Getúlio Vargas: o que pensam os comunistas?
O Partido Comunista do Brasil fez oposição aos governos de Getúlio, mas também o apoiou em momentos específicos.
Ao longo de sua história, o Partido Comunista do Brasil apresentou distintas interpretações acerca dos governos de Getúlio Vargas. Entre 1930 e 1943, os comunistas fizeram oposição aberta ao regime getulista. A criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e a insurreição de 1935 foram os pontos mais altos desse processo.
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Isso mudou um pouco com o desenrolar da 2ª. Guerra Mundial. Ao colocar no centro de sua estratégia a necessidade de derrotar o nazismo, os comunistas apoiaram o governo de Getúlio, entre 1943 e 1945, por ter enviado soldados para a Europa. Em artigo publicado em 1945, o líder comunista Maurício Grabois explica o que aconteceu:
“O Partido Comunista tem uma política independente. Antes dos homens, vemos os interesses do povo. E quando tomamos uma atitude não queremos saber se ela virá satisfazer a êste ou aquele indivíduo, mas, sim, se trará benefícios para o proletariado e o povo. Em 35 lutamos de armas na mão contra o govêrno do sr. Getúlio Vargas, que levava o país para o fascismo. E quando êsse mesmo govêrno se colocou ao lado das Nações Unidas, na luta contra o fascismo, nós o apoiamos. Nós não mudamos; quem mudou foi o govêrno. Assim, a culpa não é nossa, é da História”.
Com a “democratização” de 1946, os comunistas passaram para a oposição novamente. Quando Getúlio foi eleito presidente em 1950, os comunistas reivindicaram o voto em branco. No primeiro semestre de 1954, a crítica ao governo de Getúlio era ríspida: o presidente era um “agente do imperialismo americano”, diziam os comunistas.
No dia 24 de agosto de 1954, o jornal do PCB, Imprensa Popular, foi para as ruas com a seguinte manchete: “Abaixo o governo de traição nacional de Vargas”. O que não podiam saber é que naquela mesma manhã o presidente acabara de se suicidar. As camadas populares tomaram as ruas emocionadas com a morte de Getúlio e queimavam os jornais de direita que o criticavam. Imediatamente os comunistas tomaram a decisão de recolher das bancas de jornais a Imprensa Popular. A partir de então, a interpretação do partido sobre o governo Getúlio mudou como podemos ver nos programas que se seguiram.
Programa do Partido Comunista do Brasil de 1954
O novo programa, que já estava pronto para ser aprovado pelo partido no IV Congresso, que aconteceria em novembro de 1954, teve que ser modificado. Todo o capítulo de crítica ao governo de Getúlio foi retirado do documento final. Afinal, seria um erro mortal se indispor com as massas trabalhadoras.
De certo modo, o suicídio de Getúlio redireciona a estrategia do partido para a frente ampla. A seguinte passagem do programa aprovado no IV Congresso mostra o sentido da coalizão a ser construída:
“O Partido Comunista do Brasil está convencido de que as transformações democráticas que nosso povo necessita e almeja só podem ser alcançadas com um governo democrático de libertação nacional, governo de coalizão do qual participem, além da classe operária, os camponeses, a intelectualidade, a pequena burguesia e a burguesia nacional” (Clique aqui para ler o Programa do PCB de 1954).
Em 1955, o Manifesto Eleitoral do PCB indicou Juscelino Kubitschek como candidato presidencial dessa frente ampla (Clique aqui para ler o Manifesto Eleitoral do PCB de 1955).
O Programa Socialista do PCdoB de 1995
Em 1995, a 8ª Conferência Nacional do Partido aprovou um novo programa, o Programa Socialista do Partido Comunista do Brasil. Por um lado, esse documento registra que o governo de Getúlio fomentou a industrialização e tinha como promessa “democratizar o regime político, estabelecer condutos para as lutas sociais dos trabalhadores, quebrar o exclusivismo do poder em mãos dos latifundiários de São Paulo e de Minas Gerais”. Por outro lado, deixa claro que muitas dessas propostas ficaram apenas na promessa e que aquele regime foi “de arbítrio, com a supressão de liberdades democráticas” e que manteve “intacto o sistema do latifúndio e a condição de país exportador de produtos primários”.
Em seus parágrafos 18 e 19, o programa diz o seguinte:
“18. Em 1930, inicia-se nova fase na vida do país. Um movimento armado, principalmente de militares, derruba a velha República. Desfraldando bandeira liberal, esse movimento representa interesses da burguesia, que crescera na década anterior, e refletia também contradições interimperialistas em relação à espoliação do país. Os novos governantes, com Getúio Vargas à frente, propõem democratizar o regime político, estabelecer condutos para as lutas sociais dos trabalhadores, quebrar o exclusivismo do poder em mãos dos latifundiários de São Paulo e de Minas Gerais. Incentivam a industrialização, mantendo, no entanto, intacto o sistema do latifúndio e a condição de país exportador de produtos primários. O regime político, nas décadas seguintes, sofre largos períodos de arbítrio, com a supressão de liberdades democráticas”.
“19. O processo de industrialização do Brasil toma impulso a partir do decênio de 40. O fator fundamental foi a criação da siderurgia nacional (CSN), seguido da exploração e do monopólio estatal do petróleo. Posteriormente, construíram-se potentes hidrelétricas. A produção, transmissão e distribuição de energia elétrica, setor estratégico do desenvolvimento econômico, progrediu aceleradamente com a criação da Eletrobrás. Cresceu o setor siderúrgico, surgiram empresas modernas, como a Usiminas, a Cosipa e outras fabricantes de laminados planos e aços especiais. Instalaram-se indústrias básicas de caráter estratégico – material ferroviário, produtos químicos e petroquímicos, elaboração de minérios, fábrica de armamentos. Iniciou-se a construção de aviões e ampliou-se a indústria naval. Expandiram-se outros ramos industriais”.
O Programa Socialista para o Brasil de 2009
Em 2009, o 12º Congresso do Partido Comunista do Brasil aprovou o programa mais atual do partido, o chamado Programa Socialista para o Brasil. O documento registra que “o movimento de 1930 introduziu o Brasil no século XX. Instituiu o voto feminino. Criou o salário-mínimo, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e começou a implantar a seguridade social”. No entanto, “o sistema de propriedade predominantemente latifundiário foi mantido”. Além disso, aquele momento foi marcado “por períodos ditatoriais e de democracia restrita, com severas limitações às liberdades políticas, à participação democrática do povo, e de dura perseguição ao Partido Comunista do Brasil e demais forças revolucionárias”.
O parágrafos 8, 9, 10 e 11 registram a opinião do PCdoB sobre aquele período:
“8) O movimento de 1930, liderado por Getúlio Vargas, derrubou a República Velha – das oligarquias – e abriu uma nova etapa da vida do país. Os prenúncios de 1930 vêm dos férteis anos da década de 1920, com o movimento tenentista, os levantes de 1922, 1924 e a heroica Coluna Prestes; a fecunda Semana de Arte Moderna; as grandes lutas operárias do início do século XX e as greves gerais (1917 e 1919); e a fundação do Partido Comunista do Brasil, que marca a entrada consciente do proletariado na luta política. O movimento de 1930 introduziu o Brasil no século XX. Instituiu o voto feminino. Criou o salário-mínimo, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e começou a implantar a seguridade social. A fase mais expansiva do desenvolvimento nacional foi o período de 1930 a 1980. Entre os países capitalistas o Brasil foi o que mais cresceu”.
“9) O desenvolvimento capitalista brasileiro foi marcado por ter sido tardio, deformado, desigual e sob dominação imperialista. Duas classes ganham relevância: o proletariado, principalmente urbano, e a burguesia industrial, que viria a ser a classe hegemônica, substituindo a oligarquia agrário-exportadora. O Estado foi o principal instrumento da promoção do desenvolvimento. O elemento fundamental do financiamento da economia foi o capital estatal, com participação do capital privado nacional e estrangeiro. Houve a transição da economia agrário-exportadora para a industrial urbana. Formou-se um espaço econômico integrado e um mercado interno. Nos anos 1940, há a criação da siderurgia nacional. No segundo governo de Getúlio Vargas foram criados grandes empreendimentos estatais, entre eles a Petrobras, surgida no curso da campanha cívica “O Petróleo é Nosso”, e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). E foi estabelecido o monopólio estatal do petróleo. A partir da segunda metade dos anos 1950, intensificou-se a abertura para o capital estrangeiro, com facilidades à implantação das transnacionais. O Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek contribuiu para alargar o processo de industrialização”.
“10) O sistema de propriedade predominantemente latifundiário foi mantido. O capitalismo apoiado pelo Estado avançou no campo, e a produção agropecuária aumentou muito. Ela se desenvolveu tecnologicamente e se interiorizou rumo ao Centro-Oeste e ao Norte”.
“11) Esse processo político se deu através de uma série de rupturas parciais, seguidas de recomposições, entre forças sociais distintas e heterogêneas. As Forças Armadas da década de 1940 até os anos 1980 atuaram intensamente na esfera política, promovendo golpes antidemocráticos. O imperialismo estadunidense interveio na vida política do país. Em geral, esse percurso de 50 anos está marcado por períodos ditatoriais e de democracia restrita, com severas limitações às liberdades políticas, à participação democrática do povo, e de dura perseguição ao Partido Comunista do Brasil e demais forças revolucionárias. Mesmo assim os trabalhadores e as massas populares realizaram mobilizações decisivas às conquistas alcançadas. A luta dos comunistas, embora atuando sob duras condições, foi permanente para a construção do Brasil”.
A resolução de 2012 sobre os 90 anos do PCdoB
Em 2012, o Comitê Central publicou o livro “PCdoB: 90 anos em defesa do Brasil, da democracia e do socialismo”. O livro conta a história do Brasil no século XX pela ótica dos comunistas. Ao tratar da eleição de 1930, o livro explica que lançou a candidatura presidencial de Minervino de Oliveira, pois “avaliou que entre a candidatura de Júlio Prestes, pela situação, e a de Getúlio Vargas, pela oposição, só existiam contradições oligárquicas e interimperialistas”.
Mais tarde, em 1935, os comunistas se organizaram em torno da Aliança Nacional Libertadora (ANL) para derrubar o governo de Vargas. Mas a insurreição foi fracassada e os comunistas foram presos e torturados pelo regime de Vargas. Essa passagem do livro registra aquele momento de terror sob o governo de Getúlio:
“Depois da Insurreição de novembro de 1935, e até o início de 1936, a polícia de Vargas prendeu mais de 15 mil pessoas, entre comunistas e outros integrantes da ANL. Os presos foram encaminhados para a Ilha Grande, para Fernando de Noronha e para a Casa de Correção do Rio de Janeiro, entre tantas outras prisões espalhadas pelo país. O escritor Graciliano Ramos, membro do Partido, documentou essa arbitrariedade no livro Memórias do Cárcere. Muitos dos presos foram brutalmente torturados, como o dirigente internacionalista Harry Berger. Grávida, a companheira de Prestes, Olga Benário, foi entregue à Alemanha nazista, juntamente com Elise Berger. As duas foram assassinadas em câmaras de gás”.
Não obstante a prisão de Prestes e o assassinato de Olga, os comunistas aprovaram em 1943, na Conferência da Mantiqueira, o apoio ao governo de Vargas. “O centro da tática aprovada ali foi a defesa da União Nacional em torno do governo Vargas, contra o inimigo principal representado pelas potências do Eixo e seus aliados no país: os quinta-colunas”.
Com o fim do primeiro governo Vargas em 1945 e a redemocratização em 1946, os comunistas voltaram para a oposição. Foi nesse contexto que o partido defendeu o voto em branco nas eleições presidenciais de 1950 vencidas por Vargas. O livro de 2012 faz uma autocrítica sobre esse posicionamento:
“Os comunistas não conseguiram compreender as diferenças existentes entre o projeto político representado pelo governo antioperário e entreguista de Dutra e o futuro governo “trabalhista” e nacionalista de Vargas. Para o Partido, os dois eram ‘governos de traição nacional, instrumentos servis nas mãos do imperialismo norte-americano’ […]. Sob o impacto das grandes mobilizações operárias, Vargas foi levado a dar um reajuste de 100% no salário-mínimo sinalizando uma mudança de rumo na sua política econômica e social. Mas, o Partido não foi capaz de perceber essa alteração e se manteve na oposição sistemática ao governo”.
Uma avaliação materialista sobre Getúlio Vargas
Como mostram os mais diversos documentos do PCdoB, a opinião do partido sobre Vargas se alterou ao longo do tempo. No calor do momento, os comunistas fizeram oposição aberta aos governos de Vargas – a exceção foi o período de 1943-45. Após o suicídio do ex-presidente, houve uma reinterpretação da conjuntura.
Atualmente, a leitura do PCdoB é a de que os governos de Vargas devem ser interpretados sob duas óticas: a econômica e a democrática. Do ponto de vista da economia política, sob uma chave positiva, na medida em que foi o responsável por introduzir o Brasil no século XX com amplas políticas sociais, trabalhistas e de fortalecimento do Estado com a criação de empresas estatais como a CSN e a Petrobras, entre outras. Apesar desses avanços, o PCdoB faz a ressalva de que Vargas nunca rompeu com o sistema latifundiário. Já do ponto de vista democrático, Vargas é visto sob uma chave negativa, na medida em que o seu primeiro governo foi caracterizado pelo autoritarismo e pela perseguição aos comunistas.
Grosso modo, o sentido geral proposto pelo PCdoB nos dias atuais é o de que o Brasil precisa aliar em sua agenda, de forma duradoura, o desenvolvimento econômico com o democrático, algo que Vargas não conseguiu realizar plenamente – quando chegou próximo desse objetivo, entre 1953 e 1954, foi levado ao suicídio. Mas o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento defendido pelo PCdoB vai além, pois é contingenciado também pela sustentabilidade.
Theófilo Rodrigues é cientista político e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM.