ocupar-se-iam as estações ferroviárias, o telégrafo e a telefônica.
2º – o assalto dos demais bastiões da defesa governista, localizados em vários pontos da cidade – 3º e 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Secretaria de Justiça, Palácio do Estado e Quartel-General da Guarda Cívica. A ação seria realizada por patrulhas do 4º Regimento de Infantaria, transportadas de Quitaúna para São Paulo em automóveis.
A segunda parte do plano, defesa e ampliação das posições conquistadas, seria iniciada antes do amanhecer do dia 5 de julho. O capitão Joaquim Távora avançaria com 500 homens, pela Estrada de Ferro Central do Brasil, em direção a Barra do Piraí (RJ), incorporando durante a marcha os efetivos de unidades do Exército já comprometidas com o movimento. Outro destacamento seguiria para Santos, através da São Paulo Railway, a fim de ocupar o Porto. Se a cidade não pudesse ser ocupada, os revolucionários abririam trincheiras na Serra do Mar, para barrar a progressão de tropas vindas do litoral contra São Paulo.
Esperava-se que uma vez ocupada a capital paulista, bloqueado um ataque governista mediante desembarque de tropas em Santos, e aberto o Vale do Paraíba à ofensiva das tropas revolucionárias sobre o Rio, seria quase certa a adesão das unidades do Exército enviadas de outras guarnições para combatê-las.
Concluído o plano, Joaquim Távora dirigiu-se ao Rio, para apresentá-lo ao general Isidoro. Este aceitou-o sem ressalvas. A data da deflagração do movimento foi fixada inicialmente para o dia 28 de maio, depois 26 de junho e, finalmente, zero hora de 5 de julho de 1924.
5. São Paulo em 1924
Embora a escolha de São Paulo como centro do levante tenha se dado principalmente pela avaliação da correlação de forças no terreno militar, o ambiente de descontentamento que predominava entre os 700 mil habitantes da cidade não escapava à percepção dos revolucionários.
Três questões políticas galvanizavam as atenções, no primeiro semestre daquele ano. A truculência empregada por Washington Luís, para fazer de Carlos de Campos seu sucessor no governo do estado. As greves operárias provocadas pela carestia, ocorrida em função da alta artificial dos preços do café. Os objetivos da Missão Inglesa que, antecipando as do FMI, promovia, com o beneplácito do governo, minuciosa inspeção na economia nacional.
A ação de Washington Luís forçando o PRP (Partido Republicano Paulista)a recuar da indicação da candidatura do senador Álvaro de Carvalho, primeiro para o governo e depois para o senado, provocara, em 22 de janeiro, o desligamento de Altino Arantes, governador no período 1916-1920, e o surgimento do grupo dissidente denominado Os Coligados, do qual se aproxima Júlio de Mesquita, com seu jornal O Estado de São Paulo.
No final do mês de janeiro tem início também uma greve na maior indústria têxtil da cidade, o Cotonifício Rodolfo Crespi. Pressionados pela carestia, os trabalhadores reivindicam 40% de reajuste salarial. A paralisação se alastra por todo o setor, envolvendo 12.000 operários durante várias semanas. Violências, perseguições, prisões, deportações e um aumento de 10% são o resultado do movimento. Porém a discussão sobre as causas e soluções para o problema da carestia não cessam com o seu encerramento.
No dia 29 de junho, ultrapassando as piores expectativas dos que desde a sua chegada, em dezembro de 1923, denunciavam a humilhante ingerência, a Missão Inglesa publica um relatório no qual recomenda a privatização do Banco do Brasil, do Lloyd e da Estrada de Ferro Central do Brasil, ou seja, de todas as estatais dos anos 20. Para renegociar a dívida e conceder novos empréstimos, a missão cobrava também do governo um rígido arrocho fiscal e medidas que favorecessem o ingresso de capitais externos, considerados indispensáveis ao desenvolvimento do país – antigo filme que viria a ser reprisado inúmeras vezes, sempre apresentado como a última palavra em matéria de modernidade.
6. O Início do Levante
Um atraso de doze horas na chegada do general Isidoro impediu que a segunda parte do levante transcorresse conforme o plano estabelecido. Porém, a primeira – a mais importante –, embora só iniciada por volta das cinco horas da manhã, estava praticamente concluída, sem incidentes, em pouco mais de quarenta minutos, ao clarear do dia 5.
Isidoro havia se comprometido a chegar, em São Paulo, na manhã do dia 4. O local marcado para o encontro era a estação da Luz. No entanto, na última hora, decidiu saltar na estação do Brás, provocando os desencontros e atrasos que prejudicariam a execução das operações.
Só às três e meia da manhã, Joaquim Távora consegue chegar ao 4º Batalhão de Caçadores, de Santana, encontrando a tropa já rebelada pelo trabalho de persuasão realizado pelo capitão Newton Estilac e os tenentes Asdrúbal Gwyer e Castro Afilhado. Uma hora depois, armada e municiada, a força marchou reunida até a Ponte Pequena, onde se separaram as diversas patrulhas de assalto aos quartéis da Luz. Às cinco horas da manhã completou-se o cerco dessas casernas. O Regimento de Cavalaria, comandado pelo major Miguel Costa, foi o primeiro a soar o toque de formatura, sinal de adesão à causa revolucionária. Enquanto isso, Índio do Brasil e Castro Afilhado penetram no 4º Batalhão de Infantaria; Estilac Leal e Thales Marcondes no 2º; Eduardo Gomes e João Batista Nitrini no 1º; Asdrúbal Gwyer e Arlindo de Oliveira no Corpo Escola. Sem que tenha sido preciso o disparo de um só tiro, a bandeira da revolução tremulava triunfante sobre o principal reduto governista.
No entanto, seis núcleos da defesa governamental – 3º e 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Guarda Cívica, Secretaria da Justiça e Palácio do Estado – não puderam ser atacados em virtude do desencontro entre as forças do tenente Juarez Távora e o tenente Custódio de Oliveira, o que retardou a tomada do 4º Regimento de Infantaria, de Quitaúna, base de onde partiriam tais ataques.
Assim, ao amanhecer os revolucionários ainda não haviam logrado apoderar-se da cidade. Mas seus efetivos contavam 1.500 homens, 100 automáticas, 2 milhões e 500 mil cartuchos e as baterias do Grupo de Artilharia Pesada de Quitaúna, ocupando posição no Campo de Marte. O efetivo do governo não chegava a 1.000 homens, sem artilharia e sem cavalaria.
7. Reação do General Abílio de Noronha
Alertado da eclosão do movimento pelo Capitão Grimualdo Fávila, o general Abílio de Noronha, comandante da 2ª Região Militar, que passara a noite no Hotel Esplanada, participando dos festejos do Independence Day, promovidos pelo consulado norte-americano, dirigiu-se, na manhã do dia 5, ainda insone, ao recém-sublevado quartel do 4º Batalhão de Caçadores. Como os oficiais revolucionários haviam se deslocado para o Centro, não foi difícil ao general retomar o quartel. Com os elementos que lá encontrou organizou uma força e marchou rumo aos quartéis da Luz.
Chegando ao 4º Batalhão de Infantaria, cuja maior parte da tropa também já se encontrava em missões fora do quartel, tomou-o e reintegrou no comando os oficiais que haviam sido presos pelos revolucionários. Dali seguiu para o Corpo Escola, onde tentou fazer o mesmo, mas foi barrado pelo capitão Joaquim Távora que lhe deu voz de prisão. Houve troca de palavras ásperas que só cessou com a chegada providencial do general Isidoro e do coronel João Francisco, a cuja ordem de prisão acabaram se submetendo o general Abílio e os oficiais de seu séqüito. Aí terminou a ação contra-revolucionária do comandante da 2ª Região Militar, mas não os seus efeitos.
Desconhecendo o que ocorrera no 4º Batalhão de Infantaria, para lá se dirige Joaquim Távora, seguido dos tenentes Juarez Távora, Castro Afilhado e do capitão Índio do Brasil. São presos e sumariamente condenados à morte por fuzilamento, pelo secretário de Justiça Bento Bueno. Mas acabam libertados na tarde do dia 10, após o abandono da cidade pelas tropas do governo. Na mesma ocasião foi libertada a aviadora Anésia Pinheiro Machado, também detida na unidade por haver lançado flores e panfletos sobre a cidade no início da rebelião.
Com a prisão de Joaquim Távora, a estratégica descida do Vale do Paraíba, em direção a Barra do Piraí, que deveria iniciar-se na manhã do dia 5, sob seu comando, foi sendo adiada e acabou suspensa. O prolongamento da luta pelo controle da capital provocaria outras alterações nos planos revolucionários.
8. A Disputa da Capital
Na noite de 5 de julho começa a definir-se a linha de contato das tropas adversárias. No Centro, as estações da Luz e Sorocabana, sob comando do tenente João Cabanas, da Polícia Militar; o hotel Terminus sob o comando de Estilac Leal; a estação do Brás sob o comando do tenente Arlindo de Oliveira; a da Cantareira comandada pelo tenente Eduardo Gomes; e, no flanco esquerdo, o 4º Batalhão de Caçadores, retomado pelo tenente Gwyer de Azevedo.
Os dias 6 e 7 são marcados por intensos combates. Forças federais penetram na cidade visando um contra-ataque. Três dessas unidades aderem à revolução: o 2º Grupo de Artilharia da Montanha, vindo de Jundiaí, o 6º Regimento de Infantaria, de Caçapava, sob o comando do major Cabral Velho, e uma companhia do 5º Regimento de Infantaria, de Lorena, sob o comando do tenente Azhaury de Sá Brito e Sousa. O efetivo que passa para o lado dos revoltosos, com essas adesões, é superior aos reforços governistas chegados de Santos e Pirassununga – 400 marinheiros, com uma seção de canhões Armstrong, 75; o 3º Grupo de Artilharia de Costa, com uma bateria Krupp, 75; e 200 homens do 2º Regimento de Cavalaria Divisionária. Essas forças realizam um bombardeio de pouca eficácia sobre o quartel-general das forças revolucionárias, instalado na região da Luz, e tentam um avanço ao longo do Tamanduateí. A ação é repelida. Seus executores são forçados a entrincheirar-se na usina da Light, da Rua Paula Sousa.
Os ataques dos revoltosos ao Palácio dos Campos Elísios, onde o governador Carlos de Campos mantinha a sede do governo, foram todos rechaçados, nos dias 5 e 6 de julho. Porém, durante a madrugada do dia 7, os rebeldes penetram silenciosamente nos palacetes abandonados pelos moradores, nas imediações do Palácio. A partir de posições bem protegidas, nos forros dos telhados, desatam intensa fuzilaria sobre as forças governistas. Pegas de surpresa, as tropas abandonam as barricadas em atropelo e são obrigadas a permanecer acuadas, dentro do prédio. O governador decide então transferir-se, sigilosamente, para a Secretaria da Justiça, no Largo do Tesouro. Mas o edifício, devido a sua posição elevada, se constituía num excelente alvo para a artilharia revolucionária que, mesmo sem conhecimento de tão ilustre presença, atacou-o com rara eficácia. Carlos de Campos, quase atingido pelas granadas, decide, então, retirar-se com seus auxiliares imediatos para a localidade de Mogi das Cruzes e dali para Guaiaúna – nas proximidades da estação de Vila Matilde, situada, na época, nos limites da capital. A fuga foi efetuada no dia 8 de julho. Os revolucionários, porém, só tomaram conhecimento do fato na manhã seguinte.
9. Miguel Costa Confronta Isidoro
A luta ininterrupta travada dia e noite dentro da capital paulista, desde o amanhecer de 5 de julho, se constitui num verdadeiro teste para os nervos dos dois adversários. Desconhecendo a fuga do governador, o general Isidoro, na noite do dia 8, comunica sua decisão de abandonar a cidade e concentrar as tropas revolucionárias em Jundiaí. Para lá deveriam marchar também o 4º Regimento de Artilharia da Montanha, de Itu, e o 5º Batalhão de Caçadores, guarnições que haviam aderido à revolução e estavam aquarteladas em Rio Claro.
O major Miguel Costa se insurge contra a decisão. Não vê sentido numa retirada quando as possibilidades de vitória ainda eram promissoras. Não aceita que se deixe para trás, na prisão, sob ameaça de execução sumária, o principal organizador do movimento, o capitão Joaquim Távora. Considera que a retirada naquele momento seria um golpe fatal no moral das tropas e provocaria a desagregação das forças revolucionárias. Declara que as unidades da Polícia Militar, sob seu comando, não acatariam a ordem e prosseguiriam em suas posições, dentro da cidade. Isidoro retira-se do quartel-general abalado, mas mantendo a decisão de promover a retirada na manhã do dia seguinte.
Miguel Costa foi o primeiro a tomar conhecimento da fuga de Carlos de Campos e do conseqüente colapso das forças governistas, ocorrido na madrugada do dia 9. Prontamente pediu ao tenente Simas Enéas, assistente de Isidoro, que fosse procurá-lo para que se reconciliassem. A divergência estava superada. São Paulo fora conquistada.
10. Acordo com a Associação Comercial e a Prefeitura
Os dias 9 e 10 de julho transcorrem em relativa tranqüilidade. As forças revolucionárias contêm rapidamente a onda de saques iniciada com a fuga das autoridades governamentais e realizam entendimentos com a Associação Comercial e a Prefeitura de São Paulo.
A Associação Comercial, presidida por José Carlos de Macedo Soares, representava os grandes industriais e comerciantes paulistas. No dia 7 de julho, havia publicado manifesto de apoio a Carlos de Campos, que conclui com as seguintes palavras:
“A Associação Comercial de São Paulo aconselha às classes conservadoras que acompanhem com a máxima simpatia e apoio a heróica resistência que vem desenvolvendo o governo do Estado. E se mantenham confiantes na ação resoluta do presidente Carlos de Campos”.
Mas, considerando a retirada do governador para Guaiaúna e a impossibilidade das empresas das ditas classes conservadoras seguirem o mesmo caminho, acharam estas prudente reconhecer a situação de fato, criada pela conquista revolucionária da cidade. As principais decisões que emergiram dessas conversações foram a manutenção do prefeito Firmino Pinto no cargo e a assinatura do Ato 2424, criando a Guarda Municipal – uma força desarmada, organizada pela Prefeitura, destacada para apoiar o policiamento da cidade.
Em boletim datado do dia 10, o doutor Firmino Pinto, prefeito da capital, apresenta o seu ponto de vista sobre a questão:
“O prefeito de São Paulo, diante da situação de fato, de ter sido tomada a cidade pelas forças revolucionárias, foi pessoalmente à presença de seu chefe responsabilizá-lo pelo serviço de policiamento e abastecimento desta capital. Tendo o chefe dos revolucionários declarado que não embaraçaria a atuação da autoridade municipal, o prefeito continuará no seu posto a tomar as providências que se tornem necessárias”.
No mesmo dia, os jornais publicam com destaque o Comunicado dos Chefes do Movimento Revolucionário, sinal de que a imprensa também mudara o tom em relação ao levante.
11. Chuva de Bombas sobre São Paulo
Mas a paz terminaria no dia seguinte, 11 de julho, quando os 700.000 habitantes de São Paulo assistem estarrecidos o início do capítulo mais negro da história da cidade. Os bairros do Brás, Belenzinho, Mooca e o Centro começavam a sofrer tremendo bombardeio. Seguidamente os obuses e granadas de vários calibres varavam casas pobres, matando, ferindo, destruindo, apavorando. Os moradores dessas zonas atingidas, acometidos de pânico, juntavam o que podiam e se retiravam sem rumo certo, invadindo outros bairros em busca de abrigo e socorro.
Francisca Spinelli, moradora de um dos bairros atingidos, em carta à amiga Leopoldina Ferreira, de Piracicaba, revela a angústia e a perplexidade da população frente à violência do choque:
“Nunca vi a morte tão de perto como na madrugada de hoje… As balas passam sobre as nossas cabeças assobiando terrivelmente. Espera-se a todo momento ser-se vítima de uma dessas monstruosas granadas. Já morreram diversas pessoas aqui na rua e aqui ficam, sem o auxílio de ninguém… Temos nos escondido no porão”…
A ação causa centenas de baixas civis e nenhuma baixa militar. Há uma multidão de feridos e desabrigados. A Associação Comercial lança um dramático apelo:
“O canhoneio de ontem, tendo alarmado a população desta capital, determinou o êxodo dos moradores… fazendo com que dezenas de milhares de pessoas abandonassem seus lares… A Associação Comercial de São Paulo pede aos habitantes desta generosa cidade que recebam em suas casas, na medida de suas forças, as mulheres velhos e crianças desamparadas”.
O arcebispo Metropolitano D. Duarte Leopoldo da Silva mandou franquear igrejas, cedeu conventos, escolas, casas e paróquias, para a abertura de hospitais. No próprio dia 12, é criada uma comissão para pedir a intervenção do governo federal a fim de cessar o bombardeio. A comissão é composta pelo arcebispo D. Duarte; o prefeito Firmino Pinto; o presidente daLiga Nacionalista, Vergueiro Steidel; o diretor do jornal O Estado de São Paulo, Júlio Mesquita; e José Carlos de Macedo Soares. Prontamente telegrafam ao Ilustre Presidente da República, dr. Artur Bernardes:
“Pedimos V. Excia. intervenção caridosa para fazer cessar bombardeio contra inerme cidade de São Paulo, uma vez que as forças revolucionárias se comprometem a não usar seus canhões em prejuízo da cidade. A comissão não tem intuito algum político, mas exclusivamente a compaixão pela população paulista”.
A resposta vem assinada pelo ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho, diz:
”…não é possível assumir nenhum compromisso nesse sentido. Não podemos fazer a guerra tolhidos do dever de não nos servirmos da artilharia contra o inimigo… Os danos materiais podem ser facilmente reparados, mormente quando se trata de uma cidade servida pela fecunda atividade de um povo laborioso. Mas os prejuízos morais, esses não são suscetíveis de reparação”.
Carlos de Campos, em mensagem à Câmara de Deputados, é ainda mais explícito e enfático:
“Estou certo de que São Paulo prefere ver destruída sua formosa capital antes que destruída a legalidade no Brasil!”.
Na verdade, a oligarquia cafeeira, ao concluir que iria perder a sua capital para os revolucionários, decidiu sacrificá-la. Ao mesmo tempo em que comandou a retirada de Carlos de Campos, fez gestões junto ao governo federal para que o bombardeio fosse iniciado imediatamente. Washington Luís e o vice-governador, coronel Fernando Prestes, bancavam o jogo nos bastidores. Carlos de Campos, ex-líder do governo na Câmara Federal, havia sido o principal articulador da candidatura Bernardes. Washington Luís foi quem garantiu a sua posse na presidência da República, em 1922, quando o próprio Epitácio Pessoa pregava “a desistência do Bernardes” como “solução”para a crise. Este não se encontrava em condições de negar-lhes nada.
O bombardeio prossegue quase ininterruptamente, à razão de 130 disparos por hora. As descrições encontradas em relatos da época são impressionantes:
“No Cemitério Municipal, onde centenas de pessoas vagam como zumbis a procura de desaparecidos, 64 corpos não identificados aguardam os coveiros, para serem enterrados em covas rasas. Cerca de 200 mortos anônimos se amontoam também numa baixada do Cemitério do Araxá a espera de sepultamento… Alguns corpos, há mais de 24 horas insepultos, são enterrados sem as formalidades legais até mesmo em terrenos descampados. Muitas famílias sepultam os seus mortos em quintais”.
Nova tentativa de suspender o bombardeio, feita no dia seguinte, 13 de julho, por uma delegação dos representantes diplomáticos sediados em São Paulo, também não obteve êxito. A noite é de grandes incêndios. Labaredas com mais de dez metros de altura devoram a fábrica de biscoitos Duchen, na Mooca. As chamas destroem também o Fórum Criminal, três casas na rua Tabatinguera, a companhia Duprat, os armazéns de Nazareth Teixeira e da Companhia de Comércio e Navegação. No dia 14 os bairros mais atingidos são Campos Elísios, Vila Buarque, Vila Mariana, Aclimação e Liberdade. No dia 15, o Teatro Olympia, na avenida Rangel Pestana, que servia de abrigo para dezenas de famílias que haviam perdido suas casas foi duramente atingido. As colunas, teto e paredes desabaram sobre seus ocupantes, em sua maioria, mulheres, velhos e crianças – 30 mortos e 80 feridos em estado grave.
O escritor e compositor Cornélio Pires, mestre da poesia caipira, registrou em sua Moda da Revolução o ambiente de desolação provocado pelo bombardeio da cidade:
Quando cheguei em São Paulo
O que cortou meu coração
Eu vi a bandeira de guerra
La na torre da estação
Encontrava gente morto
Por meio dos quarterão
Dava pena e dava dó
Ai, era só judiação
12. A Intensificação do Bombardeio
A situação era terrível, mas ainda iria piorar. Em 15 de julho, trazida do Rio de Janeiro, entra em ação uma arma mais mortífera: os canhões de 155 milímetros. Até então a cidade havia sido alvejada por baterias de 75 e 105 milímetros.
O capitão Correia Lima, comandante da 2ª Bateria, recebendo Carlos de Campos em visita às tropas estacionadas nas proximidades da estação de Vila Matilde, ordenou ao municiador que abrisse a culatra do canhão e lhe mostrasse uma granada. Isto feito, ponderou:
Excelência, essa granada tem um raio de ação de 600 metros. Isso quer dizer que duas pessoas, distantes 1200 metros, uma da outra, poderiam ser mortas por estilhaços de uma única granada. Numa ocasião como esta, sobre São Paulo, o melhor uso desta bateria é ficar silenciosa.
A resposta de Carlos de Campos:
Destrua-se São Paulo, mas fique impoluto o princípio da autoridade.
Nos dias que se seguiram, aquelas baterias não cessaram de despejar sua carga arrasadora sobre a cidade.
O jornalista Paulo Duarte, testemunha ocular dos fatos, observa que“as granadas caíam a esmo”:
“O bombardeio durava dias e noites sem cessar; a Santa Casa se enchia de mulheres e crianças, os cemitérios pejavam-se de cadáveres e as fileiras revolucionárias não perdiam um só homem.
A conclusão que se impunha era estarrecedora, porém incontestável:
“… a artilharia governista atirava sobre a cidade em geral, sem ponto certo”.
O alvo era a própria cidade. A finíssima e liberalíssima oligarquia cafeeira paulista praticava, contra sua capital rebelada, o cruel, desumano e covarde bombardeio terrificante – ação tipificada como crime de guerra, perante a Convenção de Haia de 1917.
13. A Morte de Joaquim Távora
Na noite do dia 14, um contingente governista, partindo do Ipiranga, consegue atravessar os bairros de Aclimação e Vila Mariana, em caminhões e automóveis, e acaba por entrincheirar-se naquelas redondezas, retomando e ocupando o 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar, na rua Vergueiro; os largos do Paraíso e da Guanabara; o convento Santo Agostinho; e, na Brigadeiro Luís Antônio, o convento Imaculada Conceição.
Desde o início do levante, as forças governistas não haviam conseguido qualquer penetração, digna de nota, nas defesas revolucionárias. Esta era a primeira vez que isso acontecia. Reverter a situação tornou-se, então, uma questão vital, a fim de que o precedente criado não minasse o moral das tropas.
O contra-ataque é comandado pelo capitão Joaquim Távora. Depois de intensos combates, na manhã do dia 16 os revoltosos já haviam retomado o controle da área. A bandeira revolucionária voltava a tremular no 5º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar. Porém, saiu-lhes cara a vitória. Com indignação contida, um relato da época conta como o capitão Joaquim Távora tombou na luta pela retomada do 5º Batalhão.
“Vendo que a resistência era inútil, os legalistas acenaram o lenço branco. Aproximou-se do quartel um pelotão de rebeldes comandados por Joaquim Távora. Os defensores da lei, com flagrante deslealdade, atiraram sobre aquele oficial, atingindo-o em cheio no peito. O capitão Távora dois dias depois, falecia no Hospital Militar”.
14. Batalhões Patrióticos
Ao mesmo tempo em que Joaquim Távora recebia no próprio peito a demonstração do tipo de “princípios morais” pelos quais a oligarquia revelava tamanho zelo, o comando revolucionário abre inscrições para o voluntariado e convoca a população.
O resultado entusiasma os tenentes. O jornal A Plebe, porta voz do movimento anarquista, divulga um manifesto de apoio aos revoltosos – Moção dos Militantes Operários ao Comitê das Forças Revolucionárias. Ainda que considerando imprecisos e limitados os objetivos do levante, os anarquistas não tinham como deixar de acompanhar a onda de adesão das classes populares, especialmente da classe operária, que só fazia aumentar a cada granada disparada contra a cidade.
Alguns comícios já haviam se realizado, a exemplo do ocorrido no Largo do Arouche, cuja convocatória é representativa do clima que tomava conta de São Paulo:
”… o comício será de protesto contra o bombardeio da cidade – atentado de inaudita ousadia, perpetrado por aqueles que se dizem defensores da ordem e da legalidade. Falará sobre o acontecimento o dr. Lindolfo Barbosa Lima, fazendo-se ouvir outros oradores”.
Com a abertura para o recrutamento de voluntários, o apoio da população expresso em manifestações e outros gestos de simpatia, como as refeições servidas aos combatentes nas trincheiras, poderia expressar-se de forma superior.
Os voluntários foram organizados em Batalhões Patrióticos. A afluência de imigrantes veteranos da 1ª Guerra Mundial, muitos sem saber o português, foi grande, o que levou os revolucionários a criarem três batalhões estrangeiros, organizados de acordo com as afinidades de idioma.
O batalhão húngaro, instalado na rua Tiradentes, número 15, inicialmente se responsabilizou pelo policiamento da cidade. Dos 122 combatentes alistados, 13 eram oficiais com experiência em campos de batalha. No número 88 da avenida Liberdade, foi instalado o Batalhão Patriótico da Colônia Alemã, sob o comando de João Joaquim Tuchen. O batalhão italiano, composto basicamente de anarquistas, tem em Lamberti Sorrentino, redator do jornal Il Piccolo, um de seus principais líderes.
O processo de adesão popular cresceu ininterruptamente. Até a véspera da retirada, encontravam-se panfletos com este teor:
“Ao proletariado em geral! Convida-se o proletariado para uma reunião neste Sábado, 26 do corrente, a rua Wenceslau Brás, 19, às 14h, onde ficará definitivamente assentado o seu concurso moral e material em favor da Revolução que ora sacode este Estado ao caminho de um amanhã de mais liberdade, justiça e bem-estar para as classes oprimidas. (O Comitê Operário)”
O caipira retratado por Cornélio Pires, na Moda da Revolução, que inicialmente se mostra consternado, melancólico, com a destruição observada em sua chegada à cidade, já na quinta estrofe aparece mergulhado na luta, de armas e bagagens:
Nós tinha um 42
Que atirava noite e dia
Cada tiro que ele dava
Era mineiro que caía
E tinha um metralhador
Que encangaiava com pontaria
Os mineiro com os baiano
Ai, c`os paulista não podia
15. Condições de Paz
Desde o início dos bombardeios, os representantes dos industriais e comerciantes apelavam ao general Abílio de Noronha, preso pelos revoltosos no primeiro dia do levante, para que aceitasse a incumbência de negociar com o governo federal uma solução para o conflito. Noronha, que até a rebelião era o comandante da 2ª Região e tinha alto prestígio na cúpula militar, pede que os revolucionários formalizem em carta as suas condições.
Em 17 de julho, o general Isidoro encaminha a carta estabelecendo a condição básica:
“Entrega imediata do governo da União a um Governo Provisório composto de nomes nacionais de reconhecida probidade e da confiança dos revolucionários. Exemplo: Dr. Wenceslau Brás”.
A carta afirma ainda que: o “Governo Provisório convocará uma Constituinte, quando julgar oportuno”. E reafirma o compromisso com o “voto secreto” e a “educação pública”, bandeiras que sintetizavam as mudanças mais urgentes pelas quais os revolucionários se batiam.
Alegando não poder dirigir-se ao presidente da República para solicitar a sua renúncia, o general Abílio de Noronha recua da atribuição, mas a carta se transforma numa espécie de plataforma revolucionária. É impressa, distribuída aos jornais e à população, obtendo ampla repercussão.
16. Aviação Ataca São Paulo
A 22 de julho já era insuportável a atmosfera em São Paulo. O canhoneio sistemático espalhava pânico e desespero entre a população civil. Cerca de 15 mil pessoas deixavam a cidade diariamente. Mais de 150 mil já a haviam abandonado. Esse número chegaria a 300 mil, quase a metade da população de São Paulo, na época.
Naquele dia fora atingida mais uma das grandes fábricas paulistas, o Cotonifício Rodolfo Crespi, estabelecimento têxtil dos mais bem montados da América do Sul. O povo olhava angustiado os rolos de fumaça que enegreciam o céu. Chamas colossais podiam ser vistas a quilômetros de distância.
Os revolucionários respondem com ousadia, estreando seu trem blindado. Produzido nas oficinas da São Paulo Railway, o invento se constituía de uma locomotiva entre dois vagões de carga revestidos com paredes duplas de madeira recheadas de areia, para amortecer as balas e proteger os soldados em seu interior. O vagão da frente transportava um reforçado limpa-trilhos e uma metralhadora pesada, no teto, dentro de uma torre de ferro. A 60 quilômetros por hora, o trem partiu da Luz em direção a estação de Vila Matilde, onde surpreendeu as forças governistas com um ataque relâmpago e retirou-se ileso.
Às três horas da tarde, aviões se aproximam de São Paulo, voando a baixa altitude. A cidade sofre o seu primeiro ataque aéreo. Cinco bombas de 60 quilos explodem nas ruas, destruindo casas e edifícios.
17. Revoltosos Derrotam Tanques
Em 23 de julho, pela primeira vez tanques irrompem no Belenzinho, produzindo um princípio de pânico nas forças revolucionárias.
Equipados com canhões, automáticas e blindagem de 22 milímetros, os Renault F-17 eram imunes ao fogo de fuzis e metralhadoras. Nem as tropas do Exército, nem as da Polícia Militar tinham experiência em combatê-los.
O comando revolucionário age com presteza e mobiliza os três batalhões estrangeiros contra os tanques. Para veteranos da 1ª Guerra Mundial, tanques não eram novidade. Depois de cavarem fossos de dois metros de profundidade, para barrar a progressão dos veículos, verificam que eles haviam avançado sem apoio de infantaria, erro que já custara muitas perdas nos campos europeus. Então os batalhões estrangeiros envolveram os blindados, passando a atacá-los pela retaguarda. Alguns alemães chegaram a trepar nos tanques, com o intuito de abrir as escotilhas e matar seus ocupantes. Quase capturaram dois.
A ofensiva, que prometia mudar o curso da batalha em questão de horas, por pouco não se transformou num pesadelo para as forças governistas. Os tanques se retiraram rapidamente do teatro de operações e não mais voltaram a ser utilizados.
18. Mais Destruição
Na madrugada do mesmo dia, densas colunas de fumaça brotavam do depósito de inflamáveis Mercansul e da fábrica de bebidas Antártica.
Em função dos incêndios sucessivos, o comando revolucionário põe em liberdade todos os bombeiros dispostos a prestar serviços profissionais. O Quartel-General do Corpo de Bombeiros tinha sido um dos bastiões da defesa governista nos primeiros dias do levante. Muitos dos carros de bombeiros haviam sido levados pelas tropas legalistas para Guaiúna, em sua retirada. A fim de reavê-los, a Associação Comercial envia carta ao general Eduardo Sócrates, comandante das forças que efetuavam a operação de cerco e aniquilamento da cidade. O material nada tinha de bélico. Mesmo assim a espera pela resposta é longa e inútil. A destruição prossegue de forma sistemática.
O número de indústrias e estabelecimentos comerciais atingidos, entre os quais as Oficinas Duprat, Motores Morelli, S/A Scarpa, Matarazzo, Magasins Generaux, Reickman & Cia, Ernesto de Castro, Moinhos Gamba, ultrapassa a uma centena. Até o fim do conflito, a quantidade de prédios destruídos chegaria à casa de dois mil.
No dia 26, panfletos ameaçadores são lançados por aviões, trazem a assinatura do ministro da Guerra, general Setembrino de Carvalho:
“Faço à nobre população de São Paulo apelo para que abandone a cidade… É esta uma dura necessidade que urge aceitar como imperiosa… Espero que todos atendam a esse apelo para se pouparem aos efeitos das operações que dentro de poucos dias serão executadas”.
19. Com o Dr. Carlos de Campos em Guaiaúna
No dia seguinte, o jornalista Paulo Duarte parte para Guaiaúna levando cartas do presidente da Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares, para Carlos de Campos e o general Eduardo Sócrates:
“… o aniquilamento do poder industrial do Estado de São Paulo prossegue todos os dias, pelo efeito destruidor das granadas e pelas chamas devoradoras de pavorosos incêndios… O ânimo da fiel e leal população de São Paulo está abatido, mas compara com azedume o tratamento generoso que tem recebido dos revolucionários com a desumanidade inútil de ininterrupto bombardeio”.
A carta solicita uma trégua de 48 horas, “para que o general Abílio de Noronha possa parlamentar ainda hoje com V. Excia”, uma vez que os revolucionários haviam se disposto negociar a paz em troca de uma anistia ampla aos participantes dos levantes de 1924 e 1922.
O próprio portador lavrou para a história, com indisfarçável ironia, o insólito encontro que manteve com o Dr. Carlos de Campos:
“Com toda a pachorra esperei que o sr. Governador do Estado engraxasse as botas, e, em sua companhia, dei entrada depois no carro da Central, ambulante quartel-general das forças legais, sede provisória do governo de São Paulo…
Confortavelmente instalado numa das macias poltronas do majestoso carro… disse qual era a minha missão e entreguei a carta que trouxera… Ao meio da carta, já o amável governador não pode mais esconder sua irritação, dizendo:
– Isso não são palavras de amigo!
E ao fim da leitura:
– Absolutamente! Aos revoltosos nada! Nós iremos até o fim… Eles aguardem as conseqüências…
– Mas Dr Carlos de Campos (aventurei), se V.Excia conhecesse a atual situação da cidade…
– Não será pior que a minha aqui.
Tive a ousadia de lamber com um olhar tímido o ambiente confortável do carro salão…
– Vocês, (retrucou S. Excia, ainda agitado) parece que estão fazendo causa comum com os revoltosos… Em vista dos termos desta carta vou mandar aumentar os bombardeios. A granada será a resposta!”
20. A Retirada Estratégica
Às 22h do dia 28, surpreendendo as tropas governistas com uma manobra ousada e precisa, as forças revolucionárias empreendem uma retirada estratégica pelo eixo ferroviário São Paulo-Campinas-Bauru. São treze composições ferroviárias, com quatorze a dezesseis vagões, cada uma delas, conduzindo homens e material bélico. Toda a tropa, seis baterias de artilharia com seus acessórios e munição, duzentos cavalos, metralhadoras pesadas, equipamento de infantaria e cavalaria, viaturas, tudo foi embarcado com incrível rapidez, sem dar tempo ao inimigo de compreender o que estava acontecendo.
Os trens correram com um sincronismo tal que não houve o menor embaraço nas linhas dentro de um espaço de tempo de vinte e quatro horas.
No derradeiro manifesto dirigido à população da cidade, os revolucionários agradecem o apoio recebido:
“Assim, pois, no desejo de poupar São Paulo de uma destruição desoladora, grosseira e infame… vamos mudar a nossa frente de trabalho e a sede governamental.
Avante paulista, que a hora da liberdade se aproxima! Deus vos pague o conforto e o ânimo que nos transmitistes”.
Durante o dia 29 concentraram-se na cidade de Bauru. Somavam 3.500 homens, entre soldados do Exército, Polícia Militar e voluntários civis, que passaram a se organizar em três brigadas, um regimento de cavalaria e um regimento misto de artilharia. Posteriormente se dirigirão ao Paraná, onde mantêm a luta por vários meses, até que, em maio do ano seguinte, com as fileiras engrossadas por tropas gaúchas, levantadas em outubro pelo capitão Luís Carlos Prestes e os tenentes Siqueira Campos e João Alberto, iniciam a longa jornada de 25 mil quilômetros, através de dez estados, ao longo de dois anos, sem serem derrotados em nenhuma das batalhas travadas.
21. Epílogo
Nos dias em que São Paulo esteve sob direção das forças revolucionárias, as baixas militares provocadas pelos bombardeios foram irrelevantes. Porém as vítimas civis atingiram proporções trágicas. Dos 700 mil habitantes da capital, 300 mil a abandonaram, refugiando-se no interior. O relatório preliminar, apresentado pelo prefeito Firmino Pinto, registra 500 mortos, 5.000 feridos, 1.182 prédios destruídos, entre os quais 103 estabelecimentos comerciais e industriais. Porém considera parciais os dados levantados e estima que numa apuração completa os números obtidos seriam muito superiores. No caso das edificações atingidas, chega a admitir “mais de 1.800”:
“A Inspetoria Geral de Fiscalização procedeu a um penoso trabalho de exame… dos prédios danificados… e apurou devidamente verificados 1.182. Por inspeção posterior pode-se asseverar que esse número vai a mais de 1.800”.
No entanto, com a consolidação do controle da cidade pelas forças contra-revolucionárias, a apuração das baixas produzidas pelo bombardeio foi bloqueada e abandonada, confirmando o preceito de que o interesse dos criminosos é sempre o de ocultar a extensão de seus delitos.
Dois anos e meio mais tarde, a oligarquia cafeeira paulista guindaria Washington Luís à presidência da República. O coronel Fernando Prestes também não seria esquecido. Seu filho, Júlio Prestes, o Dr. Julinho, assumiria o governo do estado de São Paulo. Carlos de Campos deixaria a cena mais cedo, falecendo antes da conclusão do mandato, em abril de 1927.
Quando a Revolução de 30 os varreu do mapa, Julio Prestes, mercê da habitual fraude que marcava o processo eleitoral, estava a pique de suceder Washington Luís na presidência da República.