Walter Sorrentino: Dilemas do caminho brasileiro ao socialismo
Intervenção do presidente da Fundação Maurício Grabois, Walter Sorrentino, no 14º Fórum Mundial do Socialismo realizado em Pequim, China
Agradeço o convite para este destacado Fórum que tem demonstrado crescente relevância internacional no debate do Socialismo, nossa causa em comum.
A grande questão desta quadra histórica é a questão das alternativas ao atual sistema dominante no mundo. Após 4 décadas da derrota estratégica que foi o colapso do socialismo soviético, o mundo mudou. O que está em crise estrutural é o neoliberalismo e a dominação imperialismo, um mundo grávido de mudanças.
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Aguçam-se as contradições de todo tipo, viceja profundo mal-estar social. Os anseios dos povos por elevação do padrão de vida material e espiritual estão bloqueados. O mundo vive tensões e guerras contínuas e prolongadas sobre povos e nações e proliferam as guerras culturais.
Por outro lado, em meio às trevas, há luzes. Um novo tempo se abre com prodigiosos desenvolvimentos que revolucionam as forças produtivas. Ao lado disso, a teoria do socialismo amadureceu, focada em totalidades concretas como forma de impulsionar o sentido histórico universal, avançando no enfrentamento dos problemas com soluções originais e desbravadoras. Vitórias eleitorais de forças progressistas têm lugar, segue a luta de resistência dos trabalhadores e povos.
A questão precisa ser revista: quais as alternativas? Por quais caminhos e meios? Elas alcançam formar uma maioria social e política?
Optei, nesta alocução, por compartilhar os desafios e dilemas dos comunistas brasileiros na luta pelo socialismo, na expectativa de designar desafios teóricos e políticos estratégicos em nosso debate.
O Brasil está entre as dez maiores economias do mundo, entre os cinco com maior território, população e PIB. É uma potência em energia limpa, agrícola e de biodiversidade, tem forte mercado interno e parque industrial e científico respeitável.
Entretanto, há 40 anos o crescimento do PIB brasileiro foi menor do que o do mundo; a indústria decaiu a apenas 11% do PIB. Como é de conhecimento de todos, meu país passou por um grande retrocesso – inclusive civilizatório – sob um governo neofascista e ultraliberal.
Reassume centralidade, em novos termos, a questão nacional, tão cara aos partidos comunistas formados sob o impulso do leninismo. Nós propomos alcançar plena autodeterminação nacional, por via de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento soberano, socialmente inclusivo, ambientalmente sustentável, de integração regional sul-americana, sob direção de um Estado de caráter democrático e popular. Isso tem caráter objetivamente contra-hegemônico, anti-imperialista.
Sob direção e hegemonia das forças populares, aglutinando amplas forças sociais, progressistas e nacionais, essa agenda se realiza acumulando reformas e rupturas progressivas com a ordem neoliberal e da dependência econômica e cultural, em especial reformas estruturantes democráticas do Estado. Consideramos esse o caminho brasileiro para a transição ao socialismo. Só sob essa orientação se realiza o pleno potencial nacional.
Essa agenda política é nucleada pelo desenvolvimento das forças produtivas, a industrialização em novas bases tecnológicas e forte impulso da ciência, tecnologia e inovação, sob fortes investimentos públicos e privados induzidos pelo Estado, e com a valorização do trabalho, assegurando renda, equidade e direitos sociais e civis plenos, extirpando a fome, a pobreza e o atraso do país.
A necessidade disso é imperiosa, as potencialidades são imensas, os obstáculos, formidáveis. Pondero aqui algumas dimensões envolvidas na luta pela alternativa.
Um primeiro aspecto é, certamente, a atual dispersão política e social em nossa sociedade, um hiato na formação da consciência social. Atuam para isso as profundas mudanças que abalam o mundo do trabalho, assim como o ambiente de atomismo e fragmentação do povo, o ideário meritocrático e individualista, a demarcação de “identidades” desligadas de um projeto de nação.
As bandeiras da autodeterminação, desenvolvimento e soberania são poderosas para infundir um projeto totalizante. A luta pelo novo projeto nacional e novo ciclo de desenvolvimento põe no centro a sua força motriz e mais universal: o trabalho. E incorpora e subordina as causas da democratização do poder, direitos sociais e civilizatórios, a emancipação das mulheres e contra o racismo.
Isso se liga a um segundo aspecto, o de inserir essa luta no curso real da vida política. No Brasil, a disputa está polarizada entre o Governo de União e Reconstrução Nacional, no 3º mandato do Presidente Lula e as forças neofascistas e ultraliberais. O desafio imediato é a luta pelo êxito do governo, centro tático das forças da esquerda política e social no país nesta hora, na realização de seu programa de retomada do desenvolvimento soberano do país.
Em outro plano, um terceiro aspecto é a inserção do Brasil na realidade internacional em firme transição à multipolaridade, mas de essencial imprevisibilidade. O Presidente Lula empenha-se na estratégia Sul Global e na integração sul-americana. Há grandes confrontos de interesses, mas se abrem muitas oportunidades.
O que é estratégico para nós é o papel do BRICS. O Brasil, é nossa opinião, não precisa nem deve praticar alinhamentos automáticos, seja de natureza ideológica-cultural, seja de modelos econômicos ou geopolíticos. Isto posto, creio que o Brasil precisa fortalecer, com autonomia, a Parceria Estratégica Global com a China e tomar a decisão de integrar a Iniciativa do Cinturão e Rota tendo por vetores centrais os interesses nacionais, especialmente acordos científicos e tecnológicos, investimentos e o reforço das relações de troca fora do campo do dólar.
Essas perspectivas de entrelaçamento da luta contra a dependência neocolonial e as transições ao socialismo indicam, como pano de fundo, que é preciso descortinar desafios não só programáticos, estratégicos e táticos, como também teóricos. Nesse sentido se pode falar da atualização das condições em que atua a lei do desenvolvimento desigual no presente. A dominação imperialista guarda uma nova, mais sofisticada e mais agressiva forma histórica, base para toda uma gama de contradições, internas e externas, que hoje constituem os obstáculos principais ao avanço dos países dependentes.
Também se torna essencial descortinar uma nova Economia Política do Desenvolvimento nos países dependentes. A experiência de governos progressistas demonstra que o receituário econômico ortodoxo como pensamento único permanece hegemônico e impeditivo do desenvolvimentismo. Os Estados nacionais se veem aprisionados na lógica do fiscalismo, austeridade e da dívida pública, plasmados aos interesses do rentismo.
Há, ainda, outros grandes temas de fronteira a desbravar, que impactam as ideações que temos sobre o futuro. Profundas transformações afetam diretamente a base material das sociedades e colocam as relações entre ser humano e natureza em um outro patamar de exigências. Falo da emergência de inovações tecnológicas disruptivas como a Inteligência Artificial, a plataforma 5G, Big Data, computação quântica etc. Elas impactarão o regime de acumulação do capital, seu modo de regulação e, em especial, modificarão as condições da luta central pela valorização do trabalho e pela formação da consciência social avançada dos trabalhadores.
Nesse sentido, alcançamos um ativo político de monta: o amadurecimento da teoria do socialismo. É importante que a China, governada pelo Partido Comunista da China, esteja na fronteira dessas ocorrências. É preciso reconhecer a forma peculiar como os comunistas chineses organizam seu regime social, a propriedade pública e o sistema empresarial e financeiro, sua máquina de previsão e adaptação a múltiplos cenários, com a emergência de formas superiores de planejamento e intervenção sobre a realidade jamais vistos anteriormente. Tudo isso enseja um novo corpo teórico, categorial e conceitual capaz de fornecer uma nova gramática cognitiva sobre a nova sociedade socialista.
É de refletir, do ponto de vista estratégico, que a inserção chinesa e seu papel para o desenvolvimento do Sul Global, na proposição de desenvolvimento compartilhado em benefício mútuo e por um destino comum da Humanidade, constitua uma reserva estratégica para a retomada da luta socialista sob formas históricas e mediações que envolvem projetos nacionais autônomos nos países dependentes.
É por todas essas considerações que ser torna necessário formular uma pauta sobre o desenvolvimento da teoria marxista e socialista para forjar estratégias consentâneas às alternativas possíveis.
A Fundação Maurício Grabois tem esse escopo de pesquisas e investigações. Dirigida pelo Partido Comunista do Brasil, é um espaço marxista e progressista de pesquisas e estudos sobre temas de fronteira do desenvolvimento e por um projeto nacional, e a nova luta pelo socialismo no mundo.
Walter Sorrentino – Presidente da Fundação Maurício Grabois, Vice-presidente Nacional do PCdoB.
10 de setembro de 2024
Pequim, a convite da Academia de Ciências Sociais da China – CASS