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A batalha pela soberania digital é global

12 de setembro de 2024

Jandira Feghali e Ricardo Calazans discutem o papel das big techs a partir do caso de Elon Musk

Há cerca de 10 dias, o Brasil lembrou a todo o mundo que nenhum interesse privado pode ficar acima da soberania de um país – seja em ambiente físico ou digital. A suspensão judicial do X em todo o território brasileiro teve repercussão internacional e soma-se a outras iniciativas recentes de regulação pelas nações democráticas, hoje perigosamente nas mãos das big techs e de seus donos (alguns muito arrogantes e até megalômanos).

Anteriormente conhecido como Twitter, o X é apenas a nona rede social em número de usuários, mas tem um poder único de pautar discussões políticas e culturais em todo o mundo. No ar desde 2007, a plataforma que surgiu como uma grande praça pública de ideias foi transformada em influente arma de propaganda de massa da extrema-direita internacional em outubro de 2022. Naquele mês, o sul-africano Elon Musk, o homem mais rico do mundo, pagou estratosféricos US$ 44 bilhões de dólares e se tornou seu dono. 

Desde então, mudou o nome do Twitter para X, praticamente acabou com a moderação, reabilitou extremistas e trolls que já haviam sido banidos e modificou o algoritmo, de forma a aumentar não apenas o próprio alcance, mas a propagação de fake news e discursos de ódio. Sempre em nome de um distorcido conceito de “liberdade de expressão” que se conecta diretamente à Alt-Right, a nova e mortífera extrema-direita dos Estados Unidos. 

Com a arrogância típica dos bilionários do Vale do Silício e uma “ética” de dar inveja aos vilões dos quadrinhos, Musk vinha desobedecendo seguidamente ordens judiciais brasileiras, num enfrentamento aberto e desrespeitoso, que culminou com a correta suspensão do X no fim de agosto, após o bilionário descumprir determinação do ministro Alexandre de Moraes para apresentar um representante legal no país. Referendada pela Primeira Turma do STF, a decisão de Moraes foi um contundente recado sobre a urgentíssima necessidade de regulação das redes sociais e da inteligência artificial, hoje largamente usadas como plataformas de divulgação da extrema-direita com a cumplicidade ativa de seus proprietários, que lucram muito com isso. 

É o caso do russo Pavel Durov, CEO do Telegram, que tem como “princípio” nunca colaborar com as investigações sobre os muitos crimes cometidos dentro de sua plataforma, como abuso sexual infantil, tráfico de drogas, fraude e terrorismo. E também de Mark Zuckerberg, da Meta, processado nos Estados Unidos por pais e organizações civis, entre outras coisas, pelos deliberados danos que suas plataformas causam à saúde mental de crianças e jovens. 

Mas é o dono do X quem representa, hoje, a principal ameaça à soberania digital dos países – e à própria democracia. O homem à frente de empresas como Tesla (carros elétricos) e SpaceX (foguetes espaciais e os famigerados satélites StarLink) tem um patrimônio estimado em US$ 243,7 bilhões (R$ 1,3 trilhão, riqueza superior a de muitos países). É também o maior garoto-propaganda da extrema-direita global, apoiador confesso de Trump, Milei e outros fascistas e influente propagador de todo tipo de desinformação. O Brasil, onde é aliado aberto do bolsonarismo, tornou-se um de seus principais alvos. Em especial, Alexandre de Moraes, a quem chama de “ditador”.

Embora se “venda” como um “absolutista da liberdade de expressão”, Musk nunca teve o menor apreço pela democracia, e costuma interferir sem pudor algum nos assuntos internos das nações onde tem negócios. Há cinco anos, por exemplo, quando um golpe derrubou Evo Morales da presidência da Bolívia (país com grandes reservas de lítio, mineral essencial a baterias de carros elétricos como os da Tesla), comemorou: “Vamos dar golpe em quem quisermos!”. 

Além do interesse econômico, suas intromissões também são ideológicas. Há um mês, permitiu que o X espalhasse fake news contra muçulmanos após o assassinato de três meninas na Inglaterra, que resultou na pior onda de ataques xenofóbicos no país desde os anos 1970. Musk não apenas compartilhou mentiras sobre o episódio como disse que “uma guerra civil é inevitável” – algo que repete comumente sobre a presença de imigrantes. Nos Estados Unidos, colocou sua rede à disposição de Donald Trump, reabilitado após anos de bloqueio pelo envolvimento no ataque terrorista ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. É um dos principais doadores da campanha do republicano à presidência e já postou mais de 50 fake news eleitorais no X este ano, que alcançaram 1,2 bilhão de visualizações. A mais recente delas, um deep fake de Kamala Harris, candidata democrata, em uniforme de “ditadora comunista”. 

Entre os dias 31 de agosto e 05 de setembro, Musk publicou 253 posts no X (um repórter do UOL se deu ao trabalho de contar). Boa parte deles foram dedicados aos “Alexandre Files”, patético arremedo de denúncia contra Alexandre de Moraes que soam apenas apitos de cachorro para os já radicalizados bolsonaristas brasileiros. E, realmente, com a decisão de Moraes, a extrema-direita brasileira apelou na mesma hora para a carta da censura e da perseguição política. Mas ficou falando para si mesma dentro de uma plataforma esvaziada de brasileiros, pregando para convertidos que pedem anistia para os golpistas do 8 de janeiro e lutam pelo direito de cometer crimes na internet. 

Em uma semana, o X perdeu cerca de 40 milhões de usuários ativos no Brasil (e seu vice-presidente de relações globais pediu demissão). Seria interessante saber, inclusive, se há relação entre o bloqueio e o fracasso das manifestações convocadas pelo bolsonarismo para o Sete de Setembro. O fato é que o caso brasileiro teve repercussão internacional imediata, mas não como Musk e os extremistas gostariam. Jornais de alcance global e orientações diversas, como Le Monde, The Guardian e Financial Times, entenderam e concordaram com a decisão soberana do Judiciário Brasileiro. 

Este episódio soma-se a outros recentes que apontam uma inflexão no modo como o mundo tem lidado até aqui com as incontroláveis big techs. No dia 24 de agosto, Pavel Durov foi surpreendido e preso ao desembarcar na França. Depois de quatro dias no xadrez, o Telegram anunciou que não medirá esforços para moderar a plataforma daqui para a frente. Após o bloqueio no Brasil, o Partido Verde, da coalizão governista alemã, anunciou que pretende fazer o mesmo no país, para conter ameaças terroristas e proteger os direitos humanos e a Constituição. 

Apesar do lobby poderoso das big techs, as legislações regulatórias avançam. No Brasil, precisamos restabelecer o PL 2630/20, que estabelece a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, com normas claras em relação à transparência de redes sociais e serviços de mensagens privadas e à responsabilidade dos provedores no combate à desinformação e outros crimes em suas plataformas. A prisão de Durov na França e o bloqueio do X no Brasil mostram que há caminhos para os países retomaram sua soberania digital. O resumo dos últimos e animadores dias para os democratas de todo o mundo está na manchete de um artigo publicado pelo “El País” no dia 7: “Acabou o ‘vale tudo’: a regulação começa a chegar às redes sociais”. É exatamente este o recado: podem ser bilionários, poderosos, o escambau – têm que respeitar a Constituição, as leis e a Suprema Corte do Brasil!

Publicado originalmente na Carta Capital