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A Revolta da Chibata

24 de julho de 2024

O texto abaixo, como os que vão a seguir, foi escrito há muitos anos e jamais publicado. Todos eles são, fundamentalmente, resumos, tendo em vista o projetado – e não realizado – 4º Congresso do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), organização de que eu fazia parte, então, e na qual fiquei responsável pelas teses históricas. Para esta edição, além de omitir a bibliografia, o texto foi revisto e reescrito (CL).]

Por Carlos Lopes, publicado originalmente na Hora do Povo

“Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais”
JOÃO BOSCO E ALDIR BLANC

Os maus tratos a marinheiros tinham provocado vários motins desde o Império. A chibata na Marinha era uma terrível herança inglesa, introduzida no Brasil pelo almirante Cochrane na época da Independência, com o recrutamento forçado e o serviço obrigatório de 15 anos para os marinheiros – em geral, negros ou mulatos.

Tornada ilegal pelo governo provisório da República, e depois exumada pelos monarquistas que sobreviviam na Marinha – Saldanha da Gama, o chefe da revolta da Armada, orgulhava-se de ser um “chibateiro” emérito – durante o governo Rodrigues Alves a chibata fora quase abolida, por ação do ministro da Marinha, almirante Júlio César Noronha. No entanto, com a mudança de planos feita pelo seu sucessor, o uso da chibata mais uma vez recrudescera.

No dia 22 de novembro de 1910, após um hediondo castigo de 250 chibatadas imposto a um marinheiro do encouraçado Minas Gerais, Marcelino Rodrigues, a revolta estourou. Praticamente toda a esquadra – uma das mais poderosas do mundo na época – ficou em poder dos revoltosos em alguns minutos. Imediatamente, o líder do movimento, João Cândido, passou uma mensagem por rádio para o Palácio do Catete: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já”.

Apenas seis dias antes, tomara posse o novo presidente da República, marechal Hermes da Fonseca. O novo governo enviou, então, a bordo dos navios revoltados, o comandante da Marinha José Carlos Carvalho, também deputado federal, que subiu fardado para conversar com os revoltosos e foi recebido por eles com todas as honras militares. Seu relato posterior ao Congresso é um documento notável, no qual transparece sua honestidade e integridade e seu horror ao que tinha presenciado e ao que tinha ouvido:

“… perguntei quem se responsabilizava por aqueles atos. Responderam-me: ‘todos’. E um deles acrescentou: ‘estamos em um verdadeiro momento de desespero; sem comida, muito trabalho, e as nossas carnes rasgadas pelos castigos corporais que chegam à crueldade. Não nos incomodamos com o aumento de nossos vencimentos, porque um marinheiro nacional nunca trocou por dinheiro o cumprimento de seu dever e os seus serviços à Pátria. (….) Nada queremos senão que nos aliviem dos castigos corporais, que são bárbaros, que nos deem meios para trabalhar compatíveis com nossas forças. V. Sª pode percorrer o navio, para ver que está tudo em ordem, e até o nosso escrúpulo, sr. comandante, chegou a este ponto: ali estão guardando o cofre de bordo quatro praças, com as armas embaladas; para nós aquilo é sagrado. Só queremos que o sr. presidente da República nos dê liberdade , abolindo os castigos bárbaros que sofremos, dando-nos alimentação regular e folga no serviço. V. Sª vai ver se nós temos ou não razão’. Mandaram vir à minha presença uma praça que tinha sido castigado na véspera. As costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.

O comandante Carvalho referiu-se, também, à perícia dos marinheiros no manejo dos navios. Seu líder, João Cândido, era – e foi, até o fim de sua longa e difícil vida – um homem notável. O nome pelo qual ficou conhecido pelo povo, “almirante negro”, fez-lhe justiça. Sua inteligência, capacidade de sacrifício e ausência de ressentimentos foram tão responsáveis pela sua fama quanto sua capacidade náutica.

Filho de um negro que foi soldado no Paraguai, passou a infância como “negrinho do pastoreio”, no Sul; participou do conflito com a Bolívia, no Acre; fez parte da exploração da Amazônia pelo navio Tocantins; depois de estar em missão no Paraguai, seguiu para a Europa, acompanhando, nos estaleiros de New Castle, Inglaterra, a construção do Minas Gerais e fazendo parte da tripulação na viagem inaugural do encouraçado, que trouxe dos EUA os restos mortais do grande abolicionista Joaquim Nabuco.

Os documentos da revolta são dos mais candentes de nossa história.

Transcrevemos aqui apenas um deles:

“Ao povo e ao chefe da Nação.

“Os marinheiros do Minas Gerais, do São Paulo, Bahia, Deodoro, e mais navios de guerra vistos no porto com a bandeira encarnada, não têm outro intuito que não seja o de ver abolido das nossas corporações armadas o uso infamante da chibata, que avilta o cidadão e abate o caráter. A resolução de içarem no mastro dos navios as bandeiras encarnadas e de se revoltarem contra o procedimento de alguns comandantes e oficiais só foi levada a efeito depois de terem reclamado, por vezes insistentemente, contra esses maus tratos, contra o excesso de trabalho a bordo e pela mais absoluta falta de consideração com que foram tratados.

“Do chefe da Nação, o ilustre marechal Hermes da Fonseca, cujo governo os marinheiros desejam coroado pela paz e pelo mais inexcedível brilho, só desejam os reclamantes a anistia geral, a abolição completa dos castigos corporais para engrandecimento moral das nossas classes armadas.

“Os marinheiros lamentam que este acontecimento se houvesse dado no começo da Presidência de S. Exª, o sr. marechal Hermes da Fonseca, a quem a guarnição do São Paulo é especialmente simpática.

“Ao povo brasileiro os marinheiros pedem que olhem a sua causa com a simpatia que merece, pois nunca foi seu intuito tentar contra as vidas da população laboriosa do Rio de Janeiro.

“Só em última emergência, quando atacados ou de todo perdidos, os marinheiros agirão em sua defesa. Esperam, entretanto, que o governo da República se resolva a agir com humanidade e justiça.

Ass. Os marinheiros da Armada brasileira.”

Mesmo debaixo de uma pressão reacionária que desprezava completamente as vidas da população e os danos a navios cuja aquisição havia endividado enormemente o país, o governo Hermes da Fonseca decidiu não atacar os revoltosos.

No entanto, não havia uma liderança governista com autoridade e coragem suficiente para apresentar a proposta de anistia, sem que fosse liquidada pelas próprias forças que apoiavam o governo.

Nem mesmo o senador Pinheiro Machado, o político mais influente do governo – e em quem João Cândido, que o conheceu no Sul, confiava – se atreveu a tomar a iniciativa.

Foi, então, o adversário do marechal Hermes, nas recentes eleições, que o fez.

O discurso de Rui Barbosa foi um dos mais contundentes libelos já ouvidos no Brasil, de um homem que foi autor de tantos libelos:

“Os fortes são os que cedem e transigem numa situação em que a condescendência é o único meio imposto para a salvação pública; o fraco é o que já na última extremidade ainda supõe ter nas mãos todos os recursos e é forçado a abandoná-los em última análise quando as transações revestem as formas das humilhações indecentes e desgraçadas.

“… é necessário não esquecermos o valor da gente que tripula essas máquinas de guerra. Digamo-lo, com alguma vaidade, com algum desvanecimento, por honra dos nossos compatriotas. O que constitui as forças das máquinas de guerra não é a sua mole, não é a sua grandeza, não são os aparelhos de destruição – é a alma do homem que as ocupa, que as maneja, e as arremessa contra o inimigo. As almas dessas máquinas que povoam os nossos grandes dreadnoguths, hoje, em nossa baía, sejamos justos ainda para com esses infelizes no momento do seu crime [referência aos oficiais mortos nas primeiras horas da revolta], as almas desses homens têm revelado virtudes que só honram a nossa gente e a nossa raça.

“…vi como esses homens lhe demonstravam [ao comandante e deputado Carvalho] com orgulho os seus navios, dizendo: ‘Senhor, isto é uma revolta honesta’. Eles tinham lançado ao mar toda a aguardente existente a bordo, para não se embriagarem; tinham feito guardar, com sentinelas, as caixas onde se encontravam depositados os valores; tinham mandado guardar com sentinelas os camarotes dos oficiais para que não fossem violados; tinham guardado, na organização do movimento, um sigilo prodigioso entre os costumes brasileiros; tinham sido fiéis à sua ideia; tinham sido leais uns aos outros, desinteressados na luta (….). Gente dessa ordem não se despreza. Lamentam-se os desvios, mas reconhece-se o valor humano que ela representa.

“As reclamações capitais existentes na base desse movimento correspondem a necessidades irrecusáveis. Estes castigos foram abolidos por ato legislativo do Governo Provisório [do qual Rui fora a principal figura]. Abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas, quando nos batíamos pela liberdade, abusos que fazem desconhecer no soldado e no marinheiro as qualidades principais daqueles que têm de expor a vida para defender a Nação.

“A escravidão começa por desmoralizar e aviltar o senhor antes de desmoralizar o escravo”.

Depois de Rui, falou o líder do governo, Pinheiro Machado, também apoiando a anistia, que é aprovada rapidamente pelo Congresso.

João Cândido, apesar da resistência de uma parte de seus companheiros, a aceitou. E então teve início a vergonha, sob os protestos exaltados e a denúncia ardente de Rui. Em desrespeito à lei, os líderes são presos e encerrados numa masmorra subterrânea insalubre, onde se atira cal, para que eles o respirem. Somente dois saem vivos daquela cela – um deles, João Cândido.

Mas a chibata tinha sido abolida de uma vez para sempre.

Era o último ato da Abolição.